Ruanda é um pequeno país da África que se reergueu à sombra do cruel genocídio ocorrido em 1994, no qual cerca de 800 mil pessoas foram mortas (segundo estudiosos mais críticos, o número de vítimas deve ter ultrapassado um milhão) e centenas de milhares de mulheres foram violentamente estupradas. O massacre, por cerca de 100 dias, foi cometido por extremistas hutus contra a minoria elitista tutsi e é considerado o evento mais trágico da segunda metade do século passado.

Findo em julho de 1994, quando uma guerrilha comandada pelos tutsis expulsou os extremistas e seu governo provisório, o genocídio ainda deixou milhares de sobreviventes traumatizados, pobres e doentes, prisões lotadas de criminosos, milhares de crianças órfãs, infraestrutura arruinada e tensão entre as etnias.

Apesar disso, na busca pela reconstrução, o governo da minoria tutsi vem insistindo em uma política unificadora e reconciliadora. Dezoito anos depois, o país é considerado um modelo de sucesso no continente africano, por sua recuperação social e econômica, estabilidade e integração internacional. Nos últimos 10 anos, a renda do país triplicou. A capital, Kigali, recebeu o prêmio Habitat Scroll of Honor Award, em que sua limpeza, organização e segurança são reconhecidos. Não quer dizer que o país já tenha vencido todas as dificuldades, mas é inegável que houve uma evolução do cenário de horror instalado em 1994 às conquistas recentes.

© Divulgação / Project Rwanda

Transporte: base para o desenvolvimento

Uma das forças econômicas de Ruanda sempre foi a exportação do café. O país tem cerca de 500 mil pequenos cafeicultores. A representatividade econômica dessa cultura é tão grande que na raiz do genocídio pode ser citada a crise ocasionada em 1989, quando o preço do café diminuiu 50% e Ruanda sofreu uma grande baixa em sua arrecadação. Naquele mesmo período, ao invés de investir em serviços públicos e infraestrutura, o país aumentava seus gastos militares.

A oportunidade de conhecer novos lugares e culturas, que sem a bicicleta, estaria bem mais distante. © Divulgação / Project Rwanda

Em 2002, depois de várias intervenções na cadeia produtiva, incluindo estações de lavagem, tratamento e seleção, os agricultores conseguiram vender o café ruandês por três vezes o preço praticado pelos tradicionais cafeicultores. O fato de serem pequenos agricultores contribui para a qualidade dos pés de café, que são cuidados com maior interação com o agricultor. Mas para carregar um contêiner, é necessário reunir a colheita de cerca de 500 pequenas propriedades. Por ter extensão pequena, o país não tem condições de criar animais para usar no transporte dos grãos, então, centenas de agricultores andavam cerca de 2 a 4 km para os pontos de coleta, ou se locomoviam com bicicletas rudimentares feitas de madeira. Eles se sentavam e esperavam o caminhão passar, pesar e fazer o controle de qualidade, para depois voltar para a sua propriedade. Desde que eram colhidos, os grãos demoravam de seis a 12 horas até chegarem na estação. Este atraso deteriora a qualidade do café. Todo o cuidado que o agricultor teve na sua lavoura pode ser perdido nesse processo.

Adrien, nas Olimpíadas de Londres. © Divulgação / Project Rwanda

Em 2005, a lenda do MTB, Tom Ritchey, conheceu a realidade dos ruandeses e implantou um projeto para a venda de bicicletas a baixo custo, em parceria com o Projeto Ruanda e a Associação de Pequenos Agricultores de Cafés Especiais de Ruanda (RWASHOSCCO). Dessa forma, os agricultores podiam, com maior facilidade, transportar o café das áreas rurais até os centros de lavagem e seleção. Reduzindo o tempo gasto desde a colheita até a estação para quatro horas, o preço do café teria uma valorização de US$ 0,15 por quilo. Como as bicicletas são projetadas com o bagageiro estendido, o agricultor consegue transportar até 200 kg em cada viagem. O projeto também treina ruandeses para montar e fazer reparos nas bikes.

A iniciativa, além de melhorar a renda das famílias, permitiu que elas tivessem um bem – a bicicleta – que também reduziu o tempo gasto e os custos de transporte de água, mercado, e representou um meio de transporte que permitiu maior interação social em eventos comunitários, criando laços entre os ruandeses que seriam impossíveis de outra maneira. Como declarou certa vez Tom Ritchey, “ser um desconhecido em uma bicicleta é uma diversão. Você exerce influência sobre as pessoas e elas sobre você. É como estar na praia com um cachorro e uma outra pessoa vem até você, também com um cachorro: duas pessoas que não teriam ligação nenhuma, mas são unidas por causa daquilo. O mesmo acontece com a bicicleta”.

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ALÉM DE MELHORAR A RENDA DAS FAMÍLIAS, PERMITIU QUE ELAS TIVESSEM UM BEM – A BICICLETA

Em 2006, Ruanda já contava com mais de 60 centrais para tratamento do grão e esse café especial encontrava mercado em 25 empresas norte- americanas e europeias, a preços significativamente elevados. Com a economia rural fortalecida, mais ruandeses puderam se capacitar e gerar empregos, uma base para a manutenção da paz e bem-estar no país. Até agora, cerca de 1.000 bicicletas foram distribuídas pelo projeto.

O transporte é algo fundamental para o desenvolvimento de uma nação, pois é através dele que se alcançam oportunidades financeiras, serviços médicos e escolares, interações sociais etc. E a bicicleta é solução econômica e eficaz para atender essa necessidade de maneira imediata.

Até 2012, o projeto havia vendido e distribuído cerca de 2.500 bicicletas de carga no país. Desde o início, segundo os idealizadores, a ideia era transferir o programa para uma empresa local, o que se efetivou em outubro do ano passado, quando a Coffee West Hills, com sede em Butare, Ruanda, passou a administrar o projeto. Mesmo assim, a empresa ruandesa continuará tendo o apoio para reposição de peças e facilidades para relações dentro da indústria da bicicleta.

© Divulgação / Project Rwanda

Oportunidades através do esporte

Com o exemplo de Ruanda, percebe-se como a bicicleta é um instrumento de liberdade e esperança. Ao mesmo tempo em que elas passaram a transportar o café, jovens que perderam a família no genocídio de 1994 puderam vivenciar, sobre o selim, momentos de paz e reencontrar o equilíbrio, esquecer a dor e inspirar outras crianças e adolescentes a seguirem o mesmo caminho e fugirem do passado cruel que o país viveu.

Paralelo à importação das bikes cargueiras para os grãos, Ritchey contratou Jock Boyer, primeiro ciclista americano a participar do Tour de France, para estabelecer o Team Rwanda. A ideia com a criação desta equipe era revelar e dar oportunidades para talentos do esporte no país. Os ruandeses possuem uma habilidade nata para a prática do ciclismo, já que muitos trabalhavam de bicicleta desde cedo, carregando colheitas ou oferecendo o serviço de bike-táxi. Mal sabiam eles como tal iniciativa iria refletir na vida daquele povo.

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O genocídio, inevitavelmente, ainda está na mente dos atletas que compõem a equipe. Todos tinham entre seis e 14 anos quando o pior capítulo de suas vidas aconteceu. Mas quem vê Ruvogera Obede sempre sorrindo quando está sobre a bicicleta, não imagina que ele perdeu dois tios e três irmãos durante a fatídica passagem de 1994. Todos os seus companheiros também guardam recordações ruins daquele ano, como Nicodem Habiyambere, que perdeu o pai na ocasião.

© Divulgação / Project Rwanda

Talvez o maior ícone do Team Rwanda é Adrien Niyonshuti. Com sete anos, ele viu seis de seus sete irmãos morrerem no genocídio em 1994. Ele havia ganhado uma bicicleta de um tio e chamou a atenção de Boyer, em 2006, sendo recrutado para compor a equipe. Em 2011, ele garantiu pontuação e foi o primeiro ciclista da história da Ruanda a participar dos Jogos Olímpicos de Londres em 2012, na modalidade de mountain bike, apesar de ser ciclista de estrada e ter o sonho de participar do Tour de France. Em outubro, ele comemorou a vitória no Tour de Ruanda, pelo terceiro ano consecutivo. Atualmente, integra a equipe MTN-Qhubeka, que se prepara para registrar-se como uma equipe UCI Pro Continental.

Na bagagem das competições, os prêmios alcançados pelos atletas representam uma motivação para eles. Quem ficou órfão e foi morar na rua, aprendeu a valorizar tudo que consegue. O Team Rwanda participou das últimas edições do Tour do Rio, no Brasil, e é destaque nas competições do continente africano. Um caso curioso aconteceu durante o Campeonato Africano de Ciclismo de Estrada, em 2010. A competição somava pontos para o ranking olímpico. Adrien e Gasore Hategeka, outro atleta que se destaca na equipe, eram as esperanças de conquista da vaga para Londres. Gasore chegou a liderar o campeonato, mas durante a prova, Adrien teve a corrente de sua bicicleta partida. Em um gesto de profundo respeito e companheirismo, Gasore cedeu sua bicicleta ao colega. O detalhe dessa história é que Gasore tem origem na etnia hutu, e Adrien, na etnia tutsi. Pode parecer um pequeno ato, mas profundo em caráter, valores e superação da triste história entre as duas etnias.

© Divulgação / Project Rwanda

Muito além do que essas conquistas esportivas possam representar, os ciclistas ruandeses tiveram a oportunidade de vivenciar bons momentos, diferente do passado sombrio que marcou suas vidas. Ao invés de um futuro de pobreza e acomodação, eles encontraram forças para se dedicar ao ciclismo e através dele estão tendo a chance de viajar, conhecer outros países, outras culturas e atletas de reconhecimento mundial, como quando Adrien pôde se encontrar com Nino Schurtter, ou ser porta-bandeira da pequena delegação de sete ruandeses nas Olimpíadas. Tudo isso estaria bem mais distante, não fosse a bicicleta. Essas conquistas são mais do que pessoais… Quando passam com as bicicletas, nos treinos ou em competições, os integrantes do Team Rwanda inspiram as crianças a acreditarem em um futuro melhor, a sentirem afeição por serem de Ruanda e torcerem pelos atletas do seu país. Como afirmou o técnico Boyer, “a bicicleta é uma parte muito importante da cultura. O Team Rwanda deu ao país uma nova sensação de orgulho. Eles encontraram um esporte no qual podem se sobressair”.

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Valores do Team Rwanda:

  1. Disciplina: comer adequadamente, treinar, chegar na hora marcada.
  2. Respeito: com o treinador, pessoal da equipe, equipamentos, mecânicos e uns com os outros.
  3. Integridade: dizer a verdade sempre, não roubar, não mentir, não falar mal dos outros, não brigar.

Apesar das dificuldades, a nova geração de Ruanda acredita que não está presa a um futuro incerto, desde que faça a sua
parte, como os seus conterrâneos da equipe, verdadeiros heróis da reconstrução da identidade do país.