Olímpia era uma cidade pequena. O fogo dos meus sonhos e fantasias me fez procurar suas portas de saída.

A mãe, consolada pelo pai, me comprou uma mala pequena, marrom, de papelão com cantoneiras de lata, onde ajeitamos minhas coisas poucas. Ela também acomodou na mala um despertador Westclock, de corda, pois não mais me acordaria pelas manhãs dos novos dias.

Também um vidro de óleo de fígado de bacalhau para tomar devagar, uma colher de sopa por dia, pois certamente o ragu que conseguisse não teria a nutrição, a qualidade e o carinho da comida gostosa e cheirosa até então feita por ela.

E mais, um estojinho de linhas, agulhas e um ovo de pedra pra cerzir, pois ela não mais pregaria meus botões perdidos e nem cerziria minhas meias furadas.

Mais, juntei desenhos e rabiscos pra mostrar não sei a quem, mas a quem pudesse olhá-los e dizer deles.

Na mala pequena, algumas coisas não couberam e as tive que deixar pra trás.

Meus pais, não couberam na mala.

Mestres, amigos e amores também ficaram.

Paquito, meu companheiro vira-latas, ficou, amuou e morreu.


A mercswiss, aro 26, a “suíça”, que por 10 anos me ampliou o espaço da cidade pequena e dos seus arredores também não coube na mala. Ficou por um tempo num canto do quintal, presente, fazendo com que meus pais ao vê-la, sentissem um pouco a minha presença. Não sei que fim levou. Procurei não saber pra não sofrer com as lembranças dos momentos intensamente vividos juntos, eu, a “suíça” e o Paquito.

A “suíça” ganhou personalidade única, diferente daquela menina bonita e bem vestida que chegou zerinha numa caixa de papelão e madeira, que encantado abri e que encantado ajudei meu pai a montá-la, pois com o tempo, para torná-la mais leve e ágil, tirei-lhe o protetor da corrente, os para-lamas e troquei a catraca de 18 para 22 dentes, pois a cidade, cortada pelo Olhos d’Água era pródiga em ladeiras.

Não havia câmbio por lá, as magrelas tinham apenas um volante na frente e uma catraca atrás.

Ficou mais moça, mais forte, mais despojada, mais magra, corajosa e ousada.

Na gráfica Barão, onde aprendi o primeiro ofício, o expediente se encerrava às 18 horas. No verão, era dia e o sol ainda sorria me chamando pra nadar no Cachoeirinha, um rio distante cerca de 6km de casa. Me mandava. Paquito saltava na garupa da “suíça” e lá íamos ventando e comendo poeira pela estradinha de terra.

No domingo, repetíamos a aventura, só que saindo bem cedo pra passar o dia nadando, canoando, pescando e saltando da ponte que cruzava o rio pra mergulhar nas suas águas, ali profundas. Poucos moleques ousavam, Paquito era o único vira-latas que o fazia. Havia domingos ou feriados que nos juntávamos em 4 ou 5 amigos e bem cedo nos mandávamos pelas estradinhas rumo à Álvora, Severínia, Marcondésia, Monte Azul, Barretos ou São José do Rio Preto. Passávamos o dia pedalando e só ao entardecer ou noitinha voltávamos pra acalmar nossas mães e orgulhar nossos pais.

Hoje, em certos sábados ou domingos e feriados nos juntamos em 10, 15 ou 20 amigos e nos mandamos bem cedo rumo as trilhas de Nazaré Paulista, Pedra Bela, Cunha, Serra da Mantiqueira, do Japi, Paraibuna, Redenção da Serra, Salesópolis, Kinkakuji, Serra Negra, Campos do Jordão, Passa Quatro, Itanhandu, Rota dos Castelos, Estrada do Kazanga, Rio Escuro, Alumínio, Doninhas, Limoeiro e tantos outros cantos, recantos e encantos que volto a reviver e sentir a “suíça” destrambelhando comigo ladeira abaixo ou rangendo e resfolegando pirambeira acima. Às vezes, nas descidas, seguro um pouco o ânimo dela pro Paquito não escapar da garupa e rolar desnorteado e assustado pelas pedras do caminho, como já acontecera comigo e com ele.

Hoje, a mochila que levo pelos caminhos e trilhas da vida, é também pequena, mas acomoda bem minhas coisas poucas. Muito tempo se passou, mas me surpreendo em momentos intensos que esse tempo nada ou muito pouco mudou.

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