Toda viagem espera ser contada e muitas das histórias mais famosas da humanidade são relatos de viagens. Desde livros fundadores como a Bíblia e o Corão até narrativas como a Epopeia de Gilgamesh, primeira epopéia ocidental, as viagens são parte intrínseca do ser humano. Hoje, há muito deixamos de ser nômades, mas ainda resta dentro de nós o desejo de movimento, a vontade de ver lugares novos, novos sons e cheiros. E viajamos. Às vezes, por necessidade de sobrevivência, outras, por lazer, descanso ou em busca de aventuras. Dentre as formas que podemos usar para classificar as viagens, uma é a partir do meio que usamos para nos mover. Assim, podemos viajar de carro, avião, de barco ou a pé. E de bicicleta, nas chamadas cicloviagens. Muitas pessoas que realizam cicloviagens, ao voltarem, colocam suas experiências em formato de livro. Se de um lado temos o viajante convertido em escritor, do outro, teremos o leitor convertido em viajante. Este é o assunto deste texto: livros de cicloturismo e as experiências de um leitor-viajante.

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Os livros que lemos ao longo da vida fazem parte de quem somos. A maioria será esquecida, alguns até leremos mais de uma vez, e uns poucos irão nos acompanhar por toda a vida – mesmo que não voltemos a lê-los.

Estava com 11 anos, esperando que minha mãe, professora, saísse de uma reunião da escola. Uma espera comum na rotina. Durava uma hora, que eu passava lendo. Um dia me sentei com o 20.000 Léguas Submarinas. Dezenove anos depois, ainda lembro de como fiquei sem ar junto com os personagens quando escaparam de um afogamento por pouco. Eu não poderia estar mais seguro, no pátio vazio da escola em que minha mãe trabalhava e ainda assim o livro esperava no chão enquanto o fôlego me voltava. Não lembro quando aprendi a ler. Mas lembro que foi nesse momento que senti o que a leitura era capaz de proporcionar. Os anos seguintes foram vividos como se eu tivesse duas vidas. A comum em que ia pra escola, fazia as lições, arrumava a casa; e a vida mais verdadeira, nos livros, onde experimentava emoções mais fortes e aprendia lições mais profundas. Já adulto é que fui perceber a leitura como parte fundamental da minha vida, não como um tesouro escondido, um jardim secreto para onde correr dos problemas.

Por isso, uma das formas que tenho de me aproximar de algum assunto de interesse é através da leitura e não foi diferente com o cicloturismo. Comecei lendo os relatos que encontrava na internet, mas tanto o formato quanto o conteúdo não me entusiasmavam; por serem mais como diários, os dias narrados ainda eram muito próximos de quando foram vividos. Livros assim são bons para acompanhar viagens que estão sendo feitas, mas não para viajar junto. A viagem que, como leitores, podemos realizar, vem através dos livros. Quando olhamos para o livro fechado, para o seu tamanho, é como olhar o mapa de uma estrada onde logo estaremos. Da primeira a última página, vamos nos apropriar de uma viagem que não é nossa, mas que irá nos transformar da mesma forma.

“Somos todos viajantes porque uma viagem não é o lugar para onde vamos, nem a forma como vamos, antes é a atitude que temos diante da vida, a disposição para enfrentar e resolver os problemas que nos cabem.”

O primeiro livro que me chegou em mãos foi O Mundo ao Lado, do Arthur Simões. A viagem relatada aqui talvez seja das mais duras que pude ler. A ênfase que Arthur escolheu para dar ao livro não é a da vida que se torna mais bela por causa da viagem, mas do mundo que se torna mais real, e os custos que isso traz. Lemos sobre os problemas de saúde que ele teve, da pobreza que encontrou e dos perigos, até sua volta ao Brasil, quando ele pode ver que o país onde nasceu também é marcado por graves problemas sociais. A narrativa de Arthur é a de sua transformação. A ênfase nas dificuldades não vem para fazer dele um herói, vem para ilustrar que uma viagem transformadora não se faz sem risco, por que é apenas no risco que podemos nos perder, sofrer e descobrir que nossa força pode até ser pouca, mas é ela que temos.

O primeiro relato de uma volta ao mundo realizada por um brasileiro inspirou outras viagens e, pra mim, a força de que se vale é ainda encontrada em Olinto, na simplicidade com que encara os desafios e a coragem para arriscar um novo caminho. Ler o livro do Antonio Olinto é entrar em um sonho que ainda não acabou.
Argus Caruso escreve pouco e mostra muito. Com delicadeza, o livro traz fotos que mostram não apenas o que Argus viu, mas também como ele foi visto, por exemplo nos olhares de seus retratos, assim como mostra as paisagens que foram seu cenário, talvez por apenas um dia, ou menos.

Rafael Limaverde é o autor de Pelos Caminhos de Nuestra America (inspirado em Olinto), sobre sua viagem pela América Latina. É um relato que encanta pela leveza e bom humor, além dos desenhos de Rafael.

Os livros do Valdo, para mim, têm um sabor especial. Não se destacam pela escrita, sendo muito próximos de anotações do dia a dia da viagem, quase um diário. Mas Valdo era padre, uma escolha normalmente ligada a um vocativo muito forte. E depois dos 60 foi que Valdo descobriu o cicloturismo e conseguiu também assim, se achar naquele momento de sua vida, em que a institucionalização de sua fé passava por mudanças. Quando conheceu que era possível viajar de bicicleta, havia pedido um afastamento da igreja para pensar. Ele morreu durante sua viagem de volta ao mundo.

“O que buscamos num livro são as consequências da viagem.”

Estes livros não apenas abriram as portas do cicloturismo pra mim, também me levaram a conhecer longas trilhas feitas a pé, viagens de barco e mesmo de moto ou carro. O que faz com que essas leituras sejam procuradas? Por que ler sobre uma experiência tão pessoal de alguém que provavelmente não vamos nem conhecer? O primeiro motivo, penso, é a identificação com essa experiência. Tanto para ver como é essa viagem que também queremos fazer, ou para ver como acontece com outras pessoas, aquilo que nós mesmos já vivemos.

Os relatos de bicicleta correm o risco da repetição. Alguns temas são recorrentes, como a receptividade e a solidariedade, as dificuldades físicas e os problemas mecânicos. Problemas com polícia ou exército também são comuns, pra não falar da relação com os motoristas de carros. Já os caminhoneiros costumam ter boa fama. Além desses acontecimentos mais ou menos comuns a todas as viagens, o que buscamos num livro são as consequências da viagem. Importa como a viagem transformou o viajante. É isso que acompanhamos na leitura. Os desafios físicos somados aos emocionais vão modificando o viajante ao longo de sua trajetória. Nós, que viajamos lendo, vamos nos identificar conforme o relato superar a dimensão individual e propor questões mais amplas.

Como faz Guilherme Cavallari em Patagônia, Pumas Não Comem Ciclistas. Este é, pra mim, o livro de cicloturismo mais bem escrito até o momento. Cavallari não é apenas um viajante que narra sua aventura. É também um leitor experiente, o que torna a sua escrita mais rica. Além disso, ele não apenas viajou para a Patagônia, ele viaja para lá, conhece a região e seus problemas. Essa soma de fatores cria em seu livro um caminho de muitas vias para o leitor percorrer. Ao lado dos desafios pessoais, e lá estão o desgaste físico e emocional, também vemos problemas que a região enfrenta no presente e muito de sua história do passado, contada partindo das leituras que Cavallari já fez.

É preciso dizer que muitos livros ficaram de fora. Da mesma forma que durante uma viagem precisamos deixar lugares e estradas que gostaríamos de conhecer para outra oportunidade, também os leitores precisam deixar livros para depois. Assim, que possamos tirar o melhor de cada escolha. Que sejam livros e viagens, experiências transformadoras – não no sentido de que viajar ou ler nos torna alguém melhor, torna apenas outro. Ao fim de uma viagem ou de um livro, se não há a sensação de mudança, algo perdemos pelo caminho.

A leitura dos relatos de viagens, de certo modo, me trouxe para uma relação diferente com o que busco num livro. Embora nunca tenha deixado o interesse pela ficção, em um dado momento, eu sentia vontade de mais veracidade. Que a linguagem se remetesse o mais diretamente possível à experiência narrada. Não a imaginação do escritor, mas a vida, era o que eu buscava. Por isso que os livros-relatos ganharam espaço. Não demorou muito para que também encontrassem um limite.

Salva Rodriguez, espanhol que pedalou 9 anos pelo mundo, diz que o viajante é um egoísta que sai para ser melhorado pelo mundo, não para melhorar o mundo. O leitor, além de egoísta, vê-se também preguiçoso, por que quer ser melhorado pela experiência do outro. Brincadeiras à parte, a vida é curta. E nos resta saber onde buscar os ensinamentos que precisamos para podermos viver o que nos coube da melhor forma possível. Às vezes, as lições estão na estrada, outras, estão nos livros. Onde mais? Talvez em cada lugar em que alguém procurar aquilo que de si ainda está solto pelo mundo, esperando ser recolhido.

Somos todos viajantes porque uma viagem não é o lugar para onde vamos, nem a forma como vamos, antes é a atitude que temos diante da vida, a disposição para enfrentar e resolver os problemas que nos cabem.

No fim, quando pudermos reconhecer que nossa vida é feita das decisões que tomamos, estaremos mais equipados para decidir. As viagens que fizermos e as leituras em que nos aventurarmos serão, então, a verdadeira escolha do que desejamos viver, de quais são os nossos interesses, para onde olhamos e como nos colocamos diante do mundo. Ao leitor-viajante, cabe olhar para si, sem pretensões, e perceber para onde seus ventos sopram.