Paquito chegou em casa miúdo e mal desmamado. Foi criado com jeito, carinho e trato. Eu era quem mais conversava com ele, lhe dava banho com água e creolina na dose certa pra livrá-lo das pulgas e carrapatos e talvez por isso, a mim ficou mais apegado.

Era um vira-latas esperto, alegre, agitado e independente, branco com manchas pretas, vestígios de fox paulistinha, que gostava de viver intensamente, varar madrugadas a dentro atrás de cadelas no cio e de andar de bicicleta.

Eu tinha uma Merck Swiss que juntando com a minha cabeça inquieta e mais minhas pernas afoitas formavam minha bandeira de guerra pela conquista da liberdade. Elas me levavam pra mundos distantes onde o horizonte que se via se misturava com a névoa difusa de um mundo que só eu vivia. Paquito me acompanhava.

Pra onde fosse com a minha magrela, Paquito saltava na garupa e dali não desgrudava enquanto vento e movimento houvesse.

Às vezes o tiro era curto, apenas ia comprar o pão, às vezes longo, o quanto me permitia o fôlego e os músculos das pernas, pedalando pelas estradinhas de terra que me levavam pra Ribeiro dos Santos, Álvora, Severínia, Monte Azul, Bebedouro, Barretos e outras cidades e bibocas que faziam parte do meu universo infinito.

Também as barrancas do Rio Cachoeirinha e Turvo faziam parte do meu imenso e mágico mundo. No Cachoerinha aportava Dolorosa, minha canoa, onde, aos domingos, ia pescar e canoar. Paquito era o proeiro, vigiava, eu varejava.

Nas tardinhas de verão, dia sim, dia não, após o expediente da Gráfica, onde exercia o meu primeiro ofício, costumava pegar a magrela e chispar pro Cachoeirinha nadar nos seus remansos enquanto ainda
nos espiasse o sol.

Saindo da cidade, após alguns quilômetros de estrada de chão, um descidão, que a ânsia de chegar ao rio me fazia desembestar com tudo o que me permitiam as pernas e a Merck com a sua única catraca 20 que girando
e ardendo fazia o que podia.

Era uma tarde quente, eu e Paquito na magrela ventávamos descida abaixo quando sem saber a razão, foi se o controle, e a queda aconteceu. Dessas quedas que a gente só percebe quando já se está voando sem saber pra onde, esperando só se arrebentar.

Caí, rolei, ralei e estatelado no chão, braços abertos qual crucificado mal percebia o sol escondido no meio do pó.

Devagar, devagarinho fui me sentindo, se alguma dor havia e de leve, levemente mexendo os dedos da mão, uma depois a outra, mexendo os pulsos, braços, ombros e assim seguia me testando pra saber se nada escapulira do lugar,  quando da poeira surgiu Paquito que vinha me avisar que com ele, tudo bem.

Me percebendo inteiro, veio festejar, me lamber o rosto. Ele balançava o rabo, eu também sorria e lhe dei a face. A sua língua barrenta de terra e saliva foi me lambendo a pele e nela deixando grudados, pedregulhos que saiam da sua boca entulhada deles. Sei lá quantos deve ter engolido.

A alegria ao cair na água que lavou o corpo ralado e levou rio abaixo o que ainda sobrava do susto, foi bem maior naquela tarde.

Na volta, a magrela não nos trouxe. Eu, lentamente a carreguei como dava, com sua roda dianteira entortada
e com vários raios quebrados.

Paquito à frente, mostrando o caminho, agitado, contente, sem se preocupar com o sol que com o dia fugia
e as primeiras estrelas surgiam pra não deixar que a escuridão nos assombrasse.

Em paz, pelo caminho já previa a tempestade que me aguardava, com minha mãe preocupada, discursando o sermão inútil e mais brava ainda quando visse minha camisa encardida e rasgada, inaproveitável para o uso de me vestir.

Passaram se os anos, Paquito se foi, a Merck também, o Cachoeirinha foi poluído, a Dolorosa se desmanchou e as águas levaram seus restos de tamboril para o mar e os pedregulhos até hoje me acompanham na lembrança, quando nos momentos difíceis eu os sinto ardendo, me ralando e queimando o corpo, mas nos momentos de paz eu os percebo me acariciando a face.

Fonte da matéria