Já são mais de 100 edições da Revista Bicicleta. Mais de 10 anos. Nessa edição quero amarrar as pontas dos primeiros 24 artigos que escrevi em minha coluna, para clarear o fio condutor entre eles.

Inicialmente, devemos reconhecer que a Revista Bicicleta, desde seu lançamento, tem defendido a bicicleta como meio de transporte e locomoção, sem deixar de apontar as ideologias sociais, as políticas públicas e as práticas econômicas que retardam e até mesmo se contrapõem à sociedade cicloinclusiva. A revista modificou, para melhor, sua qualidade gráfica e seu conteúdo jornalístico, mas não precisou alterar sua linha editorial, que é clara: as práticas esportivas, aventureiras e de lazer do ciclismo só contarão com mais reconhecimento e segurança se à bicicleta for conferida, socialmente, a dignidade de veículo cotidiano e para o uso de todos.

Portanto, esta crítica coluna está no lugar certo.

E por estar no lugar certo, é desnecessário conceituar o que seja “crítica”, menos ainda defender o direito e a necessidade de exercê-la. Buscar descortinar, examinar e avaliar o que origina, reproduz e mantêm os fenômenos culturais e as relações sociais – ideias, valores, normas, comportamentos, instituições – é uma prática mal vista apenas por aqueles que se sentem ameaçados com a possibilidade dos outros compreenderem que nosso modo de viver em sociedade não foi criado pela natureza, mas pelos seres humanos no decorrer de um longo processo histórico de luta pelo poder de formação das consciências. Ou alguém aí quer afirmar que suas opiniões são originadas puramente a partir de si mesmo?

Reconhecendo aqui suas próprias limitações na arte de tornar as ideias inteligíveis, este articulista tem se esforçado por defender a bicicleta como um símbolo de uma sociedade que precisa ser construída, tomando-a como um ponto de vista, como um filtro de leitura da realidade. A bicicleta e os ciclistas são tratados aqui como um meio (um recurso, um modo) de se atingir outra sociedade, e não somente como uma finalidade (um objetivo, um propósito) a ser atingida em si. E isso por dois motivos: primeiro porque somente uma sociedade democrática, e cujos cidadãos se empenhem por valores não materialistas, poderá tratar os ciclistas como gente; e, em segundo, porque de nada vale um sociedade salpicada de bicicletas se ela continuar reproduzindo os mesmos níveis de desigualdade nas demais dimensões da vida.

É claro, quanto mais bicicletas nas ruas, mais a mensagem de simplicidade, praticidade, baixo impacto, brandura, economicidade e liberdade – características essas associadas à bicicleta – será difundida; ou seja, quanto mais bicicletas na cidade, mais contracultura nas mentes. Mas não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que isso provocará uma revolução em cadeia, capaz de fazer as pessoas mudarem seu estilo de vida, pois este está vinculado a estruturas incomparavelmente mais fortes, tanto do ponto de vista simbólico, quanto do ponto de vista prático. No fundo, no fundo, todos sabemos que a igualdade no trânsito (com prevalência para ciclistas, pedestres e para o transporte público) só será alcançada pela sociedade que garantir igualdade de acesso também ao teto, à terra, ao trabalho, ao alimento, ao estudo, à saúde, ao amor, à justiça. Resumindo com uma pergunta: queremos somente mais bicicleta no mundo, ou um mundo que assuma a bicicleta e os valores que ela representa?

Por isso, a crítica tem que ser dirigida para a compreensão dos vínculos entre os três setores sociais: o poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil. De todos os lados, a crítica mais constante, contundente e pesada tem sido dirigida ao poder público, obviamente, por sua ineficiência, sua omissão, sua concessão de privilégios – em suma, porque, neste sentido, é corrupto. Mas, paradoxalmente, os corruptores (quem suborna, quem recebe os privilégios, quem usa o Estado como seu balcão de negócios), gozam de reconhecimento: o poder econômico (o mercado, o capital) inventa e produz o que quer e o quanto quer, convence as pessoas de que elas precisam desses produtos, usa o Estado para iludi-las de que elas podem comprar tudo isso desde que se esforcem e… é agraciado como sendo o vetor do honesto desenvolvimento.

A mudança nesse esquema perverso só poderá vir da sociedade civil: das pessoas que se organizam em função do bem-estar comum, e não em função do bem-estar próprio (ou da sua família, da sua empresa, do seu partido, do seu time etc.). Mas isso requer que a sociedade civil exerça a autocrítica para escapar do corporativismo que, em grande medida, ainda dirige suas ações. As organizações, formais ou não, se criam em função dos interesses de seus membros por laços de categoria profissional, de conjunto de usuários, de etnia, de orientação sexual, de reverência à natureza etc. Mas, mesmo reconhecendo a legitimidade e imparcialidade da maior parte desses vínculos, eles não têm conseguido olhar para fora do próprio quintal.

É claro, não serão as redes, os grupos, as ONGs de ciclistas que conseguirão, sozinhas, alterar esse comportamento autocentrado da sociedade civil, mas nem por isso o cicloativismo pode se furtar de conhecer o tamanho do seu desafio, a dimensão das mudanças necessárias. Não obstante os direitos civis e a liberdade das quais gozamos terem sido adquiridos pela luta da sociedade civil (e não por ação de empreendedores sociais ou de estadistas), não precisamos ser pessimistas para reconhecermos que os problemas e desigualdades no mundo avançam a passos mais rápidos que sua solução. Não conseguiriam os ciclistas, com seu simpático, sustentável e pedagógico objeto, contribuir para mudar a direção desse movimento? Essa seria a verdadeira crítica a pedal!