Em 2013, Luiz Maganini Faccin completou o Brevet 200 km de Teutônia – RS com uma velha bicicleta enferrujada. Acompanhe a saga.

A bike

Um senhor me fez uma proposta indecorosa: ofereceu-me uma bicicleta velha e enferrujada em troca de uma bicicleta nova. Não foi um bom negócio, mas aceitei. Pensei em pintar a velha bike Sieger com alguma cor verde abacate para uso urbano. Sempre pensei em fazer um brevet com alguma confortável bike aro 28, cano do selim deitado. Sem tempo, resolvi apenas deixar a bicicleta em pé, colocando corrente, manoplas e pneus novos. Saquei fora o freio dianteiro que não estava funcionando.

Com a divulgação do brevet 200 km de Teutônia pensei na possibilidade de usar a bike neste brevet. Só uma ideia, mas como pensava no futuro em fazer um uso urbano, resolvi fazer alguns testes do trabalho até em casa.

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein

Foi preciso trocar alguns raios do aro dianteiro, mas nem era possível centrar, pois a ferrugem estava grande. Também mandei fabricar um canote de selim 24 mm mais longo de aço inox, assim ao menos poderia utilizar o selim na altura ideal. Montei selim Brooks B-17 que usava em outra bike e fiz alguns percursos urbanos. Coloquei Wd-40 nas graxeiras dos rolamentos, e o resultado foi um jato de algum líquido com ferrugem escorrendo. Foi preciso fazer uma lubrificação no cubo contrapedal e no eixo dianteiro. O torpedo estava ruim, quando não estava girando os pedais apresentava um atrito grande, ainda bem que estou acostumado com bike fixa. Descobri que a pintura em grande parte poderia ter o verde original recuperado com o uso de Bombril e polidor, mas não iria fazer um sacrilégio de estragar a originalidade da Brutosa. Coloquei uma câmara de ar reserva enrolada no canote de selim, pois este estava muito limpo contrastando com o restante da lata velha. Fui obrigado a colocar uma bolsa de selim, sem perder a originalidade, utilizando uma Brooks marrom, mesma cor da bike e selim. Também foram colocados farol e luz traseira para uso noturno.

A Brutosa estava preparada, mas eu não. Não estava pedalando nada e precisava fazer ao menos algum treino se pensasse em pedalar os 200 km de Teutônia. No dia 28 de setembro fui fazer um giro noturno solitário. Sem ciclocomputador, sem treino, sem estar acostumado com a bicicleta, pedalei 39 km em duas horas em um percurso plano. Os últimos quilômetros foram cruéis em um percurso de vento contra com subida, e o pneu traseiro estava murcho. Eu, sem saber, sentia a bicicleta grudada no chão pensando ser apenas o peso. Descobri o pneu furado quando murchou de vez, no exato momento em que a chuva começou. Que trabalho fazer a troca da câmara de ar do pneu traseiro em uma bicicleta com para-lama, bagageiro, alavanca de torpedo. Resolvi voltar para casa enchendo o pneu a cada 500, 400, 300, 200, 100, 50 metros e por fim caminhando.

Fiquei sem andar com a Brutosa e cheio de dúvida e medo de tentar 200 km com ela. O percurso de Teutônia teria ao menos uma subida forte, mas com isto não me preocupava, pois caminhar não é o meu fraco. Na noite do dia 04 de outubro não estava certo com qual bike iria para Teutônia, mas coloquei um para-barro no para-lama traseiro e selante nos pneus. Não queria correr o risco de não completar devido a algum pneu furado nos últimos quilômetros de um brevet em que possivelmente estaria atrasado. Estava com receio de quebrar o garfo e o suporte de guidão, componentes fracos da Brutosa. As rodas enferrujadas e tortas não me preocupavam, só incomodavam.

Foi preciso um esquema especial para levar a bike no carro, sem precisar desmontar tudo. No último dia coloquei mais um acessório na bici, uma placa número 337 do emplacamento ano 1956. Veículos antigos merecem placas especiais. Na bolsa do selim coloquei um suporte de guidão de reserva: vai que quebra?

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein

Uniforme

Resolvi aproveitar o brevet em terras de origem germânica para ir com traje típico germânico, para isto comprei um novo chapéu que pudesse dobrar para levar no bagageiro da Brutosa. Como iria caminhar muito, utilizei tênis Salomon preto. Como seria calor, substituindo as meias longas, utilizei pernito de compressão MC David branco, o que foi uma boa ideia. Em baixo da tradicional calça preta com suspensório utilizei bermuda de ciclista. Em baixo da camisa manga longa utilizei uma camisa de ciclista do Teutônia Ciclismo. Estava com algum receio de passar frio nas primeiras horas da manhã.

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein

Antes da largada

Fui no sábado à tarde a Teutônia e pude aproveitar para fazer um turismo motorizado com a esposa até Colinas, Imigrante e Daltro Filho. Foi muito bom conhecer o antigo seminário e algumas estradas do percurso. O Briefing no sábado foi super explicado e muito bom, pois ainda tinha dúvidas sobre o percurso.

O ritual de preparação do randonneur ficou maior. Nos pés, ainda utilizei vaselina para evitar atrito nas caminhadas. No corpo, protetor solar. Nas partes íntimas, creme Chamois Adenosina. Fui pedalando até o local da largada e já pude sentir a dificuldade na subida de chegada. O meu medo era a primeira etapa do brevet até a BR-386, nesta estrada tinha certeza que seria possível pedalar, depois que seria difícil. A descer também teria que frear para evitar uma tragédia em caso de uma quebra do garfo.

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein

O brevet

Na largada, com banda de música e muitos ciclistas, eu parecia estar em um passeio ciclístico. Nas primeiras subidas já foi possível perceber como poderia ser difícil pedalar os 200 km com bike pesada sem câmbios, mas no início tudo é festa.

O meu planejamento era seguir o mais rápido possível sem cansar muito para ganhar um tempo que não tinha certeza que sobraria depois. Tinha certeza que o meu ritmo sem treino cairia muito no final do brevet e também que seria lento nas subidas caminhando. Andando mais na frente também teria a oportunidade de ser ultrapassado e encontrar mais ciclistas durante o brevet.

O percurso de paralelepípedos foi tranquilo e aproveitava para brincar com os demais ciclistas que seguiam lentamente. As subidas antes da BR-386 chegaram e foi preciso força e cuidado, já que havia muitos ciclistas na minha frente e precisava entrar nas rampas aproveitando o máximo do embalo do plano. Depois de embalada, a bicicleta pesada aro 28 anda bem, mas até chegar a uma velocidade mais elevada, é um sacrifício. Em algumas subidas, fui obrigado a desembarcar da bike, mas cheguei ao PC-1 (Ponto de Controle) com menos de 1 h e 30 minutos de prova. No PC -1 pude reabastecer os bolsos com banana.

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein

Saí do PC-1 acompanhado por alguns ciclistas conhecidos com os quais pude pedalar e conversar algum tempo, entre estes estavam o Tales e o Maiquel. Logo depois fomos alcançados por outros, entre estes o Padre e o pessoal do Salto do Jacuí. Conforme o previsto, pude pedalar e ser ultrapassado por muitos ciclistas e também por isto este brevet foi muito especial, porque pude rever velhos amigos, alguns que nem sei o nome e por isto não vou citar.

O percurso na BR-386 estava tranquilo, apesar de algumas subidinhas em que sempre conseguia manter algum embalo. Algumas vezes ultrapassei alguns speedeiros. Não perdia a chance de brincar dizendo que eu é que estava com uma bicicleta boa e forte ao invés destas fraquinhas de carbono. Era só brincadeira mesmo!

O percurso entre Colinas e Imigrante não é difícil, mas tive que descer da Brutosa algumas vezes. O Maiquel seguia comigo e foi bom, pois seguimos conversando. Logo após Imigrante fomos ultrapassados pelo pelotão do Padre que seguia na frente. Tentei seguir no vácuo, mas o ritmo era um pouco forte e preferi economizar a energia. Avisei o Maiquel que seguiria lento depois de Imigrante e ele seguiu na frente. Fiquei pedalando sozinho. Depois de Imigrante o percurso é lindo e já encontrava os ciclistas retornando do PC-2. Nas subidas muito inclinadas a caminhada era mais difícil, com o calor da camisa manga longa. Os ciclistas com bicicleta com tecnologias retornavam com muita velocidade, era possível escutar o som do atrito dos pneus no asfalto e o deslocamento de ar. Chegando perto do PC-2 já pensava no retorno e observava que possivelmente teria que caminhar também para retornar.

Chegando novamente em Imigrantes, segui à esquerda para o início da grande subida até o Muro de Berlim. Logo após a esquina tinha uma moça com uma mesinha servindo Frukito gelado e barra de cereal, uma cena de PBP (Paris Brest Paris). Foi impossível não lembrar sem sentir saudades dos franceses que ofereciam água, café e biscoito ao lado da estrada na França.

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein

Subida com caminhada e calor. Quando a brisa gelada chegava era um bom refresco. Em um momento senti os batimentos cardíacos e lembrei-me de beber mais água do reservatório que levava nas costas, muito bom e muito importante neste momento. Caminhava conversando com outros ciclistas. Alguns ciclistas passaram pedalando, outros paravam ou reiniciavam a pedalada. Um ciclista passou correndo (Luis Freitas) e perguntei se ele subiria tudo correndo, e ele me respondeu: “Sim, já corri 18 maratonas”. O cara seguiu e sumiu, correndo. Senti-me fraco como caminhante. O bom é cada pessoa poder usar as habilidades e treinamentos que tem, no momento que mais convém. Não observei o meu tempo de subida, mas não parei.
Chegamos ao Muro de Berlim. Lá, bem na frente do cemitério, tinha mais uma festinha regada a Picolé Energético Sorvebom. O picolé estava bom, mas bom também foi sentir a animação do proprietário da empresa recebendo os participantes… Tem coisas que não tem preço.

Rota do Sol, no horário do meio dia com sol. Subidas e mais subidas. A energia do picolé não durou muito, pois o desgaste tinha sido grande. Não olhava o horário. A intenção era chegar ao restaurante Bolsoi, PC-3 e km 112 do brevet, antes das 14 horas.

Finalmente cheguei ao PC-3. Carimbei o passaporte e fui procurar algum local para estacionar a Brutosa. Muitos ciclistas estavam por lá e me senti melhor ao ver que cheguei às 12 h 40 min. Estava com alguma folga no horário. Reencontrei amigos e alcancei um casal de amigos, de Passo Fundo. A mulher disse que tinha ficado meio chateada quando viu que eu estava na frente deles no retorno do PC-2.. Seguimos algum tempo quase juntos: a subir, eu os ultrapassava, e a descer, eles seguiam mais rápido.

Em Boa Vista do Sul observava o asfalto de boa qualidade e os declives pensando na possibilidade de descer por ali de skate. Chegamos à Rota do Sol novamente e de cara já precisei desembarcar da Brutosa na subida. Muitas subidas depois, comecei a descida da serra. Fui obrigado a frear, pois além de alguns buracos, tinha medo do garfo que ficava trepidando devido ao aro dianteiro muito torto.

Em Westfália, entrada para Teutônia, mais subidas mostravam que não estava fácil e o final do brevet ainda ia demorar. Eu previa vento contra do PC-4 até o PC-5. Alcancei um casal de Teutônia que seguia caminhando na subida. A mulher me disse que só tinha mais uma subida até Languiru e mais uma até o PC-5. “Não acredito nesse pessoal de Teutônia, disseram-me que este trecho era fácil”, respondi. E ela se defendeu: “Pode acreditar, nós somos iniciantes”.

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein

Ela pediu: “o que é preciso para pedalar 200 km com uma bike destas?” Eu respondi: gostar de sofrer, estar acostumado a sofrer e ter experiência, que ajuda muito, apesar de cada brevet ter suas próprias dificuldades.

O percurso até Poço das Antas é bonito e não tem grandes subidas, mas cada uma, mesmo fraca, se transformava em um sacrifício, pois o vento contra não me deixava embalar. Estava sentindo a falta de energia e chegar ao PC-5 foi o trecho mais difícil. O pessoal do fundão, a turma do final do brevet, estava me alcançando. Minha estratégia de aproveitar o tempo no início do brevet foi correta, pois agora tinha um tempo de sobra para o último trecho.

No trecho final alcancei uma amiga de Passo Fundo que havia perdido o companheiro de pedalada depois que a bike dele teve o quinto pneu furado. A Brutosa não teve nenhum! Aumentei o ritmo e segui sozinho, andando bem com vento favorável. Nesse último trecho pude aumentar a força no guidão, pois se por acaso o suporte quebrasse, eu tinha um tempinho de sobra para fazer a troca ou caminhar até a chegada.

A rua do local de chegada estava trancada com carros que estavam deixando o hotel ou carregando as bicicletas. Tive dificuldades de encontrar o local correto da chegada, mas cheguei em algum horário antes das 19 horas. Não brinquei e não sobrou muito tempo para o final.

Foi um brevet muito bem organizado, e foi muito bom e divertido pedalar com uma bicicleta antiga e velha, vestido com traje típico.

© Luiz Maganini Faccin / felipe klein