Será que o pedal pode te deixar obcecado e dependente?

Quantos artigos você já leu que lembram dos benefícios do ciclismo? Que pedalar faz bem à saúde, ao espírito, à autoestima, às costas, aos relacionamentos ou mesmo para o meio ambiente.De fato, os benefícios são infinitos, e você sabe disso muito bem. 

Mas nesse artigo queremos tratar de outra questão. Queremos falar dessa magia que o pedal tem… porque a bicicleta engata, envolve, encanta, cativa, vicia… e quais são as consequências disso.

Opa! Falamos vicia?

Como você explica sua paixão pela bicicleta?

Quer você pratique ciclismo de estrada, MTB, BMX, gravel, triatlo, fixa ou urbana, você sabe muito bem como as duas rodas atraem e encantam. É como se a bike fosse uma extensão, não só de seu corpo, mas de você mesmo, do seu ser. Ao viver a bicicleta, você percebe que ela o envolve, eleva, e lhe dá a possibilidade de se sentir livre e confiante consigo mesmo, não só para praticar esportes, mas para se superar, para ir mais longe e chegar a lugares inimagináveis.

Bem, isso é bom.

E, de fato, a bicicleta aumenta a sua autoconfiança e o seu desempenho em todas as áreas da sua vida, traz-lhe bem-estar e melhora sua saúde. Além disso traz à tona o pior do momento: suspiro, raiva, estresse, exaustão, ansiedade… tensão. Mas não é exatamente isso que te prende na bicicleta? Querer mais, querer de novo…ir mais longe. Chegar em casa, depois de todo aquele “sofrimento”, tomar um banho relaxante e sentir aquela sensação que ninguém consegue descrever – é simplesmente mágico.

© AdobeStock

As consequências

Quem já viveu o que descrevemos acima, sabe o que isso significa. E, muito provavelmente, você não quer sequer pensar na ideia de algum dia deixar de pedalar.

Seria um vício?

Existem algumas teorias sobre esse “vício” pela bicicleta. Vamos ver o que os especialistas no assunto dizem a respeito.

Primeiro, veja o que a Dra. Josephine Perry – que por acaso é psicóloga e ciclista – diz num artigo que tratava da questão de vício e dependência de exercícios. Perry diz:

“Como um ciclista regular, é muito provável que você se interesse pelo desempenho e tenha um forte impulso para melhorar, juntamente com uma vontade de se esforçar muito nos treinos e nas corridas. Às vezes, você provavelmente se sente atacado por familiares ou colegas que questionam ou provocam você sobre seu hábito “obsessivo” de andar de bicicleta. Você sem dúvida objeta citando os muitos benefícios do ciclismo: as amizades brilhantes, melhorias massivas na saúde, corpo tonificado e todos os lugares que você pode explorar em sua bicicleta.

 Mas seus críticos ocasionalmente poderiam ter razão? 

O seu impulso implacável para melhorar às vezes vai longe demais e o coloca em risco de cruzar a linha tênue da dedicação ao vício? 

© AdobeStock

O vício do ciclismo é definido por uma necessidade interna incessante de treinar duro todos os dias sem tirar as folgas que você precisa para descansar e se recuperar – sem falar em atender a outros compromissos em sua vida. Em outras palavras, o vício é definido pelo mal. Você ignora os apelos da família ou amigos. Suas prioridades são reorganizadas e nada pode se interpor entre você e sua bicicleta. Uma vez que essa linha é cruzada, os benefícios do ciclismo começam a diminuir. O ciclista viciado sente mais dores e sofrimentos, torna-se sujeito a lesões físicas, constipações regulares e doenças ocultas”. 

Parece que temos aqui uma boa definição de alguém viciado em ciclismo: uma necessidade interna incessante de treinar duro todos os dias sem tirar as folgas… você ignora os apelos da família ou amigos… nada pode se interpor entre você e sua bicicleta.


@Josephineperry

Dra. Josie Perry – Londres, Inglaterra.

Psicóloga desportiva licenciada e autora especializada em desporto e alto rendimento. performanceinmind.co.uk


Estudos

Em 2016, a revista ‘Cycling Weekly’ entrevistou o Dr. Mark Griffiths, que é psicólogo e Professor Distinto de Vício Comportamental e Diretor da Unidade de Pesquisa de Jogos Internacionais do Departamento de Psicologia da Universidade de Nottingham Trent (Reino Unido). Griffiths pontuou:

“Eu e meus colegas observamos que o vício em exercícios (independentemente do subtipo) é uma condição em que uma pessoa que se exercita regularmente perde o controle sobre seu comportamento de exercício, enquanto age compulsivamente e exibe dependência, resultando em consequências negativas na sua saúde e/ou vida cotidiana. Este comportamento de exercício desadaptativo é caracterizado por graves sintomas de abstinência quando o exercício não é possível, semelhante a ambos os vícios químicos (por exemplo, álcool) e outros vícios comportamentais (por exemplo, o vício do jogo). Com base na evidência científica, o vício em exercícios é relativamente raro, variando de 0,3 a 0,5 %, conforme observado no único estudo publicado usando uma amostra nacional representativa da população em geral que realizamos na Hungria em 2012 (publicado no jornal ‘ Psicologia do Esporte e Exercício ‘). Dado que o vício em exercícios (em geral) é raro, a prevalência do vício no ciclismo seria, portanto, ainda menor. No entanto, isso não significa que não exista.”

Griffiths também menciona um estudo recente realizado pelo Dr. Bernd Zeulner e seus colegas. Entre 1.031 atletas de resistência, que incluiu ciclistas, 2,7% tinham potencial para desenvolver um vício em exercícios.

Outro estudo publicado no ‘Journal of Clinical Sport Psychology’ pelo Dr. Jason Youngman e Dr. Duncan Simpson examinou o vício em exercícios entre 1.285 triatletas (ciclismo, natação e corrida). O estudo descobriu que aproximadamente 20% dos triatletas corriam risco de dependência de exercícios, e que o treinamento para corridas de longa distância coloca os triatletas em maior risco de dependência de exercícios do que o treinamento para corridas mais curtas. Eles também descobriram que, à medida que o número de horas semanais de treinamento aumentava, aumentava também o risco de um triatleta se tornar viciado em exercícios. 

Apesar da falta de evidências empíricas especificamente sobre o vício do ciclismo, a Dra. Perry também observou em seu artigo que: “[Ciclistas viciados] também podem se tornar suscetíveis ao esgotamento e tudo o que vem com isso: diminuição do desempenho, mau humor, mudanças no apetite , dificuldade para dormir e geralmente uma sensação de que os resultados não estão correspondendo à intensidade do esforço que está sendo feito…”


 Dr. Mark Griffiths é psicólogo certificado e Professor de Vício em Comportamento na Nottingham Trent University no Reino Unido.


Diagnóstico

Segundos os estudos e observações desses especialistas, conclui-se que os riscos são maiores pra quem se exercita mais de cinco vezes por semana e com carga horária alta. Naturalmente, como bem disse o Dr. Griffiths, “qualquer comportamento pode ser potencialmente viciante se os mecanismos de recompensa estiverem em vigor, mas devemos ser cautelosos a respeito, impondo o rótulo de ‘vício’”.

Griffiths acrescenta: “Não podemos definir se alguém é viciado apenas pelo comportamento que exibe. Tem tudo a ver com o contexto desse comportamento em sua vida. Mais importante, não se trata da quantidade de tempo gasto se engajando no comportamento, mas do impacto que o comportamento tem sobre eles. Um entusiasmo saudável acrescenta à sua vida. Um vício tira isso. Se você não tem dependentes, e tanto você quanto os seus gostam do esporte e não há conflito, isso não seria classificado como um vício. Já, se o conflito familiar se torna um fator, o hábito de exercícios torna-se repleto de complicações”.

© AdobeStock

Tratamento

Dr. Griffiths também foi questionado sobre suas opiniões quanto ao tratamento da dependência do ciclismo.  Ele disse que terapia cognitivo-comportamental seria provavelmente a mais eficaz (já que o viciado seria orientado a identificar objetivos que o motivassem e ser ajudado a encontrar maneiras seguras e razoáveis ​​de alcançar esses objetivos), mas que o tipo de tratamento depende se o vício em andar de bicicleta era primário ou secundário.

Griffiths explica o que isso significa: “os viciados em primárias, que na verdade são viciados porque amam seu esporte, descobrirão que é muito difícil desistir. Dizer a eles que não podem continuar será estressante. Os adictos secundários podem estar tentando perder peso ou escapar de sentimentos negativos e desagradáveis ​​ou dificuldades em suas vidas, usando o ciclismo para controlar seus pensamentos. Esses ciclistas estão usando exercícios como um mecanismo de enfrentamento”. 

© AdobeStock

Em suma

A Dra. Josephine Perry resumiu muito bem toda essa questão: “[O vício no ciclismo] não se trata apenas de quantas horas você está fazendo na bicicleta, o quanto você ama pedalar ou quantas bicicletas você tem; o que importa é o impacto em sua vida. Se o seu trabalho e a sua vida familiar permitem isso sem conflitos, e você não está se sentindo estressado ou cansado demais, então o seu compromisso com o ciclismo é apenas isso – um compromisso. Se você está sofrendo de lesões contínuas e não se recupera totalmente, sente-se exausto, enfraquece o humor, sente-se obrigado a faltar a eventos familiares ou sociais para treinar, resultando em discussões, então você precisa se perguntar seriamente: sou viciado?”

A conclusão parece um tanto obvia, qualquer vício pode se tornar contraproducente. Aí está a grande sacada, alcançar e administrar um estado excelente em que o ciclismo é parte fundamental da sua felicidade, mas não afeta outras esferas da sua vida que também lhe trazem felicidade.

Naturalmente, você deve ter cuidado ao medir sua dedicação a qualquer coisa. Mas não seremos nós que lhe diremos para medir o seu “vício” na bicicleta, porque também somos “viciados” nela.

© AdobeStock

Teoria da paixão

Existem duas teorias sobre o “vício” em bicicletas.

Veja se você se encaixa em alguma delas.

  • A psicologia social analisa o comportamento do indivíduo em um ambiente social e tem analisado esse comportamento para descobrir as razões pelas quais a bicicleta causa dependência. Seu principal argumento refere-se a motivos de evitação ou distração, ou seja, é o campo mais próximo do que você já conhece: a bicicleta te tira da rotina, te leva a lugares diversos, e te liberta, te ajuda a se sentir bem-sucedido consigo mesmo e em relação aos outros. Estas razões explicam por que o seu comportamento muda e, depois de experimentar a bicicleta, pensa apenas no seu próximo percurso, na sua próxima bicicleta, no seu próximo objetivo ou desafio etc.
© AdobeStock
  • Mas existe uma teoria mais quantitativa, proveniente da medicina fisiológica. Alguns estudos monitoraram o ciclista para tentar medir o que acontece em seu corpo quando ele anda de bike e circula dia sim, dia não. Nos laboratórios, foi criada uma rotina em que um ciclista anda de bicicleta por uma semana, dia a dia, e a compara com o mesmo ciclista por uma semana em repouso. As grandes diferenças estão no funcionamento da hipófise, que funciona várias vezes mais quando o ciclismo faz parte da sua rotina. E a hipófise é responsável pela produção de endorfinas. 

O que as endorfinas fazem em nosso corpo?

Pois bem, elas são responsáveis ​​por gerar um estado de bem-estar e até euforia. Ou seja, em suma, elas são as responsáveis ​​pelo seu estado de felicidade. Parece romântico, mas é ciência – a bicicleta traz felicidade

Isso não nos surpreende, afinal, quem pedala conhece bem essa sensação.

© AdobeStock