Em setembro de 2014 comecei a pensar sobre o que eu faria para comemorar meus 50 anos. Afinal, meio século deve ser bem comemorado! Queria fazer algo diferente e sozinha. Então, pensei: que tal uma viagem de bicicleta?

Estava decidida, eu iria viajar de bicicleta. Mas, e o roteiro? Depois de muito pensar, escolhi a França e a partir dessa decisão começou o planejamento da viagem. Primeiro, a pesquisa sobre as ciclovias francesas. Como gosto muito da história da França, decidi pela rota do Vale do Loire e pensando em Joana D’Arc, iniciei por Orléans. Analisando a quilometragem e os dias que eu teria disponíveis, optei por pedalar até Angers. Com essa decisão, tudo ficou mais fácil!

Continuei minha pesquisa na internet e encontrei agências que alugavam bicicletas e reservavam pousadas. As passagens aéreas pagaria com milhas acumuladas. E ainda, entre tantos lugares lindos e ainda desconhecidos, escolhi onde gostaria de passar meu aniversário e organizei o percurso e o tempo de viagem. As dificuldades iniciaram quando do envio do dinheiro para a França, uma vez que fazer a viagem através de uma agência sairia 1/3 mais caro. Pesquisei o banco que cobrava a menor taxa mas, infelizmente, a burocracia e a ineficiência atrapalharam muito com relação aos prazos de pagamento.

Finalmente iniciei minha viagem de férias… O voo de São Paulo me levou a Paris e o trem a Orléans. Em Orléans começou a viagem mais interessante e enriquecedora da minha vida. Recebi a bicicleta no hotel, e a batizei de “Jolie”. Ela veio equipada com bolsa de ferramentas, duas câmaras-reserva, um alforje, uma bolsa acessória para o guidão, dois coletes reflexivos (um para usar durante a viagem e outro de presente), capa impermeável, número de telefone para emergências 24 horas e transporte da bagagem de uma cidade para outra. Este transporte teria sido dispensável se eu tivesse levado um alforje maior, mas como não sabia as condições da bicicleta, optei por levar uma mala e somente o indispensável no alforje. Depois cheguei à conclusão de que foi a melhor opção, pois um alforje muito pesado impediria o acesso a várias visitas. Por falta de experiência, levei muita roupa, pois a calefação dos quartos se encarregava de secar a roupa lavada.

Levei capas de chuva descartáveis, mas recomendo o uso de capas específicas para esse tipo de viagem. Mesmo tendo chovido um único dia, a capa descartável não impediu que eu chegasse ao destino totalmente molhada.

Fixei a bandeira do Brasil na frente da Jolie e qual não foi minha surpresa o fato de apenas cinco pessoas reconhecerem a nossa bandeira em toda a viagem: dois brasileiros, uma francesa recém-casada que possivelmente viria ao Brasil em lua-de-mel, uma adolescente e um senhor que fez menção ao futebol. Para usar o celular com Wi-Fi e 3G comprei um microchip da Orange, a maior operadora da França e que oferece vários planos com a exigência da apresentação do passaporte na hora da compra. Importante é levar uma tomada universal, uma bateria acessória para o celular e, se possível, uma régua de energia, pois dependendo do lugar havia uma única tomada elétrica.

Em todas as cidades, os escritórios de turismo fornecem mapas gratuitos, mas é melhor comprar um mapa mais completo, por região, mostrando as condições das rotas cicláveis que são muito bem sinalizadas em todo o trajeto.

A viagem foi tranquila, parando sempre que via algo interessante, sem pressa, mas tendo o cuidado de chegar à cidade de destino antes do escurecer. Como eu ficava pouco tempo nos lugares e não havia frigobar nem algo para aquecer os alimentos, não tinha como preparar a comida, o que encareceu a alimentação. Acordava cedo, tomava o café às 7 horas e voltava para a estrada. Há fontes de água potável nas estradas da França, ou seja, caramanhola sempre cheia de água fresquinha.

1º dia – Orléans / Cléry-Saint-Andre / Meng-Sur-Loire / Beaugency

55,8km

Orléans é a mais importante cidade medieval da região pela localização estratégica e proximidade de Paris. É também onde está localizada a casa de Joana D’Arc, uma jovem que se destacou na Guerra dos Cem Anos (que não durou cem anos!). A Catedral Sainte Croix foi construída em 330 d.C., mas destruída e reconstruída várias vezes. Seus vitrais são belíssimos e, ao lado, o Museu de Belas Artes possui obras maravilhosas. Na Praça Martroi existe uma escultura de Joana D’Arc a cavalo. Os jardins do Parque Louis Pasteur foram construídos com traços regulares, conforme o padrão do século XIX.

Em Clery-Saint-Andre existe a Basílica de Clery-Saint-Andre em estilo gótico flamboyant e lá se encontra a tumba do rei Louis XI e de sua esposa Charlotte de Savoie. Nesta pequena cidade parei para almoçar e percebi que perderia muito tempo ao fazer as refeições em restaurantes, o que me fez repensar o aproveitamento do dia.

Meng-Sur-Loire é a menor cidade medieval e foi sede do colegiado dos bispos de Orléans. Antes de chegar a Beaugency, margeando o rio Loire, consegui molhar minhas mãos nas águas frias do rio. Lá encontrei três pescadores muito pitorescos e a soma da idade deles daria uns 250 anos. Foi difícil fazê-los entender como me fotografar com o celular. Demos boas risadas!

2º dia – Beaugency / Chambort / Blois

67,4 km

Beaugency é muito interessante, e por suas peculiaridades, leva-nos a sonhar: a Torre da Idade Média, um dos últimos resquícios da arquitetura militar romana que fazia a proteção da cidade; o Castelo Dunois; as casas cobertas de vegetação; as ruas pitorescas; a Abadia de Notre Dame; a Torre do Relógio… Enfim, um sonho!

Durante a viagem, se eu precisava de alguma informação, pedia aos moradores das vilas e cidades que encontrava pelo caminho, pois não havia viajantes ciclistas como eu. Cheguei, então, ao Castelo de Chambord, construído pelo rei Francisco I, um apaixonado pela arquitetura renascentista italiana. Perdi um tempo para achar um local onde poderia deixar a bicicleta.

O castelo é belíssimo, seu ponto alto é uma escada dupla hélice, projeto de Leonardo da Vinci. No pátio encontrei uma senhora e uma moça e quando pedi para me fotografarem entendi que só falavam japonês… Fiquei encantada porque, mesmo assim, este fato não as impediu de estarem viajando pelo interior da França.

Foi em Chambord, em 1670, que Molière fez sua primeira apresentação do Bourgeois Gentilhomme. No caminho a Blois passei por pequenas fazendas, em uma delas vi um casal de idosos no pomar e entrei para conhecer o lugar. Eles foram super simpáticos, provei as maçãs e peras doces e suculentas e ainda ganhei algumas para o lanche.

O Castelo de Blois foi a residência de sete reis e 10 rainhas da França, e palco de muitas tragédias que ocorreram nas guerras religiosas. É o castelo que apresenta o maior número de estilos arquitetônicos e o local onde Joana D’Arc foi condecorada. Foi um dos castelos que mais gostei. Durante a Segunda Guerra Mundial, Blois foi incendiada e posteriormente reconstruída.

3º dia – Blois / Celettes / Amboise

94,3 km

No início desse trajeto, a rota ciclável era toda asfaltada, encontrei idosos em cadeiras de rodas elétricas ou com caminhadores, famílias com crianças passeando de bicicletas e foi o local onde mais encontrei moradores da região.

No caminho encontrei um casal de franceses que andavam de bicicleta. Eles pararam para conversar comigo e me contaram que a idade – ele com 65 anos e ela com 60 anos – não será empecilho para fazer uma viagem ciclística pela Argentina e Chile. As horas foram passando e, para minha surpresa, me convidaram para ir até a casa deles caso anoitecesse. Nunca é tarde para começar! Segui meu caminho feliz!

4º dia – Amboise / Chenonceaux / Tours

72,3 km

Era 30 de outubro, data do meu aniversário e eu estava completando 50 anos! Atravessei a floresta de Amboise, era outono, época da colheita de champignons. Pessoas com cestos e facas selecionavam com muito cuidado os comestíveis, pois são muito parecidos com os venenosos.

Esta floresta é um lugar mágico, mas com muitas encruzilhadas. Como não tenho um bom senso de orientação geográfica e tinha acabado a bateria do celular, me perdi mais de uma vez. Foi o momento mais tenso de toda a viagem porque o sol começou a se pôr e fiquei com medo do anoitecer e ter de esperar o amanhecer, no frio! Mesmo assim, consegui chegar ao meu destino… Física e emocionalmente exausta.

Amboise é a cidade onde Leonardo da Vinci viveu seus últimos dias. O Castelo de Amboise, que pertenceu à Dinastia Valois – Orléans, é fantástico, até porque tem acesso a cadeirantes em todos os andares, audioguia adaptado para crianças e surdos, e maquetes táteis para cegos. Em muitos locais do castelo animais são bem-vindos no colo ou na coleira. Nos jardins paisagísticos está o busto de Leonardo da Vinci, no local onde foi primeiramente enterrado, sendo seus restos mortais posteriormente levados para a Capela de São Humberto.

O castelo de Clos Lucé, ainda em Amboise, foi a residência de Leonardo da Vinci, o lugar é lindo, com os jardins que ele mesmo projetou e toda a história das suas obras e projetos. As crianças são estimuladas a tocar e fazer funcionar as maquetes. Nas paredes, inscrições como: “Todo o nosso conhecimento tem origem na nossa sensibilidade.”

Após o sobe-desce pelas ruas medievais das cidades, cheguei a Chenonceaux com seu magnífico castelo, o Castelo das Damas, alusão à amante, à esposa e às herdeiras do rei Henrique II.

5º dia – Tours / Villandry / Azay-le-Rideau

48,9 km

O Castelo de Villandry é famoso por seus jardins maravilhosos. O Jardim Decorativo é formado por quatro quadrados que constituem os “Jardins d’Amour”, cujos nomes instigam nossa curiosidade: o Jardim Terno, o Jardim Apaixonado, o Amor Volúvel e o Amor Trágico. Além disso, lá estão Os Bosques; O Jardim da Água; O Jardim do Sol; O Labirinto que simboliza o percurso terrestre do homem; O Jardim dos Simples, consagrado às ervas aromáticas, condimentares e medicinais; e A Horta.

6º dia – Azay-le-Rideau / Bréhémont / Chinon

39,2 km

Azay-le-Rideau é uma vila charmosa, situada no coração do Parque Natural regional Loire-Anjou-Touraine. Seu castelo foi construído em uma ilha para proteger a passagem de Tours à Chinon e é famoso pelos reflexos na água. Ainda em Azay se localiza o Castelo de L’Islette, onde Camille Claudel e Rodin viveram dias de tórrido amor.

Todos os trajetos são lindos, os dias estavam ensolarados e deliciosos para pedalar! De Azay à Chinon as vias cicláveis vão margeando o rio Loire. A Fortaleza de Chinon foi o local onde Joana d’Arc se encontrou com o rei Charles VII, em 1429. Nesta fortaleza, a museografia e a cenografia modernas interagem com maquetes táteis, imagens em 3D e sonorização.

7º dia – Chinon / Candes-Saint-Martin / Montsoreau / Samur

47 km

À caminho de Samur encontra-se Montsoreau, uma antiga cidade de pescadores que foi eternizada por Alexandre Dumas no seu romance “A Dama de Montsoreau”. Para chegar até lá foi um tal de sobe-morro que parecia não ter fim. E a Jolie firme e forte no pedal!

Samur é conhecida como a região de excelentes vinhos brancos; mantém intacta em seus domínios o espírito dos grandes cavaleiros, sendo considerada a capital da arte equestre com uma escola de equitação que foi criada em 1815; possui uma grande escola de gastronomia francesa, e é a terra natal da famosa estilista Coco Chanel.

8º dia – Samur / Angers

59,1 km

Início do inverno europeu, e com ele veio uma tempestade de chuva e vento, o que só me permitiu parar para tomar água e comer rapidamente. Cheguei em Angers encharcada pela chuva, onde, então, comprovei que as capas de chuva não podem ser as descartáveis, pois não protegem o suficiente.

No dia seguinte, roteiro finalizado! Sonho realizado! Foram 484 km de rotas cicláveis, castelos maravilhosos, florestas, fazendas, vinhedos, pontes, cidades medievais, uma natureza deslumbrante e um povo encantador.

Como não levei relógio, aprendi a ter noção do tempo pela posição do sol. Todos os sentidos se aguçaram. O barulho das folhas secas do outono quebrando sob as rodas da bicicleta foi um dos fatos que me encantou. A natureza é pródiga em cores e no outono as folhas são lindas, indo do verde ao marrom passando por todos os matizes. A temperatura, variando de 9 a 13°C, era agradável para pedalar.

Em todo o percurso usei o aplicativo Strava, que registrou minha viagem, com exceção dos dois últimos dias, que travou, e o Google Maps.  Gostaria de ter aparecido mais nas fotos, porém, foi o resultado de ter viajado sozinha.

Por onde passei, as pessoas foram receptivas e muitas vezes perguntaram se eu preferia falar em inglês ou espanhol. Procurei optar pelo francês, mesmo enrolando a língua muitas vezes, e a paciência do povo francês interiorano foi inigualável. A meu ver, sermos ou não bem tratados depende da forma como abordamos as pessoas em qualquer lugar do mundo. Lá todos se cumprimentam com um ‘Jour’, mesmo sem se conhecerem. Dessa forma, não tinha como os meus dias não serem felizes.

A Jolie foi uma grande parceira, não precisei fazer qualquer reparo… Nenhum pneu furou! Sem o amor e o apoio da minha filha, dos meus pais, irmãos, cunhada e amigos verdadeiros, nada disto teria acontecido de forma tão especial. Retornei ao Brasil com o sonho realizado, muita vontade de pedalar por outros lugares, e… Feliz!