Este relato é feito da história de uma viagem não realizada. Vivida entre sonhos, leituras – e algumas pequenas viagens – durante 4 anos, acompanhou também a trajetória de um relacionamento que se confundiu com esse sonho. Entre o momento de abandonar o plano de viajar e o momento de aceitar o abandono, entendi que toda a preparação para a viagem foi um período de crescimento e descobertas, com o seu próprio valor. Por isso, este relato. Não para contar sobre uma viagem que sequer saiu do papel, mas sobre como se entregar aos caminhos que a vida indica pode nos levar para onde nunca pensamos ser capazes de estar. Por mais que, às vezes, seja difícil entender quais caminhos são esses.

Até os 25 anos não sentia vontade de viajar. Associava viajar com destinos turísticos, lugares lotados, tudo muito caro e um pouco falsificado. Minha família, nem os amigos mais próximos, tem o costume de viajar. Quando as férias chegavam, do trabalho e faculdade, ficava mesmo em casa, estudando todas as músicas que estavam numa interminável lista de espera e lendo os livros que estavam em outra interminável lista. Para equilibrar as horas de leitura e estudo, caminhei primeiro e depois pedalei. Andava sempre que o tempo permitia, levava mais de uma hora pra chegar em algum compromisso, em algum lugar. A bicicleta vem da infância. Das férias passadas na casa dos avós, no meio do mato, na rua de terra. Das visitas de fim de semana. Foi caindo por cima das plantas de minha avó que aprendi a me equilibrar. Brincadeira que não teve lugar na cidade, que não teve espaço na adolescência. E que só voltou a me colocar o vento no rosto quando passei a ir de bicicleta para o cursinho. Em um tempo de ansiedade, sem estar na faculdade, trabalhando pouco, tudo meio desesperador. Era na bicicleta que as preocupações ganhavam uma pausa e eu me divertia um pouco – até chegar na aula, até em casa. Quando vi, a rotina de faculdade e trabalho já havia mandado a bicicleta para um canto do quintal. Tão parada ficou, que pensei em vendê-la.

Não vendi. E quando comecei a segunda faculdade, um pouco mais perto de casa e com muitos alunos que chegavam e saíam de bicicleta, a vontade de pedalar cresceu o suficiente e fui para o trânsito novamente. Era o final de 2013. Aqui em São Paulo, a gestão Haddad ainda estava para ampliar a malha cicloviária da cidade. Fora de São Paulo, e do Brasil, muitos brasileiros pedalavam em viagens que passariam a ocupar minha imaginação pelos próximos anos. Ainda no cursinho, cheguei a ver o site do Arthur Simões, mas era algo tão distante que passou despercebido, a preocupação em entrar na faculdade, arrumar um emprego, ganhar dinheiro, comprar casa – essas coisas que nunca pensei em fazer.

A previsão para terminar a faculdade era 2017, e eu tinha quatro anos para preparar roteiro, equipamento, juntar dinheiro, para me preparar. A primeira ideia foi uma volta pela América Latina, com duração de três anos. A imagem de pedalar sozinho por estradas que cruzavam desertos e montanhas foi o que me chamou. Durante a adolescência, estudei música. Como rotina, passava 8 horas, às vezes mais, fechado no quarto com o violão nas mãos e partituras pela frente. Depois, com trabalho e faculdade, não tinha mais tempo para estudar. E menos ainda para, entre uma música e outra, parar para pensar, para sentir. A estrada deserta me fascinou por oferecer esta oportunidade novamente, de apenas estar ali, apenas pedalando.

Há momentos em que a bicicleta sabe mais do caminho do que o ciclista

Enquanto eu pensava em pedalar sozinho pelo mundo, duas bicicletas se aproximaram, ensaiando caminhos mais curtos, para voltar da faculdade e chegar em casa. Um dia disse que estava pensando em uma viagem, se ela não queria vir também, e ela disse que sim. Pouco tempo depois éramos namorados pensando em viajar juntos. Conversamos muito sobre o que significava a viagem para cada um, quais os lugares, as formas, o tempo. Para ela, não animava a ideia de viajar por muito tempo. Queria conhecer principalmente o Nordeste, de onde vem parte de sua família. Eu, já achando que três anos era pouco para uma volta pela América Latina, passei a pensar em uma viagem por todo o Brasil. A duração seria praticamente a mesma e me agradava mais pensar em conhecer melhor o país onde nasci do que estar de passagem por muitos países. Nunca chegamos realmente a um acordo sobre isso. Talvez cada um achasse que durante a viagem o outro iria ceder, que eu viajaria menos, que ela viajaria mais.

Ainda assim, fomos construindo o plano da viagem e como parte desse plano vieram as viagens curtas. Foram quatro que fizemos juntos e uma que fiz sozinho. Depois, quando já havíamos terminado o namoro ainda saí mais uma vez para a que acabou sendo a viagem mais difícil, e também a última dessa primeira fase do cicloturismo na minha vida.

Estas pequenas viagens não foram a única forma de manter viva a vontade de viajar. Leitor convicto desde criança, montei uma pequena biblioteca de cicloturismo, aumentada depois com livros sobre caminhadas, escaladas, viagens em mar. A descoberta do cicloturismo foi a porta de entrada para um tipo de viagem que mistura esporte e conhecimento, cultura e aventura.

Um sábado, depois de dormir pouco mais de duas horas, saí de casa para chegar em Colombo, cidade vizinha de Curitiba, onde meu pai morava. A expectativa era pedalar os 400km de distância em dois dias e meio, ficar dois dias e voltar de ônibus, fechando o feriado de carnaval. Sozinho na estrada pela primeira vez, não me preocupava com a distância e pedalei até dormir em uma praça, até dormir em um pedágio, até chegar. Sem exatamente me dar conta, estava sozinho na estrada, como um dia havia sonhado. Esse momento, tão gostoso em si, também me daria as chaves para entender quais os limites do cicloturismo pra mim. Enquanto pedalava pela rodovia, me sentia feliz, com uma plenitude que poucas vezes senti antes.

Toda viagem de bicicleta carrega algo de mágico. Para quem mora em uma cidade grande e violenta como São Paulo, o contato com pessoas desconhecidas é acompanhado de algum grau de insegurança. A violência a que somos expostos na tv e nos jornais mostra um mundo prestes a desabar. Em casa, confortavelmente deitado, abria um livro que contava da hospitalidade africana, de como os viajantes são bem recebidos no Oriente Médio. E não era preciso ir tão longe. Mal saía de São Paulo e encontrava o mesmo calor e hospitalidade. Pessoas completamente desconhecidas que abrem suas casas para estranhos dormirem, que cozinham enquanto contam suas histórias. Oferecem abrigo, comida e boa viagem para a nova partida. Estas experiências foram transformando a vontade de viajar. Sozinho ou acompanhado, era bom estar na estrada, e eram bons os encontros pelos caminhos. Daí a vontade de poder levar algo também. Não mais apenas viajar. Juntos, começamos a pensar o que poderíamos levar.

O que já tínhamos e o que gostaríamos de ter

Depois de muitas ideias, chegamos em um projeto formado por pedalar, contar e recolher, fotografar e escrever, e um documentário mostrando as pessoas mais velhas de cada lugar com as histórias e músicas que lembravam. Mais um violão a tiracolo. O nome ficou Contos em Cantos. Um projeto que nos deu muito prazer de pensar, de imaginar e que agora fica aqui, para quem se interessar em levar adiante. Ainda acho que é uma ideia muito bonita.

Das viagens que fizemos juntos, aprendemos a escolher um lugar para acampar, a pedir um canto para ficar, e pedalar em estrada ruim com a bicicleta pesada, de terra, a “dividir” espaço com caminhões, carros e ônibus. Também aprendemos como nos sentimos depois de um dia inteiro pedalando. Que ser um casal na cidade é bem diferente de passar o dia inteiro juntos, combinando cada pausa pra tomar água. O namoro foi vivido em grande parte na ideia dessa viagem, que seria também nosso casamento, quando iríamos escolher em que lugar morar. Depois de tudo isso, nós simplesmente fomos engolidos pela vida e o que poderia ser apenas uma crise, ganhou dimensão, aumentou nossas diferenças, ultrapassou o próprio namoro e nos levou ao término. Dois meses depois que terminamos, o ano também chegava ao fim, assim como a faculdade. Estava aos pedaços e achei que seria bom estar na estrada sozinho, ter tempo e espaço para colocar as ideias em ordem. Não lembro de ter sentido tanta dificuldade para pedalar antes. Planejei entre 16 e 18 dias de viagem, fiz 6. Não pedalei metade do que pretendia. Envenenado por meus pensamentos, cada pequena dificuldade, que antes eram diversões, se tornavam em raiva e arrependimento por estar ali.

O cicloturismo me deu respostas que durante muito tempo procurei em outros lugares e fez nascer muitas coisas que estavam adormecidas em mim. A vida como temos hoje sempre me foi difícil de aceitar. Não queria ir simplesmente passando por escola, faculdade, emprego e família. O desconforto que eu sentia se traduzia, na prática, como uma incapacidade para fazer tarefas que precisava, como estudar para uma prova ou resolver um problema no banco. Nunca soube lidar com a necessidade de ganhar dinheiro. Hoje sei que compartilho essas dificuldades com outras pessoas, mas cresci sem ter com quem conversar sobre tudo isso, mesmo porque não entendia exatamente as causas do que incomodava. Fiz duas faculdades, achando que era um jeito de ir escapando da rotina. Acabei professor, achando que assim poderia mostrar para os alunos outra forma de viver, de pensar. E que assim ajudava a construir uma sociedade melhor. Estudando, pude entender um pouco do mundo e sentia, assim, a indignação aumentar, mas a raiva diminuir. Precisava também de respostas que dessem conta de construir uma vida boa pra mim. Com tempo para pensar, para apreciar estar vivo sem tanta pressa e cobrança.

Então a estrada chamou. Como disse antes, queria estar sozinho na estrada, completamente sozinho. Mas era apenas o esgotamento por uma rotina que começava a me puxar para além do que eu conseguia aguentar. Também passei pela vontade de ver o mundo. Passagem rápida, ao entender que meu interesse está nas pessoas e da mesma forma como antes eu procurei o ser humano na música e nos livros, dessa vez iria procurar na estrada. E mesmo quando estive sozinho na estrada, reclamando por que nada dava certo, foram os encontros que me seguraram um pouco mais. Aos poucos fui aceitando que não iria viajar. De tempos em tempos, acordava pensando que precisava arrumar tudo e sair de qualquer forma. A excitação baixava durante o dia enquanto lembrava de tudo o que me levou a não querer mais viajar. Até conseguir dizer exatamente essa frase: eu não quero mais. E desisti da grande viagem. A ideia tinha significado dentro de um contexto que já não existia. Levei cinco anos para fazer a segunda faculdade, quatro deles pensando em viajar quando o curso terminasse. Viajar acompanhado. Quando o curso terminou, o namoro também. Sozinho não encontrava motivos para ir. De tudo o que estava planejado para esse momento, não restava nada.

A não ser começar de novo. E assim vi uma nova relação crescer, que marca o fim deste relato, na notícia de uma gravidez. Felizmente, a vida sabe mais e me propôs lugares igualmente belos para estar. Não a estrada, mas a paternidade. Não a aventura que depois escreveria, mas a aventura de escrever. Deixar um sonho, sem deixar de sonhar.