Se você usa bicicleta, invariavelmente vai se deparar com alguma necessidade de manutenção. Toda a engenhosidade da sua máquina de duas rodas está exposta e é natural que o tempo e o imprevisto interfiram na harmonia do seu funcionamento. Para prevenir ou corrigir problemas com a bici, há coisas que você precisa saber, e coisas que é melhor deixar para um profissional.

Um elo. Um dente. Outro elo. Outro dente. Eles se encaixam rápido e perfeitamente sem que a gente perceba… A não ser que haja algo errado! A bicicleta é uma das máquinas mais interessantes e úteis que o homem já concebeu. Tanto que uma frase atribuída à educadora Elizabeth Howard West (1873-1948) volta e meia aparece nos espaços on-line entre ciclistas: “quando o homem inventou a bicicleta, atingiu o auge de suas realizações. Uma máquina de precisão e equilíbrio para a conveniência do homem, um produto do cérebro do homem que é inteiramente benéfico para aqueles que usam, e de nenhum dano ou irritação para os outros. O progresso deveria ter parado quando o homem inventou a bicicleta”.

“Há procedimentos extremamente simples, e outros que exigem mais perícia, conhecimento e ferramentas diferenciadas.”

Se estivesse aqui para ver os grupos eletrônicos de câmbio ou os quadros com cerca de 5 kg, West certamente reveria sua afirmação e desejaria que o progresso continuasse. De toda forma, foi revolucionário criar uma máquina com apenas duas rodas, que exige um equilíbrio por vezes difícil de aprender inicialmente, mas que depois de conquistado nunca mais se esquece. Com raízes numa perfeita ordem geométrica que mantém sua acessível e descomplicada anatomia praticamente imutável desde a concepção, mas sempre em evolução nos detalhes, nos materiais e nas tecnologias, a bicicleta é assim: simples e complexa; para resumir, genial.

Esta dualidade se reflete na manutenção. Há procedimentos extremamente simples, e outros que exigem mais perícia, conhecimento e ferramentas diferenciadas. No primeiro caso, arregace as mangas. No segundo caso, melhor contar com a experiência e a estrutura de um mecânico profissional!

5 coisas que você precisa saber

O que é essencial saber fazer, em termos de manutenção? Érico Pereira Corrêa, de Itanhaém-SP, fundador da bicicletaria Erik’s Bike e do site mecânicosdebicicleta.com.br, afirma que “todo ciclista, em tese, deveria ele mesmo fazer uma intervenção preventiva na bicicleta”. Corroborando com Érico e outros colegas da profissão, reunimos cinco dicas do que você precisa saber quando o assunto é manutenção da bike:

1. Pneu e câmara de ar

Problema bastante comum, saber realizar a troca ou remendo de uma câmara furada significa ganhar autonomia. Como medida preventiva, “uma prática simples, como observar a pressão correta do pneu, pode reduzir o desgaste do componente e melhorar o giro do ciclista”, afirma Carlos Eduardo de Mello Oliveira, o Carlão, mecânico e instrutor de cursos da Labici Workshop, em São Paulo. Além de manter a calibragem correta, que vem identificada na borda do próprio pneu e varia para cada modelo, faça uma inspeção para verificar se não há objetos cortantes presos no pneu que possam atingir a câmara. Mesmo que você leve uma câmara reserva, tenha um kit remendo e aprenda a fazer o conserto, pois você pode precisar dos dois numa mesma pedalada. Os atuais sistemas de blocagens do tipo “quick release” (soltagem rápida) facilitam muito a retirada da roda.

2. Lavação e lubrificação da corrente

Segundo Henrique Zompero, fundador da Escola Park Tool na América Latina, “é muito importante que o ciclista se lembre que a manutenção preventiva sempre será mais barata do que a corretiva”. Como a bicicleta tem a maior parte de seus componentes exposta, a sujeira e intempéries vão danificando os componentes. Por isso, uma das principais maneiras de prevenir problemas é cuidando de sua limpeza e lubrificação, em especial, na transmissão. Neste momento, é imprescindível utilizar produtos específicos para bicicletas, como alerta Sarah Hannah Alves, mecânica de bicicleta e engenheira metalúrgica: “não use desengripantes no momento da limpeza da corrente, como o WD-40, e sim desengraxantes e panos sintéticos que não deixam fios”. O técnico e mecânico Ronaldo Huhm escreveu um artigo sobre a manutenção da corrente, em que aborda, entre outros temas, a questão da limpeza e lubrificação.

3. Ajustes ergonômicos e conferência de pontos de fixação

Segundo Carlão, ter noções básicas de bike fit ajuda muito, pois além de entender melhor qual a bicicleta certa para você e para o seu estilo de pedalar, você saberá melhor fazer ajustes ergonômicos na bicicleta, como regular corretamente a altura do selim, por exemplo. Érico lembra também que é importante “realizar a conferência e aperto correto do sistema de direção, e conferir o aperto e ajuste das rodas acompanhado do ajuste da corrente no caso de bicicletas sem marchas, e principalmente nas bicicletas com freio do tipo contra-pedal, conhecido também como coaster ou costeiro, em algumas regiões”.

Verifique parafusos e pontos de fixação na bicicleta. Mas atenção: tanto o aperto insuficiente quanto o aperto excessivo podem causar problemas. Dessa forma, é indicado que você tenha um torquímetro, que é uma ferramenta que permite ao usuário regular o torque que deseja em determinado parafuso. A indicação do torque ideal de cada peça é dada pelo fabricante, e é cada vez mais comum que as peças tragam essa informação no seu próprio corpo. “Porém”, diz Carlão, “além de saber manipular o torquímetro, é preciso fazer a leitura sobre o torque de cada componente. Por exemplo, se um guidão pede 5Nm e seu suporte de mesa pede 8Nm, devemos apertar com o torque da peça mais frágil, evitando danos”.

4. Verificação e regulagem básica dos freios

Freios são sinônimo de segurança – se estiverem em dia! Indica-se que uma verificação completa e minuciosa seja confiada a um bom mecânico, que tenha experiência e bom ferramental para um resultado confiável. Mas é importante ter ao menos uma noção básica sobre sua regulagem, e é imprescindível realizar a verificação do estado das sapatas e cabos antes de cada pedal. No site Escola de Bicicleta, Arturo Alcorta orienta “apertar separadamente cada um dos manetes de freio com toda a força das duas mãos para ver se o cabo de freio aguenta – perder o freio inesperadamente é acidente na certa”. Ronaldo Huhm indica “verificar se as sapatas apresentam pequenos fragmentos encravados em sua superfície de frenagem, como alguma pequena pedra, fazendo com que penetre na borracha da pastilha e causando danos à superfície do aro. Aliás, em relação aos aros, considere que ele está para o freio de aro assim como o disco está para os freios a disco: daí a grande importância de estarem sempre limpos e alinhados”.

5. Desejo de aprender sempre mais

Se uma corrente quebrar no meio de uma trilha, “ajudaria muito ter uma chave de corrente junto e saber emendá-la”, diz Rodrigo Alves de Souza, de Tianguá-CE, 23 anos, que trabalha em uma loja especializada de bike desde os 16 anos. E pra não passar sufoco, seria bom saber fazer um alinhamento de rodas emergencial, ou saber trocar os pedais e ajustar corretamente a suspensão, não é? Tudo isso é possível aprender. Conforme aumenta seu conhecimento sobre cada peça e seu funcionamento, você pode procurar cursos, aprofundar-se na leitura dos manuais, conversar com outros ciclistas e até mesmo mecânicos em lojas, fóruns, workshops e outros espaços de compartilhamento, e também melhorar o ferramental utilizado, pois “há um mercado enorme de fabricantes de ferramentas e muitos componentes demandam instrumentos feitos sob medida”, de acordo com Carlão.

© Jake Orness / specialized divulgação

5 coisas que só um mecânico deveria fazer

Confie a um bom profissional os seguintes procedimentos:

1. Montagem da bicicleta

Segundo Rodrigo, “com relação ao que só um mecânico deveria fazer, na minha opinião, em primeiro lugar é a montagem da bicicleta. Há pessoas que compram a bike, apertam o guidão e o selim e acham que a bicicleta está pronta para rodar”. Não comece errado. Um bom mecânico irá fazer com que a mágica aconteça e todos os componentes da sua nova bicicleta funcionem da maneira correta.

2. Enraiação e alinhamento de aros

Enraiar a roda e alinhar corretamente os aros são manutenções mais complexas, que segundo Érico “continuam a ser o grande diferencial entre os bons mecânicos, por ser um serviço que demanda talento e sempre será necessário para o bom funcionamento da bicicleta”.

© Rodrigo Alves de Souza / Arquivo pessoal

3. Análise do desgaste dos componentes da transmissão, principalmente das coroas, e regulagem dos câmbios

Segundo Carlão, “a análise da transmissão exige uma visão treinada, adquirida ao longo do tempo. O ideal é valer-se das ferramentas disponíveis no mercado para essa averiguação, como medidor de desgaste de corrente e cassete, mas não há, ainda, instrumento para medir desgaste de coroa, por exemplo, por isso a inspeção da transmissão depende da habilidade de comparação e análise do mecânico. Erros nesse diagnóstico podem provocar sérios acidentes decorrentes, por exemplo, de uma escapada brusca da corrente”. A regulagem dos câmbios também é preferível deixar para um mecânico com experiência, pois, de acordo com Rodrigo, “um pequeno detalhe pode tirar a harmonia de trabalho do grupo”.

4. Manutenção da suspensão e freioS hidráulicos

Não realizar a manutenção da suspensão e do freio hidráulico no tempo certo acaba diminuindo a vida útil do equipamento, segundo Henrique. E Carlão complementa: “para realizar a sangria do sistema de freios hidráulicos é necessário conhecer os fluidos compatíveis com cada sistema, estar familiarizado com os tipos de pastilha e sua aplicação, além de ter os kits de sangria”.

5. Manutenção de componentes que você desconhece

Tudo que é novo e desconhecido leva um tempo até se tornar popular. Um bom mecânico está à frente do mercado, e os fabricantes oferecem treinamento aos profissionais da área. Como bem aponta Érico, “analisando o presente e o futuro da profissão, nota-se que a indústria de componentes tem incorporado novas tecnologias. Os sistemas eletrônicos, por exemplo, já são realidade e necessitam de treinamento específico e ferramental adequado”. Mesmo que a tecnologia não seja nova, mas ela ou a sua manutenção é estranha a você, prefira contar com um mecânico.

Tanto os procedimentos básicos preventivos quanto os serviços mais complexos confiados a um mecânico, permitirão a você, ciclista, resgatando a origem da palavra manutenção no latim “manus tenere”, “manter o que se tem”. E o que se tem é uma máquina (do grego mekhane, que significa aparelho, meio para obter algo) que pode te levar aonde você quiser – desde que leve junto algumas ferramentas e um kit remendo!

© Daniel Geiger / merida divulgação

Mecânica é para mulher, sim!

Risadas e descrença. É assim a reação da maioria das pessoas quando conhece uma mulher mecânica de bicicleta, segundo a mecânica Sarah Hannah Alves: “muitas vezes pressupõe-se que a mulher não tem conhecimento específico de assuntos tidos como, em geral, masculinos, e como sou engenheira metalúrgica, muitas vezes já fui colocada em situações onde homens com conhecimento muito restrito de aços, por exemplo, se colocam a explicar determinado assunto no qual tenho conhecimento mais amplo.

Sarah nasceu e morou boa parte da vida no Rio. Hoje com 30 anos, ela diz que sua relação com a bicicleta começou ainda na adolescência, quando morava em Copacabana e estudava em Ipanema. “Depois de ter a bicicleta incluída em todas as partes da minha vida, fez-se necessário, por uma questão de autonomia, também aprender sobre a mecânica da bicicleta. Comecei a frequentar uma oficina comunitária, porém eu, por ser mulher, me sentia muito subestimada lá, e procurei aprender sozinha. Quando passei a ter a perspectiva de trabalhar com bicicleta, decidi fazer um curso de profissionalização na Escola Park Tool. Hoje compartilho minhas experiências em oficinas voltadas para mulheres em locais públicos, em geral”, finaliza.

mecanicosdebicicleta.com.br

Érico Pereira Corrêa é o idealizador do site Mecânicos de Bicicleta, e-commerce voltado à venda de ferramentas para manutenção da bicicleta. Ele explica que “o site nasceu como uma comunidade do extinto Orkut, criada com o intuito de conhecer colegas de profissão pelo Brasil. Depois de formado em administração de empresas, resolvi transformar a ideia em um site focado em oferecer soluções em ferramentas e suprimentos para os profissionais do ramo, aos amadores e também aos praticantes de hobbies relacionados à bicicleta, como os restauradores, por exemplo”.

Cursos de mecânica de bicicleta – Escola Park Tool

escolaparktool.com.br

Dois anos depois de abrir sua bicicletaria, no final de 2012, Henrique Zompero começou seu contato com a Park Tool. “Fiz cursos profissionalizantes nos Estados Unidos”, diz Henrique, “e consegui uma nota acima da média. Depois disso, a Park Tool me convidou para trazer o curso profissional para o Brasil, abrir a primeira Escola Park Tool da América Latina. Era uma grande oportunidade. A Park Tool tinha essa formação em todo o mundo. Então, fiz uma pesquisa de mercado e vi que muitas pessoas tinham a mesma dificuldade em encontrar um curso de mecânica de bicicletas com conteúdo mais profundo. Depois disso, trouxe a Escola para o Brasil e hoje o nosso principal negócio é capacitação e conteúdo. Ainda faço os cursos deles. É um conteúdo impressionante”.

Labici Workshop

labici.com.br

Com 30 anos de profissão, Carlão viu a necessidade de profissionalização desse setor. Segundo ele, “é importante lembrar que a bicicleta vai ser usada por uma pessoa que quer pedalar e se divertir, e não sofrer acidentes. Por isso esse trabalho tem que ser muito bem feito e reconhecido como uma profissão, e não um passatempo. É um ramo de atividade que ganha cada vez mais espaço no mercado internacional e no Brasil. A bicicleta movimenta lojas, provas, empregos e intercâmbio cultural. É isso que me inspira e motiva a transmitir o que eu aprendi e tenho grande satisfação em formar novos mecânicos de bicicleta todos os meses. O projeto Labici Workshop, em parceria com Guga Santos, é um retrato dessa visão e do nosso interesse em valorizar essa profissão”.

Sarah Hannah Alves
Érico Pereira Corrêa
Henrique Zompero
Carlos E. de Mello Oliveira
Rodrigo Alves de Souza