Entendemos que a mais importante herança que um pai pode deixar a um filho seja o amor. Roberto Ambrósio entregou ao filho, além disto, o nome, o carisma e o amor pela bicicleta e pelos caminhos.

© Beto Ambrósio

Jamais vou me esquecer do presente de aniversário que ganhei quando fiz 25 anos. Dois de dezembro de 2012, o dia em que eu saí pedalando pelo mundo, em uma viagem que parecia não ter fim. Acho que nunca chorei tanto, com tanta alegria e emoção como naquele dia. A rua estava cheia de gente que eu amo, família e amigos, todos compartilhando aquelas lágrimas comigo e gritando junto às primeiras pedaladas. Esse momento está gravado como um filme na minha cabeça, e vai ser difícil sentir emoção mais forte que essa.

Quando eu era criança eu ficava encantado, não podia acreditar que o meu pai pudesse sair da minha cidade, Araraquara – SP e ir até o Mato Grosso, de bicicleta. Quando eu contava para os amigos da escola, ninguém acreditava. A vida foi passando e eu descobri que algumas pessoas percorriam o mundo inteiro pedalando. “Meu Deus, não é possível!”, eu pensava. Aquele encantamento que tinha pelo meu pai, aos poucos foi se transformando em um sonho, um sonho muito real, que me arrepiava só de pensar. Até que um dia, vi o livro de um rapaz que deu uma volta ao mundo pedalando, e aí, louco com aquilo, resolvi fazer a minha primeira viagem. Juntei um dinheirinho, convidei meu grande amigo Guto, traçamos uma rota e nos lançamos em uma viagem de dois meses pelo nordeste do Brasil.

Nesses dois meses pude entender o que significa viajar de bicicleta, entendi a grandeza dessa ideia. Percebi que viajar assim, sem pressa, te dá liberdade de conhecer a fundo a cultura dos lugares, a simplicidade das pessoas, o cheiro das paisagens e a essência do lugar. Te dá o tempo necessário para pensar na vida, na paz, nos amores, no mundo, coisa que a nossa rotina nos impede. Viajar de bicicleta te faz uma pessoa mais humilde, mais simples, mais calma. Faz com que as coisas simples da vida ganhem muito mais valor. Um prato de comida, um abraço, um olhar, uma cama macia, um copo d’água, tudo o que temos na vida ganha valor, e acredito que a felicidade reside justamente nisso, no valor que damos ao nosso presente. Então, se quiser viajar de bicicleta, prepare-se para se tornar uma das pessoas mais felizes do mundo.

© Beto Ambrósio

Então eu segui sonhando, cada dia mais, principalmente depois dessa primeira viagem, com a ideia de pedalar durante anos, por vários países, sem pressa nenhuma para voltar para casa. Quando eu pensava nisso, sentia uma coisa muito forte, muito verdadeira, sabia que um dia eu iria realizar, só não sabia como. Em 2011 eu terminei o curso de administração de empresas e passei a procurar trabalho. Estava conformado com a ideia de trabalhar num escritório fechado, de roupa social, mesmo sabendo que aquilo não agregaria nada, nem pra mim, nem para o mundo. Mas eu precisava juntar dinheiro para realizar o meu grande sonho. Cinco meses procurando e nada, até que caiu do céu a solução, e apareceu o Tadeu e a marca Vestígio em minha vida, disposto a patrocinar esse sonho. Hoje, trabalhamos juntos, ele no Brasil cuidando da administração, e eu no mundo, cuidando de fotografar e relatar tudo de mais lindo que existe nessa Terra.

Então eu segui sonhando, cada dia mais, principalmente depois dessa primeira viagem, com a ideia de pedalar durante anos, por vários países, sem pressa nenhuma para voltar para casa.

O projeto tem duração de dois anos e meio, e o cenário das fotos e histórias é a nossa América Latina. Cruzarei 17 países antes de voltar pra minha casa, que fica em Araraquara, no interior de São Paulo. Por enquanto, só pedalei pelo Brasil, Uruguai, Argentina e Chile, mas ainda me falta cruzar a Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Honduras, Nicarágua, Guatemala, Belize, México, Cuba, Venezuela, e por fim, atravessar todo o Brasil novamente.

© Beto Ambrósio

Saí de casa há sete meses e já me sinto outra pessoa. Sempre acreditei muito em Deus, mas hoje, o que sinto não é uma crença, é um contato. Quando falo “Deus” eu quero dizer “vida”. Refiro-me simplesmente à existência, ao bem, ao amor, à paz, e hoje, eu acredito muito mais na existência, no bem, no amor, na paz. Não sei se conseguiria viajar sozinho por aí, seria muito difícil, então, eu convidei esse meu Deus a subir na garupa. E é incrível como as coisas acontecem quando abrimos o coração para o mundo, a fim de ajudar, preparados pra qualquer coisa que pode acontecer no dia seguinte, sempre na certeza de que tudo dará certo, e sempre dá.

Isso tudo foi mudando o porquê da viagem, e o que antes era só um desejo de conhecer o mundo, se transformou em um desejo de melhorá-lo. Hoje, o que quero com esse projeto não é apenas viajar e ser feliz; o que eu quero é fazer feliz, ajudar da maneira que eu puder. Ver tudo pela TV é uma coisa, mas sentir a realidade de perto é outra, e isso tem mexido demais comigo. Não tem mais cabimento viver dessa maneira, já chega de tanto sofrimento, tanta fome, tanta humilhação, tanta mentira. E o que eu quero é isso, é unir, é levar boas mensagens, bons pensamentos, plantar sementes de simplicidade, humildade, amor, compaixão, e tudo o que há de mais puro para a nossa existência. Quero convidar as pessoas a compartilharem essa mensagem e a maneira que tenho de chamar a atenção pra tudo isso é viajando de bicicleta.

Eu quero poder mostrar às pessoas que o poder da fé é mais forte do que qualquer coisa, e podemos sim mudar o mundo se essa ideia for compartilhada. Eu não quero enfiar isso na cabeça das pessoas simplesmente martelando a palavra de Deus e blá-blá-blá. Eu quero simplesmente mostrar os fatos que acontecem com um moleque que viaja de bicicleta carregando uma grande crença na garupa, deixando no ar a ideia de que alguma coisa existe, e cada um é livre pra interpretar a história como quiser.

© Beto Ambrósio

Gostaria de poder contar com detalhes todos esses fatos que têm ocorrido comigo desde que saí de casa, mas precisaria de um espaço 80 vezes maior que esse. Todos os encontros inacreditáveis, que me colocaram dentro de casas de família, em frente a pratos de comida, preparados por um montão de “mamães” cheias de carinho pra dar. É impressionante como nada nos falta quando a nossa única preocupação é viver, respirar, se alimentar e ajudar as pessoas. É maravilhoso sentir frio pra desfrutar o calor, sentir sede pra valorizar a água, sentir-se sozinho para valorizar o carinho da família.

O que posso fazer, por enquanto, é transcrever aqui alguns trechos dos meus diários. Não é fácil escolher uma história entre tantas, então, para não ser injusto com nenhuma família que me acolheu, contarei a história dos quatro dias em que estive sozinho pedalando pelo deserto. Na realidade, não estive totalmente sozinho, visto que estava pedalando por uma rodovia movimentada. O desafiador foi a grande distância que tive que percorrer sem qualquer tipo de estrutura, sem nenhum banheiro, nenhuma torneira, nada, só asfalto, areia e areia. Levei apenas comida, disposição e o meu querido Paizão na garupa, e o resultado de tudo isso, lhes conto agora, compartilhando o diário que escrevi assim que cheguei a Antofagasta, no norte do Chile, completamente sujo e feliz:

“Tô destruído. Sem dúvidas, foi o maior desafio físico e psicológico da minha vida até agora. Aquela história de medinho de dormir sozinho no deserto? Isso aí nem existiu, nem me lembrei desse “problema”. O que me pegou foi o desgaste por pedalar 435 km em quatro dias, em condições extremas, de muita subida, vento contra, calor de dia, frio de noite, ar seco, nariz sujo, cabelo duro, boca rachada, dedo congelado, bunda fritando e perna latejando. E o melhor de tudo, sem água pra se lavar.

© Beto Ambrósio

Os caminhoneiros se tornaram meus grandes irmãos. Sem eles eu jamais poderia atravessar esse trecho. Calculo que bebi de 6 a 8 litros de água por dia, graças a eles. Bastava erguer a garrafinha vazia que o primeiro já parava, com um galão cheio pra me presentear com o quanto eu quisesse. Muitos quiseram me dar carona, mas a minha vontade de conquistar esse deserto era tão grande quanto a minha sujeira.

No primeiro dia, acordei às 5 horas da manhã. Foram 122 km de estrada, sendo 60 de terra e 62 de asfalto. Cheguei bem, dormi num lugar maravilhoso, eu e um mundo de estrelas que chegavam a iluminar a noite. Me senti em casa, toda aquela ansiedade de antes foi em vão, não senti nenhum tipo de medo, pelo contrário, senti a presença de Deus como nunca havia sentido e recebi toda a energia das orações que algumas pessoas me prometeram. Durante a noite, contemplação à natureza e agradecimento ao infinito…Comi meu strogonoff que já estava pronto num “top-where?”, lavei a louça com a língua e dormi que nem um anjo.

No segundo dia eu perdi a hora. Era pra acordar às 5 horas, mas meu corpo não conseguiu. Às 7 horas eu consegui e às 8 h 20 min estava na estrada, pronto para o dia que seria o mais cansativo. Foram 102 km de muita subida, daquelas que, pra mim, são as piores: suaves e infinitas. Mantive uma velocidade média de 8 km/h. Em algumas partes eu ia tão devagar que preferi empurrar a Princesa (minha magrela), pela primeira vez em quase sete meses. Sem dúvidas, o grande desafio foi esse dia, muita paciência e concentração, afinal, ou eu vou, ou eu vou. Pedalei até quase de noite, até o corpo pedir pra parar. Dormi feliz com o resultado do dia, achei que não fosse conseguir pedalar tanto. À noite, na barraca, o traseiro doía demais, então eu fiz que nem mamãe fazia comigo quando eu era neném: posição de trocar a fralda, lenço umedecido e hidratante nele, sem dó. Melhorou por cinco minutos, até que eu dormi. No dia seguinte, a dor duplicou.

© Beto Ambrósio

Tirando a ‘bundassada’, o terceiro dia foi lindo: 155 km de muita descida, daquelas que, pra mim, são as melhores: suaves e infinitas. Acordei às 5 horas da manhã e o deserto era só meu, inteirinho. Meus irmãos caminhoneiros ainda dormiam, ou seja, escuridão e silêncio total. O céu recheado de estrelas, com uma lua que parecia um holofote. Arrumei tudo e saí, ainda de noite, eu e Deus. Saí gritando e ouvindo o eco, lá longe. Só depois de 1 h 30 min pedalando que o sol saiu, e com calma, foi descongelando a ponta dos meus 20 dedos.

Nesse dia eu parei de pedalar por que o vento pediu. Quando eu achei que já conhecia um vento forte, o mundo veio e me apresentou outro, ridiculamente mais forte. E o mais legal é que eles sempre se apresentam de frente, “tête-a-tête”, batendo no peito e mostrando quem é que manda. “Tudo bem, quem sou eu pra contrariá-lo; eu paro, se você quer, eu paro”. Com as pernas quase anestesiadas, o cabelo marrom e a bunda “nem-se-fala”, fui tentar armar a barraca, mas quem disse que ele deixou? Qualquer descuido e tchau, lá se vai minha casinha pelos ares. Com muita pedra eu consegui deixá-la um pouco mais firme e pude preparar o meu banquete.

A última noite foi de festa, com direito a macarrão “a la areia” e chocolate. Parecia um retardado tirando foto, correndo, escrevendo com a lanterna na mão, mil vezes seguidas, até a foto ficar exatamente do jeito que eu queria. Estava feliz demais, mal podia acreditar que só me faltavam 55 km, mal podia acreditar no que estava acontecendo. Foi como um batismo de viagem, afinal, se eu consegui passar por um trecho tão difícil, não sei o que pode me segurar nos próximos dois anos. Deixei a música alta, fiquei olhando para o céu com a porta da barraca aberta, não conseguia pensar em nada que não fosse bom: família, amigos, feijoada, charuto de folha de uva, tudo o que me espera daqui dois anos. Eu sempre penso nisso, em qualquer momento difícil eu penso no que me espera quando eu voltar pra casa, aí fica tudo bem.

© Beto Ambrósio

Em meio aos pensamentos eu dormi sem perceber. Acordei, desliguei a música, fechei a porta da barraca e continuei sonhando. Acordei às 4 h 30 min com um vento barulhento que fazia a barraca dançar. Tentei dormir de novo, mas nessa altura, eu sentia o meu corpo tão sujo que não consegui mais pegar no sono. Estava parecendo um filé à milanesa (Ps: Assado). Imagine: quatro dias transpirando, sem banho, o corpo todo melado, de repente, um vento feroz que enche a barraca de areia, pronto, empanei. Solução: liguei o som no último e comecei a arrumar as coisas. Chega, é hora de tomar banho….

Mais uma vez, saí pedalando de noite, ouvindo Pink Floyd nas caixinhas e tocando guitarra imaginária. Nenhum movimento, nenhuma luz, só o barulho da gritaria dos meus pensamentos. Finalmente, às 8 horas eu cheguei no meu destino, Antofagasta. Às 8 h 30 min eu estava na frente da casa da Glória e do Felipe, um casal de amigos terceirizados pela Fer, de Los Vilos. Acordei todo mundo, me apresentei, pedi mil desculpas pelo horário e fui direto para o banheiro.

No fundo, o que eu realmente quero com tudo isso é engrandecer mais ainda o valor das coisas que tenho. Eu quero mesmo é viver isso pra valorizar a água e agradecer o banho… E vou confessar uma coisa: um dos maiores prazeres que já senti, foi quando vi a água marrom que saiu do meu corpo, enquanto eu tomava o melhor banho da minha vida.

© Beto Ambrósio

A Revista Bicicleta continuará acompanhando o feliz ciclo-aventureiro pelos meses que se seguem. Porém, vale fazer uma ressalva justa mas que, por vezes, passa desapercebida. Acreditamos que qualquer empresa que investe em um cicloturista com este perfil sabe que os resultados serão mais sociológicos do que comerciais e, é fato, que são poucas as que estão dispostas a isto. Beto Ambrósio tem o subsídio da marca Vestígios e do Rotary que, juntos, são a estrutura por trás do sonho.

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