Pitadas de ficção

Eu tinha acabado de ganhar de um amigo a edição bilíngue de Drácula, o livro de Bram Stocker, quando me inscrevi na Ultrapeperi daquele ano. Só não imaginava que o cenário da corrida fosse ser tão aterrorizante quanto os caminhos que levaram um dos personagens do livro, o advogado Jonathan Harcker, ao castelo do Conde naquele ano de 1897. O que aconteceu, no entanto, me pareceu muito mais surreal. De fato, nem se, como o Drácula, eu vivesse mil anos, acho que viveria novamente algo tão intenso, extremo, assustador e, ao final, gratificante como o que vivi naqueles dias. Ou talvez sim. Nunca vou saber. As inscrições para a edição de 2019 estão aí. Eu, claro, já estou inscrito. Só que dessa vez vou levar outro livro comigo para o hotel.

© Salvaje Eventos de Buenos Aires

Para começar contando tudo o que me aconteceu, primeiro preciso dizer que a Ultrapeperi (ou Ultrapepiri, no lado argentino) acontece numa das mais importantes reservas da Biosfera da Unesco, na Selva de Yaboty, bem na divisa de Santa Catarina com a Argentina, que é formada pelo Rio Peperi-Guaçu. Ali, naquela área de mais de 220 mil hectares, o governo argentino criou uma gigantesca área de proteção ambiental, nos moldes daquela que muita gente já conhece em Foz do Iguaçu. Com uma diferença: aqui a selva não é gourmet. A selva é selvagem, mesmo. A selva de Yaboty é aquilo que é há 10 milhões de anos: densa, rica, imensa, intocada.

© Salvaje Eventos de Buenos Aires

O que eu não imaginava naquele ano é que acabaria vivendo uma situação tão absurda como a que vivi para disputar a liderança da prova. Claro, eu tinha que ter imaginado. Correndo há tantos anos em maratonas de MTB, era meu dever me informar sobre o local, a previsão do tempo, as condições da natureza no local, e principalmente sobre os meus principais oponentes. Mas, que nada. Fui sem perguntar nem ao menos onde ficava o hotel. Na lista de inscritos, quando cheguei, é que vi um nome diferente, que ninguém conhecia. Prefiro nem lembrar desse nome aqui, e por isso vou omiti-lo. Quem quiser saber, que me pergunte por e-mail. Vocês entenderão no final.

Quando cheguei em São Miguel do Oeste, uma daquelas lindas e bem organizadas cidades de Santa Catarina, me hospedei num hotel que parecia um cinco estrelas. Poucas vezes fiquei num lugar tão confortável. E por conforto não digo apenas a estrutura, que era, sim, magnífica, mas a hospitalidade: nem meus pais me recebem com tão largos sorrisos quanto os recepcionistas do hotel me receberam. Aprontei o meu equipamento e fui para a cama cedo. Ao meu lado, aquele livro de capa dura, preta e vermelha, imitando a cor da capa e dos olhos do Conde Drácula. Ao fundo da imagem principal, as grades do castelo.

Como não tinha muito sono, devo ter lido mais de cem páginas. Jonathan, o jovem advogado, rumava em uma carruagem para negociar os termos da compra de um imóvel pelo famoso vampiro. As estradas escuras, cercadas por pinheiros altos, ficavam ainda mais frias na descrição de Bram Stocker. Lobos uivavam, corujas davam rasantes sobre a cabeça de Jonathan, que a tudo observava pela janela do veículo puxado por dois enormes cavalos daquelas raças com pelos nas patas. Na entrada do imenso castelo de uma centena de cômodos, o Conde em pessoa o recebeu. “Você quer entrar por sua livre vontade, meu amigo?”, perguntou o anfitrião. Jonathan disse que sim. Mal sabia ele: aceitar entrar era sujeitar-se às condições de Drácula.

Dali para frente todos já sabem o que acontece. O jovem advogado fica preso no castelo com um vampiro que só quer dar um jeito de beber o seu sangue. Sei lá quando, mas no meio de uma dessas páginas, com um conde pálido de dentes brancos na cabeça, adormeci para só acordar mesmo de verdade na largada da prova. Seriam 130 km em dois dias, por trilhas e estradas por dentro daquela majestosa floresta tropical.

© Salvaje Eventos de Buenos Aires

O dia não tinha conseguido amanhecer tão bem quanto eu, pelo visto, porque as nuvens proibiam o sol de aparecer. Na largada, o vento uivava, o chumbo do céu parecia querer desaguar a qualquer instante, e carcarás e águias que eu só via de longe gritavam como se estivessem à nossa espera. Eu me senti o próprio convidado de Drácula em seu castelo, um castelo que, no entanto, era erguido sobre árvores gigantescas e uma vegetação densa como um emaranhado de teias de aranha. Logo lembrei da regra número um dos vampiros. Sim, eu também, tal como Jonathan, tinha aceitado participar daquilo: eu mesmo tinha feito a minha inscrição. Que nada, um livro assustando um homem adulto. Que besteira, pensei.

A contagem regressiva animou os ciclistas, mas o tiro de largada pareceu caprichosamente coordenado com a trovoada que então começou a desaguar hectolitros e mais hectolitros de chuva no percurso. Ao meu lado, um cara concentrado parecia flutuar com a sua Cannondale Scalpel Hi-Mode Team. Era aquele do nome diferente. Além dele, outros conhecidos atletas de alto nível estavam juntos. Ricardo, na sua Scott Spark 900, um foguete; Anderson, na Trek Top Fuel 9.9, além de outros com as bikes tops das melhores marcas: uma Orbea Oiz, uma Santa Cruz Blur, aquela linda Soul Volcano e uma BMC Fourstroke. Eu pedalava a minha Specialized Epic-Sworks, já bem experimentada nesse tipo de terreno. Quando tentei cumprimentar o cara da Cannondale, nos metros iniciais neutralizados, não sei se foi alucinação minha ou o quê, mas notei dentes caninos mais pontudos que o normal e uns olhos estranhamente avermelhados. Seguimos assim, nos estudando, naquele pelotão das bikes tops, um pelotão das galáxias, como diria um amigo meu, até que foi dada a largada de verdade. A chuva apertou e o céu que antes se recusava a amanhecer agora definitivamente estava decidido a voltar a dormir. Era um céu de grafite, pesado, carregado de agouros e de alertas. Não deveríamos, pensei, competir numa situação dessas, mesmo numa ultramaratona de selva. A organização não queria nem saber do que pensávamos. Aquilo não era um passeio. Era uma ultramaratona, afinal de contas, e, se quiséssemos algo fácil, que fôssemos caminhar na beira-mar. Com a largada, a velocidade logo subiu. E, com ela, a quilometragem começou a se consumir debaixo de mim. Dez, vinte, os quilômetros voavam. Geralmente fico muito concentrado, mas não tinha como deixar de notar animais que eu só tinha visto em zoológicos parados na beira da estrada para conferir o nosso ritmo. Além do sujeito estranho na Cannondale Scalpel, havia mais dois no nosso grupo, o da Soul e o da Scott.

Mais trovoadas e mais chuva. Pensei até que pudéssemos estar no meio de um eclipse solar, tamanha a escuridão naquelas estradas fechadas pela floresta argentina de Yaboty. Não sei se era a influência do livro que tinha lido naquela noite ou do nervosismo da prova, ou ainda daquele cenário inacreditável, o fato é que nunca as correntes das bicicletas rasparam de modo tão sombrio nas catracas, nunca o vento quente e úmido foi tão arrepiante. Nunca os redemoinhos de chuva nas copas das árvores se pareceram tanto com algo vivo, assustadoramente vivo. E pensar que eu podia ter simplesmente ficado na cama e assistido à Fórmula 1 daquela manhã.

As trilhas agora se fechavam. Uma ponte de madeira — uma pinguela mesmo, com cabos de aço carcomidos pela ferrugem — estreitava o percurso a ponto de apenas um ciclista conseguir passar por vez. Dei espaço para o sujeito da Cannondale. Ele que passasse primeiro. Acho que fiz isso por medo mesmo, confesso, porque em situações normais de prova, teríamos disputado no ombro a passagem. Depois, outra ponte surgiu, dessa vez de pedras, em pequenos arcos, como aquelas pontes medievais da Europa. Era o ponto de hidratação. Nós quatro, do pelotão da frente, passamos direto. Pontos de hidratação são para fracos, pensei. Nós, profissionais, tínhamos a obrigação de aguentar no couro. Até ali eu não tinha sequer visto o cara da Cannondale tomar água. Nenhum gole, nenhuma vez, e já devíamos estar perto de completar 50 km. Eu, da minha parte, já estava no meio da segunda caramanhola e cogitei seriamente em pegar um copo d´água, mas segui.

Um ciclista profissional se acostuma com tudo. Acostuma-se à tensão das corridas, às intempéries, aos quartos ruins de hotel (que não era o caso dessa vez, ainda bem), aos atendentes de aeroportos que sempre desconfiam da mala-bike.  A vida de atleta tem o glamour que se imagina. Eu, no entanto, ainda não estava acostumado àquele olhar gelado do meu oponente, à sua estranha pele pálida, aos lábios vermelhos demais, como se tivesse usado um batom arroxeado, e foi por isso que, acho, acabei me desconcentrando e furei o pneu dianteiro. Que azar, pensei. Mas tudo bem, o conserto não me levaria nem um minuto. Dava tempo. Olhei para trás e os outros dois ciclistas, o da Soul e o da Trek, vinham juntos e passaram por mim. Agora era eu, sozinho para encontrar o espinho — ou seja lá o que fosse responsável pelo furo —, colocar a câmara e sair pedalando de novo.

A chuva continuava implacável. O que me causava estranheza agora era o silêncio. Sem ninguém pedalando ao meu lado, sem o ruído da bicicleta em marcha, devorando os quilômetros debaixo das rodas, tudo o que se ouvia era só o meu coração galopando no peito para entrecortar os chiados da floresta. E como se quisessem me avisar, os animais vieram. Primeiro, para meu susto — sério, achei que ia enfartar — uma onça pintada, gigantesca, que devia pesar mais de 200 kg. O bicho cruzou a estrada bem na minha frente. Andava calma, lambendo os beiços, aparentemente satisfeita da última refeição. Quando me viu, parou, rosnou, abanou o rabo, se espreguiçou e se foi. Depois foi a vez de uma raposa marrom passar, farejando o meu suor de longe. E, por fim, quando eu já juntava as ferramentas, uma harpia, aquela enorme águia brasileira, me olhava e grulhava trincando o bico encurvado. Se eu acreditasse em maus presságios, desistia ali mesmo. Deveria ter desistido. Mas não. Segui adiante até que, para a minha surpresa, um quilômetro adiante, a Soul estava caída, também com o pneu dianteiro furado, só que não havia sinal do ciclista por perto. Deixei que a organização se encarregasse disso e segui, buscando o sujeito estranho da Cannondale, que devia estar na ponta. A harpia, aquele bicho estranho, um misto de coruja e águia, me seguia. Voava na frente e parava para me esperar, e acompanhava com aqueles olhos de predadora as minhas pernas surrando os pedais de raiva por estar ficando para trás. Várias vezes limpei a saliva que escorria de gana pelo canto da boca. No entanto, mais alguns quilômetros depois foi a vez de encontrar a outra bike abandonada, a Trek, também com o pneu dianteiro furado. Aquilo não podia ser mera coincidência, pensei, mas, sem alternativas, continuei, dessa vez já sem água, no ritmo que as coxas bombeadas por um coração agora descompassado de medo podiam pedalar.

Foi então que avistei o sujeito da Cannondale à minha frente, parado, com aquela postura régia de nobre europeu, aquele sorriso branco malicioso, os dentes estranhamente brancos e agora ainda mais pontiagudos e afiados. Ele não fez sinal, não pediu que eu parasse, não falou uma palavra, nada. Só me olhava, com um olhar que atravessava as minhas córneas e se instalava dentro do cérebro. Como se estivesse hipnotizado pelos seus olhos vermelhos (pensei mil vezes se não seria efeito dos óculos de ciclismo, mas logo vi que as lentes eram transparentes), reduzi a velocidade e fui devagar parando perto dele. A harpia parou também. Um pica-pau batia numa árvore próxima, em busca de vermes suculentos para o almoço, e uma jaguatirica e uma onça, como se fossem gatos obedientes, esperavam sentadas na estrada um sinal dele. Foi então que ele disse, num sotaque castelhano antigo, típico das misiones argentinas na época dos jesuítas do século XVI: “¿Quieres parar aquí para ayudarme?”. Sim, eu disse, sem nem pensar. “¿Es de libre voluntad, por lo tanto, que ingreses a esta selva, que es mi castillo?”, ele perguntou, como se confirmasse, e me fez um sinal para entrar na selva.

Naquela hora mais uma trovoada irrompeu no céu. A floresta escura, eu sabia, seria o meu fim. Mesmo assim era impossível resistir. O mesmo fim que os outros dois ciclistas tiveram e que, eu podia supor, não devia ter sido um fim digno ou mesmo nobre, mas sim um doloroso fim, cercado de sofrimentos e de angústias. Era o que me esperava. O céu trovejou mais uma vez, e outra, e outra, tão forte que parecia estourar seus raios dentro da minha cabeça, o que era estranho, porque os trovões ecoavam como tambores ritmados e o pálido ciclista da Cannondale sorria como se fosse ele mesmo, tão encantador, o recepcionista simpático daquela floresta gutural. As trovoadas foram ficando cada vez mais fortes e então agora os céus chamavam o meu nome. Sim, chamavam e repetiam: “Eduardo, Eduardo, Eduardo”, até que uma voz familiar passou a pronunciar palavras que me pareciam uma língua estranha, mas depois soavam muito familiares. Com os animais ao seu lado, a harpia agora no seu ombro, os dentes cada vez mais proeminentes, o ciclista se aproximava sem fazer barulho nos galhos secos do chão. Eu queria gritar, queria chamar alguém, mas sabia que ninguém me ouviria. Ele sorria, satisfeito, como se, ao apreciar o meu desespero, apreciasse a presa em seu sofrimento antes da morte, sentindo um grande prazer. Os segundos pareciam intermináveis. Se fosse para morrer, que tudo aquilo passasse logo. Foi quando ouvi um ruído de fechadura, o ruído típico das engrenagens antigas girando dentro do mecanismo de uma porta velha, o que não só chamou a minha atenção, mas também a dele. O barulho vinha com o tilintar de um molho de chaves, totalmente deslocado na Selva de Yaboty. Sei que tudo o que senti, quando fechei os olhos diante daqueles dentes perto do meu pescoço, foi um tapa no rosto. Ao abrir os olhos, já não havia selva, vampiro, harpia ou onças por perto. Era o recepcionista do hotel avisando que eu estava atrasado para a largada ao mesmo tempo que me pedia mil desculpas por entrar assim no quarto, mas que o fazia porque tinham ligado preocupados da organização — eu nunca me atrasava para uma prova.

© Salvaje Eventos de Buenos Aires

Ah, que bom que tudo aquilo não tinha passado de um pesadelo, respirei, pensando aliviado, enquanto lavava o rosto ainda com um pouco de medo. Não sei se foi o café da manhã no hotel ou o dia azul lá fora, ou ainda se foi a beleza majestosa e encantadora daquela floresta, ou, então, o fato de não ter encontrado nenhum ciclista pálido e de dentes afiados no pelotão, mas a verdade é que todas as minhas lembranças dos dois dias pedalando ali com toda aquela estrutura de prova internacional fizeram daquela a melhor prova que já disputei em toda a minha vida, em décadas de ciclismo. Chegar à linha final em penúltimo, como eu sempre chego desde que parei de treinar forte, foi o coroamento de um percurso de campeão, com as trilhas deliciosas, rápidas, pedaláveis em cada centímetro, que enchiam os pulmões com a umidade do ar oxigenado pela vegetação transbordante de uma reserva de biosfera digna desse nome. Por via das dúvidas, só terminei de ler o livro de Bram Stocker em casa, depois do almoço, num domingo de bastante sol. Para a cabeceira da cama, a leitura antes de dormir, reservei um livro sobre ciclismo.


Depoimento Rubens Albert Biston Reichert

© Salvaje Eventos de Buenos Aires

Recém-chegado a Chapecó, conheci a loja Giro Bike, onde fui muito bem recepcionado e onde também tive o conhecimento deste evento que me chamou muita a atenção por ser internacional; iniciado no Brasil e percorrendo a floresta argentina.

Fiz minha inscrição e, totalmente motivado, iniciei meus treinamentos com os parceiros da Giro Bike MTB.

Quando o grande dia chegou, com os batimentos já a ponto de prova, por causa da ansiedade, me deparei com uma belíssima organização e uma mescla de ciclistas Brasileiros e argentinos, em total integração na retirada dos kits em uma cervejaria, onde o clima era de muita confraternização e amizade.

No dia seguinte, iniciamos a corrida e a adrenalina tomou conta de todos.

O primeiro sentimento que senti foi o de ansiedade, sem dúvidas, porém, a amizade e o companheirismo aos poucos tomavam conta e o resultado era uma avalanche de pensamentos positivos.

Mas nada disso seria possível sem o trabalho duro e perfeito da comissão organizadora do Ultrapepiri 2018, que, com todo carinho, dedicação e atenção aos ciclistas, deixou o percurso muito fluido e ficamos despreocupados, deixando curtir cada detalhe do percurso.

Falando em percurso, que paisagens! Os lugares de beleza natural com desafios de vários níveis, tornaram o evento prazeroso para ciclistas experientes e para amadores que só desejavam completar a prova.

A integração com a natureza foi o destaque, junto com a diversão e os desafios que cada ciclista teve que superar.

No retorno ao Brasil, fomos agraciados com chuva, que deixou o percurso muito mais divertido e com certeza foi a “cereja do bolo”, afinal, ir para a floresta e não se deparar com os desafios que só o MTB pode proporcionar certamente não deixaria a aventura completa.

Enquanto estou aqui relatando minhas experiências, reparei que os sentimentos já estão presentes novamente, pois já fiz minha inscrição para a próxima edição.

E recomendo isso a todos os amantes de MTB, pois é uma experiência inesquecível!