Cancelar quem nos cancelam

Ciclistas: vamos cancelar quem nos cancelam?

O triste stand up de comédia do humorista Murilo Couto, que zombou dos seres humanos que andam de bicicleta, provocando uma justa e gigantesca reação, onda de protestos, cancelamentos, indignação nas redes sociais e muitas notas de repúdio de entidades ligadas ao ciclismo no Brasil.

Destacamos um reflexivo e pedagógico trecho da nota de repúdio divulgada pela Aliança Bike – Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, citando o secretário-geral da ONU, o português António Guterres. “Enfrentar o discurso de ódio não significa limitar ou proibir a liberdade de expressão. Significa evitar que este discurso se transforme em algo mais perigoso, particularmente que incite discriminação, hostilidade e violência, o que é proibido pela legislação internacional”.

Os protestos cibernéticos foram valiosos e necessários, assim como os manifestos de repúdio de entidades e grupos de ciclistas das variadas regiões do Brasil, contra a forma desumana de fazer humor, desumanizando quem anda de bicicleta.

Porém é necessário que utilizemos o mesmo impulso de indignação, viralização e energia, para cancelar nas redes sociais e nas urnas velhos e novos políticos locais, aqueles(as) que nada fazem em defesa das políticas públicas para o ciclismo. É preciso também reconhecer, valorizar, compartilhar para viralizar quem são os raros políticos, que estão lutando, trabalhando pelo ciclismo coletivo, observando a realidade local de cada um de nós

Precisamos aprender a ficar sensibilizados e indignados também quando a zombaria política acontece localmente, perto de nós, na nossa Casa Comum Local.  

Vivo e sou ciclista em Jequié, cidade do interior baiano, com mais de 150 mil habitantes, existem pessoas dos mais variados estratos sociais pedalando, cotidianamente, em Jequié, não existem políticas públicas para o ciclismo, sem ciclofaixas, sem ciclovias, sem placas de sinalização e legislação local pró-ciclismo, sem bicicletários públicos seguros. Existem localmente muitos grupos de pedais organizados, com um poder de mobilização espetacular, contudo não vejo mobilização, indignação, cancelamento para cobrar, revindicar e protestar por aquilo que é um direito nosso e deve fazer parte da realidade local, políticas públicas para quem anda de bicicleta.

Sei que o que descrevi anteriormente é a triste realidade de muitas cidades brasileiras. Apesar disso, vamos continuar no mesmo giro de silêncio ou vamos cancelar das redes sociais e do nosso voto aqueles(as) que não conseguem nos enxergar, zombando politicamente também da infinidade de brasileiros(as) que pedalam no imenso Brasil?

Recentemente, pedalando, encontrei “Cal Mecânico de Bike”, bastante conhecido pela turma do pedal local, na rápida conversa, “Cal”, desabafou, contou que ficou três meses sem trabalhar, foi atropelado quando andava de bicicleta, no bairro popular do KM 3, em Jequié, quebrou a clavícula, vendeu bens, foram quatro mil reais, para custear a compra de medicamentos e manter as necessidades da família. Só fique sabendo do ocorrido, porque o encontrei casualmente pedalando. Localmente não aconteceu nada, nenhum protesto, ato de indignação pelo que aconteceu com o mecânico de bicicletas.

O exemplo de “Cal” se repete Brasil a fora e, nós que pedalamos, sabemos como acontece. É nosso dever como cidadãos(ãs),  e principalmente ciclistas-eleitores, exercer cidadania, sair da zona de conforto, seja coletiva ou individual, pedalando para o progresso da nossa realidade ciclística local, se a gente não protesta, reclama ou cancela, a pedalada e a mobilidade local não  acontece de verdade. 

É preciso mais do que nunca pedalar mirando globalmente e com a força da mobilidade cidadã agir localmente.

Dado Galvão é documentarista, ciclista, fundador do Movimento @cicloolhar

© Dado Galvão