“Me dá um pouco da sua água?”, disse o menino.Claro, atendi, mesmo a água sendo escassa por aqui. Ele bebeu toda a minha garrafa de 1 litro e meio, em um só gole. Fiquei chateado, depois compadecido, já fui muitas vezes eu naquela situação. Ofereci a outra garrafa, o menino olhou desconfiado, depois bebeu metade. Agradeceu e seguiu pedalando, eu o via desde longe.

© Maurice

Ele não parecia ter sequer 18 anos. Baixo, magro, nada tinha além da roupa do corpo. A bicicleta enferrujada, guidão torto, sem marchas, selim destruído e balançando. A cada pedalada sua bicicleta estalava, o menino não ligava. TAC, pedal girando, TAC, não sei como o quadro não partia em dois.
Pensei que em breve ele chegaria ao seu destino, mas não. Foram 30, 40, 50km, e ele seguia pedalando. Enfim resolvi conversar, coisa que pelo visto ele ou eu não costumávamos fazer.

— Como você se chama, menino? – perguntei, pedalando do seu lado.
— Maurice.
— Quanto anos?
— 18.
— Vai pra onde?
— Etiópia.

Silêncio. Maurice respondia sempre com uma única palavra, o que se revelou bastante eficiente. Não acreditei que ele fosse até tão longe. Sem água, sequer uma mochila, só a roupa do corpo. Eu, com 50 kg de equipamentos, óculos, luva e máscara, senti mais curiosidade do que vergonha, ou mais incredulidade do que os dois. Ele já havia pedalado 50km, não era pouco.

Chegou uma grande serra. A chuva era forte e fria, o vento era contra, as gotas explodiam no asfalto e faziam neblina, algo fantasmagórico. Apertei o ritmo, mas Maurice desceu da bicicleta e foi empurrando. Ensopado, com sua única roupa. Apertei o ritmo. Olhei uma última vez para trás, Maurice desaparecera por entre a neblina de gotas de chuva. Segui meu rumo.

Dia seguinte, enfim de sol, pedalava concentrado. Vi adiante e ao longe um vulto pedalando. Mesmas roupas, não podia ser. TAC, TAC. “Maurice!” – gritei.

O menino desceu da bicicleta e me esperou. Ao me ver próximo, eu poderia dizer que ele até quase sorriu. “Tem água?” – perguntou, só assim ele usava mais do que duas palavras. O menino bebeu outra vez toda a garrafa, desta vez não foi surpresa.

— Dormiu onde ontem, Maurice?
— Na rua.
— E comida?
— Ontem, uma vez.

Minha comida é sempre racionada, então refiz mentalmente o que restava nos alforjes. Peixe seco, arroz, cenoura e couve. Não era muito, mas antes dois com meia fome do que um com mais do que precisa. Achamos um abrigo, cozinhei e comemos juntos. Maurice comia com voracidade, engolia quase sem mastigar. Lembrei que tinha algumas bananas, então as peguei pra mim e dei a metade do meu prato a Maurice. Ele agradeceu, sem outro som além de sua mastigação voraz pela metade.

— Tá vindo de onde, Maurice?
— Nairóbi (250 km antes de onde estávamos).
— Por que Etiópia?
— Por que não?

Seguimos comendo. Verdade, por que não? Sempre respondo isso quando me perguntam por que viajo de bicicleta. Soa tão simples que se torna complexo. Maurice usava poucas palavras. Não as media, apenas parecia não necessitar delas.
Maurice dormiu no gramado, profundamente. Sua jaqueta encobria-lhe o rosto, o tênis velho era usado como travesseiro. Dormi também, tão profundo que cheguei a sonhar. Acordei, Maurice de pé me esperava pra seguir.

Chegou outra grande serra, ele novamente desceu da bicicleta para empurrá-la. Segui forte, me distanciei, não olhei para trás. Sabia que muito em breve eu tomaria um desvio que não seria seu caminho, portanto não o veria mais. De longe o ouvi uma última vez. TAC, TAC, como a bicicleta e o garoto aguentavam?

Nunca mais o vi. Nunca nos despedimos ou sequer nos cumprimentamos. Dois animais. Pensei sobre a raça humana em estado bruto, na natureza humana de acordo com Rousseau, Locke, Hobbes. Me vi estúpido de tanto pensar com pensamento dos outros. Vício acadêmico, ainda tenho, quem diria. Não pensei mais. Pedalei.

Não sei o que pensar sobre Maurice. Acho que não quero e não preciso fazer isso. Deixa assim, e que os pensadores reflitam, quero só pedalar mesmo. Pensei sobre por que se concentrar em pedalar ao invés de pensar.
“Por que não?”. A fraca voz de Maurice ecoara. Sorri, segui, não pensei mais sobre isso.