É difícil saber o que dita tendências. Por vezes, alguém chama a atenção de algumas pessoas e assim nasce um novo grupo, com cultura e interesses próprios. O homem é uma caixinha de surpresas neste campo. O tempo no decorrer da história modifica estas culturas. Não é de hoje que os restauradores, colecionadores ou reconstrutores de bicicletas existem. Como surgem novas tribos de hábitos específicos com hobbies e culturas tão próprias é uma incógnita. Onde tudo começou? Hoje é impossível precisar, mas a cultura de recuperar a história através desta busca incessante por elementos e caracterizações de uma época também se modifica de acordo com gostos e observações de cada autor. Este, certamente, é um assunto imenso da história da bicicleta. É possível que este resgate da história seja tão importante quanto a aposta sobre para onde as novas culturas seguirão.

As culturas surgem do dia para noite! Uma nova era da bicicleta desperta novos ciclistas. Este novo período traz de volta também os adormecidos, cria uma nova gama de entusiastas que varia muito de acordo com a região e influências locais. Alguns preferem bicicletas novas, tipo mtb, outros, road bikes, alguns são personalidades exemplares do cycle chic, talvez de movimentos ciclísticos em favor de necessidades recentes do trânsito caótico. Com todo perfil de cidadão que se interessa pela bicicleta, surge aos poucos este peculiar usuário que pensa diferente. Ninguém sabe o porquê, mas as premissas de uma cultura sempre criam suas diferenças e diferenciais. Estamos em tempos diferentes, onde as culturas, os comportamentos e tendências surgem misturados, vindos de outros períodos e grupos distantes. Nós estamos falando de um percentual muito pequeno, porém, crescente de adoradores de bicicletas que buscam peças antigas em seus projetos. Restauradores, reconstrutores, comerciantes de um material denominado old school ou vintage. Tudo indica, inclusive pela própria popularidade crescente da bicicleta, que estes grupos “não convencionais” irão crescer gradativamente por motivos do crescente interesse da sociedade pela bicicleta, também porque uma sociedade maior tende a encaixar-se em culturas existentes.

Da evolução dos materiais

Durante a história da bicicleta no Brasil, válido também para muitas regiões do planeta, percebeu-se que o velho não tinha valor. O valor do velho era apenas de velho! O velho era visto pelas pessoas como algo sem serventia. Elas não queriam mais, pois no mercado surgia o novo, um produto mais moderno sempre esteve na frente das preferências. Definido como “melhor” para o consumidor, o novo encerrava a história do antigo.

De certa maneira, tudo que é mais novo carrega um esforço tecnológico que se acumula, que tende a resolver problemas das gerações anteriores. Em grande parte dos casos dos processos construtivos, o prazo de validade já estava estabelecido antes da primeira peça surgir. Ao contrário do que pensam alguns ciclistas, os itens modernos, mesmo que menos duráveis em alguns casos, são necessários desta forma e foram bem elaborados. Se em seis anos um determinado produto estiver superado tecnologicamente, porque produzi-lo para perdurar 40 anos? E como afirmar que um Shimano XT de hoje têm menos qualidade que o de ontem? Acontece e aconteceu muito este tipo de afirmação. 

É bem verdade que alguns componentes dos anos 90 se apresentaram excelentes, verdadeiros mitos. Talvez esta afirmativa possa ser melhor comprovada nos grupos de base, onde o valor de investimento do ciclista é menor, tal como Shimano Altus, que certamente, por ser um grupo de largada, possui menos atenção do fabricante ou até mesmo um desgaste programado para ser substituído. Os grupos de mtb chegaram ao mercado, verdadeiramente, ao final da década de 80. Eles eram elaborados com poucas referências de uso e fabricantes de grande porte, precisavam de peças de qualidade para superar a expectativa dos consumidores. Então, alguns produtos, mesmo de largada (grupos mais simples), apresentavam uma qualidade muito grande. Algo que talvez possa ser comparado com sucesso na atualidade. A verdade é que não dá para garantir nem que é um fato, nem que não é. Mesmo que algumas teorias e relatos possam sugerir que o câmbio Shimano Altus C10 de 1993 seja muito mais bonito, durável e talvez eficiente que o atual, seria preciso comprovar cientificamente. Para provar isto, seria necessário comparar um Altus novo, e um Altus antigo que sobreviveu aos tempos, e então colocar em duas bicicletas idênticas e jogar nos mesmos terrenos em condições de mesma situação. Isto é extremamente difícil, pois até mesmo os pilotos dos testes deveriam ser os mesmos, ou então que fossem intercambiados junto das bicicletas. Eis a complexidade da ciência comparativa.

Partindo do princípio de que a redução de peso seria sempre a realidade necessária nos componentes atuais, é possível que realmente exista esta redução de resistência em alguns componentes em relação ao passado. Isto se deve à redução de massa de determinados elementos. Para reduzir peso ou até mesmo viabilizar a agilidade dos componentes, a utilização de elementos menos resistentes ou de menor dimensão se justifica. Não parece muito comum observar um câmbio XTR da década de 90 sendo aplicado em competições atuais, embora ainda seja uma peça de grande qualidade e desempenho. O esgotamento de determinadas peças pela renovação dos estoques comerciais inviabiliza que se compre exatamente o mesmo modelo. É característica da própria evolução do sistema comercial que demonstra um comportamento de substituir, obviamente para sobreviver e competir no mercado. Não é apenas uma intenção de vender, de excluir o ultrapassado, mas uma necessidade de apresentar produtos que favoreçam o desempenho do atleta. Acontece em todo segmento esportivo. E saber desta parte da história, nos permite avaliar o passado, as referências e inclusive entender o perfil do entusiasta que busca por estas peças antigas. Novo é bom para quem? Antigo é ruim para quem? Aliás, entre velho e antigo ocorre uma diferença, reforçada pelo estado em que se encontra o produto do assunto!

A legião de garimpeiros

Esta tribo de garimpeiros não tem limite na busca por componentes e bicicletas de épocas passadas. Eles procuram em velhas oficinas, na garagem de amigos, em briques e na internet. Parecem cupins a procura de madeira macia. Curiosos descobrimentos são descritos por histórias do tipo: “estava abandonada na garagem do meu primo!”, ou “fui no brique e encontrei toda empoeirada e estragada!”, ou ainda, “ganhei de um vizinho que se mudou!” ou outras histórias quase impossíveis de acreditar, tal como “encontrei no lixo ou na sucata!”.

A internet agregou esta prática e melhorou muito as chances do sucesso do garimpo. Com fotos fica mais fácil de correr atrás, não se perde tempo com falsos alarmes. O praticante do garimpo é um vivente que dorme de olhos abertos. Ele pesca o assunto em rodas de conversa da bicicleta, sempre atento. Passa na frente de lojinhas de bairro, espiando, procurando por sinais que identificam estas bicicletas: tubos de Cr-Mo no quadro das bikes, freios cantilever de alumínio, coroas grandes etc. Algumas vezes, este entusiasta compra bicicletas inteiras que estão em péssimo estado de conservação, para remover uma ou duas peças. Aí mora o motivo principal do elevado valor destas peças… Quanto custa comprar uma bicicleta inteira para remover um câmbio traseiro e dianteiro? Mesmo que a bicicleta no conjunto custe uma bagatela, se o restante das peças estiver ruim ou sem viabilidade de venda, fica a cargo do que estiver em boas condições absorver o restante do “investimento”. As peças boas viram moeda de troca para outros componentes antigos, talvez sejam apenas parte para formar um grupo completo. Quanto vale um grupo completo em perfeito estado? Ás vezes, pode custar mais que o grupo novo e atual do mesmo nível. Estas peças são cruciais no processo de restauração, podem significar o término de uma “jornada reconstrutiva”. Alguns colecionadores possuem grupos completos fora de bicicletas. Novos e usados, no ebay, no mercado livre e em outros sites são encontradas algumas joias. As lojas, de maneira geral, não costumam vender materiais usados. Não é fácil encontrar, é preciso muita paciência e dinheiro no bolso. Comprar algo incomum ou raro é o mesmo que arriscar um jogo de sorte ou azar. Você pode até encontrar, mas precisa ser o primeiro pronto a fechar negócio.

Em todo ofício, seja de trabalho ou lazer, a prática de longa data faz a experiência. Em alguns casos, compra-se na empolgação e se perde a atenção a detalhes mínimos. Pode ser um câmbio traseiro folgado, trocador quebrado internamente, cubos cariados, relação desgastada, quadros tortos ou quebrados, ou pior, mal consertados. A manutenção de uma bicicleta faz a diferença entre um bom produto de garimpo. Materiais que sofreram manutenções de má qualidade ou que sofreram inúmeras manutenções, geralmente tornam-se impraticáveis de reutilização. A corrente é dos itens mais raros na reutilização, e dependendo da história do conjunto, o cassete também será reprovado. Aliás, como utilizar um cassete gasto em combinação com uma corrente nova? Isto é possível apenas quando o cassete possuir um desgaste mínimo, portanto, se já passaram duas correntes por ele, na grande maioria dos casos, o cassete está perdido. As coroas do pedivela também são um sinal clássico merecedor de atenção. Geralmente, a coroa pequena está com desgaste maior, mas é possível observar o desgaste, que depois de um pequeno treinamento com os experientes, pode evitar dor de cabeça ou perdas. Isto vale para folgas da articulação do câmbio traseiro e dianteiro… Ao receber uma bicicleta completa, você precisará avaliar a mesma por completo. Dê preferência por realizar esta inspeção durante o dia, com algum tempo. A noite e a pressa são inimigas da perfeição nesta atividade do garimpo.

Quanto vale?

Muitas pessoas perguntam quanto vale o fruto de um garimpo. Esta é a pergunta mais difícil de todas neste mercado ou hobby. O garimpo, se visto como prática comercial, pode ser complicado se houver necessidade de faturamento. Quem faz negócios com intenção de ganhar dinheiro precisa ter margem para ganhar. Nesta margem devem ser contabilizados gastos com deslocamento, horas de trabalho na procura, horas de trabalho na limpeza, entre outros. O repasse dos prejuízos quando as compras não são bem-sucedidas ou com imprevistos variados, inclusive com a acidental queda de componentes, tornam o valor final dos produtos desinteressante em alguns casos. Por isto, a melhor maneira de fazer este trabalho é ter calma na procura. Deixe a empolgação de lado, isto é tarefa para quem tem controle emocional e uma excelente observação para avaliar peças.

Algumas pessoas arriscam que os grupos completos podem valer muito mais que separadamente, pois todo trabalho já foi realizado. Restaurar uma bicicleta pode ser muito mais fácil possuindo o grupo exato e em perfeito estado. Algumas particularidades dos grupos podem ser determinantes, tais com a abraçadeira do câmbio dianteiro, peça em que temos opções diversas nos anos 90, sendo as mais comuns de 28,6 mm e 31,8 mm, mas ocorre também a 34,9 mm, bem mais rara. Neste caso, pode ser bem difícil encontrar o grupo certo. Você consegue adaptar com boa qualidade as abraçadeiras de 34,9 mm em 31,8 mm, ou até mesmo em 28,6 mm, mas se precisar inverter estas exigências, restou a impossibilidade. Este é um dos fatores que encarece o projeto.

Infelizmente, não dá pra precisar o valor de um grupo, mas em termos de referência, podemos dizer que os grupos de base podem custar tanto quanto ou mais que o mesmo grupo novo e atual. Um grupo Shimano Acera em perfeito estado com 20 anos, certamente tem muito valor para quem está restaurando uma Gary Fisher com 20 anos. É certo que esta bicicleta, para o comprador certo, valerá algo equivalente ou superior a uma bicicleta nova de nível semelhante. Já se viu bicicletas perfeitas da década de 90 serem vendidas por mais de dois mil reais. Assim como outras raridades dos anos 70 ou 80. O que vai descrever o valor do conjunto é o estado do material, sua funcionalidade perfeita e fidelização em relação ao original. Pneus, aros, e outros itens de época devem ser os mesmos… Difícil, não é mesmo?

Provavelmente a dificuldade seja também o prêmio deste ofício. O sabor da conquista está totalmente relacionado à dificuldade e ao prazer da conclusão. Não é raro observar garimpeiros em jornadas de restauração com quatro ou cinco anos, e ao término, vendem seus projetos para recomeçar. É uma evidência do amor pela história da bicicleta, uma paixão! O amor platônico de um garimpeiro não tem preço, não há como dizer quanto vale um projeto.