Minha companheira de cicloturismo, Cristina, não é das mais treinadas e falou que gostaria de fazer um pedal sem grandes perrengues. Por isso, pesquisei por boas ciclovias na Europa, com clima ameno, poucas chuvas, paisagens bonitas, trajeto razoavelmente plano para fazer em sete dias, com etapas de 25 km a 50 km, totalizando 250 km em região com boa infraestrutura. Acabei descobrindo três ciclovias no norte da Itália que ligam as regiões do Alto Adige, Trentino, Vêneto e Lombardia, para se visitar na primavera, ou seja, final de maio e início de junho. Cristina me surpreendeu com o seu desempenho durante a pedalada.

Estávamos decididos a fazer cicloturismo na verdadeira acepção da palavra, ou seja, descobrir e curtir lugares, pessoas, comidas, culturas e tudo mais usando a bicicleta como meio de transporte e parte dessa aventura.

A primeira ciclovia que conhecemos foi a Ciclovia do Vale do Adige, trecho da Via Claudia Augusta pelo qual fomos de Lana a Rovereto. A segunda foi a Ciclovia do Lago de Garda, que percorremos de Rovereto a Torbole atravessando o Parco dell’Arrampicata (Parque da Escalada). Finalmente, percorremos a Ciclovia do Rio Mincio, ligando Peschiera del Garda a Mantova.

Optamos por viajar sem guia, sem carro de auxílio para suporte e transporte de malas e sem GPS. Em contrapartida, pernoitamos em hotéis confortáveis e todos previamente reservados, o que foi um risco no caso de algum contratempo, mas útil nas cidades lotadas. Utilizamos mapas da internet, quase dispensáveis, pois o trajeto é bem sinalizado.

Quando partimos do Brasil, as notícias da Itália eram de que ocorria uma “Primavera Pazza”, ou seja, maluca, já que chovia, ventava e até nevava, como vimos no Giro d’Italia. Mas desde que desembarcamos em Milão, o tempo abriu e foi bom durante quase toda a viagem. De Milão, pegamos um trem em direção ao norte, cidade de Lana, onde iniciaria nossa pedalada. Compramos duas mountain bikes no local de início do pedal, na região de Bolzano, e felizmente escolhemos bikes com aro 26’’, pois bikes 29’’ não caberiam no ônibus e trem de volta.

Ciclovia do Vale do Adige

Lana – Bolzano: saímos da estação de trem de Lana e seguimos o mapa em direção à bicicletaria. Entramos em uma ruazinha no meio de uma enorme plantação de ameixas. Achei que estávamos perdidos. Liguei o celular e descobri que toda a cidade possui Wi-Fi gratuito. Confirmei que estávamos no caminho certo. No fim da rua, para nossa surpresa, encontramos a bicicletaria muito bem equipada do Sr. Staffler, que nos esperava com a Cube e a Trek pedidas.

O pedal foi por uma ótima ciclovia margeando o Rio Adige, passando por belas paisagens e cruzando com todo o tipo de ciclistas: atletas, turistas, moradores e famílias com o bebê ou até o cachorro em mini trailers. Entramos em Bolzano pelo belo parque que margeia o Rio Isarco e notamos que a população da cidade rotineiramente anda de bicicleta. A cidade possui comércios bons, restaurantes e museus, com destaque para o Museu de Otzi.

Otzi, o homem do gelo que morreu há mais de cinco mil anos, teve seu corpo achado bem preservado com o derretimento de uma geleira. O interessante é o que acharam junto com ele, e que nos atraiu como viajantes: a tecnologia de sua bagagem. Este homem viajava pelas altas montanhas do Tirol com uma bagagem pequena, mas útil, como a nossa, que tinha entre outros faca, pequeno machado, bota de pele com camadas de feno para isolar o frio e amortecer as  pisadas e até um “estojo de primeiros socorros”, com fungo antibiótico e plantas analgésicas e anti-inflamatórias… E eu preocupado com infraestrutura, cinco mil anos depois dele!

Bolzano – Mezzocorona: saindo de Bolzano erramos uma saída da ciclovia. Havia uma placa com círculo vermelho em volta da bicicleta, que significa Proibido Bicicleta, ao contrário da sinalização no Brasil, que teria uma faixa diagonal vermelha sobre a bicicleta para indicar a proibição. Com o erro, começamos a entrar perigosamente em uma rodovia expressa, mas logo pudemos ver o respeito dos italianos com os ciclistas: eles reduziam a velocidade, abriam o vidro de carro e, ao invés de palavrões, nos orientavam sobre a necessidade de retornar e contornar uma ponte, para acharmos a continuação da ciclovia.

Após o susto, reencontramos a ciclovia que seguia por um parque, entre os rios Adige, à direita, e Isarco, à esquerda. Entramos em uma pequena floresta e percorremos o típico vale, com o Rio Adige ao centro, ladeado por vinhedos e pomares, com cadeias de montanhas rochosas nas laterais.

Após Salorno, termina o trecho da ciclovia altoatesina ou sudtirolesa pintada de branco, e começa o trecho trentino pintado de amarelo. Essa região de transição estava agradavelmente sensorial na primavera, pois tínhamos belas paisagens com flores coloridas, odores perfumados de jasmim, lavanda e tília, além do canto dos pássaros e o rumor do rio. Imagine o que nós, paulistanos, sentimos, se já nos damos por satisfeitos ao pedalar na ciclovia do Rio Pinheiros com aquele odor de matéria orgânica em decomposição – falando caprichosamente para não dizer outra coisa.

“Logo pudemos ver o respeito dos italianos com os ciclistas: eles reduziam a velocidade, abriam o vidro de carro e, ao invés de palavrões, nos orientavam.”

Mezzocorona – Trento – Rovereto: pegamos a única chuva da viagem, mas quando chegamos em Trento, famosa por seus eventos culturais, o tempo já era de sol e céu aberto. Após pernoite na cidade, presenciamos a saída de uma excursão de cerca de 40 ciclistas suecos muito organizados, com guias com bandeirinhas do país e até um mecânico em um mini trailer engatado na bike, no qual levava ferramentas, pneus etc. No caminho para Rovereto, bela cidade que possui uma ciclovia e merece um passeio de bicicleta, atravessamos uma bela ponte exclusiva para ciclistas.

© Roberto Zanovello

Ciclovia do Lago de Garda

Rovereto – Torbole: a partir desse trecho entramos na Ciclovia Lago de Garda. Deixamos de seguir o Rio Adige e cruzamos a cadeia de montanhas em sua parte de menor aclive. Passamos por uma subidinha antes da cidade de Mori, uma usina hidrelétrica e, mais adiante, a segunda subida que passa pelo Lago de Loppio até chegar a Nago.

Durante quase toda a ciclovia fomos ultrapassados por cicloturistas ingleses, americanos, alemães e austríacos, melhor preparados fisicamente e com uma parafernália de GPS, porta-mapas, guias detalhados etc. Mas quando chegamos a Nago, após passarmos por Mori, uma cidadezinha em que se mistura a parte moderna, medieval e rural e um cruzamento de muitos caminhos, nos demos conta de que tínhamos ultrapassado todos os cicloturistas “high tech”.

Em Nago, uma trifurcação com descidas divididas com carros nos deixou em dúvida de por onde continuar. Felizmente, uma senhorita nos orientou a pegar a entrada mais à esquerda, que é mais segura e não tem trânsito de caminhão e ônibus. Foi um downhill gostoso com a vista para o Lago de Garda e a cidade de Torbole se aproximando.

Torbole sul de Garda, é uma cidade paraíso para mountain bikers. Há pistas de testes da Cube e da BMC. Várias excursões para trilhas nas montanhas e parques de MTB e BMX, com o Parco Busatte, são organizadas na região. A cidade estava lotada de turistas, dos quais cerca de 80% de origem alemã, já que o sul da Alemanha está sofrendo fortes inundações e os mesmos aproveitaram para dar uma fugida em grande estilo.

Torbole – Peschiera del Garda: nesse trecho a ciclovia na margem do lago é descontínua, sendo necessário pedalar numa estrada estreita e movimentada e, em outros trechos, a ciclovia pode ficar submersa conforme o nível da água do lago. Como os ciclistas italianos falaram que é perigoso até para quem já conhece os horários de baixo movimento de carros e o nível do lago, optamos por não pedalar. Sugeriram que fôssemos de balsa, em quatro horas de travessia, ou tentar um ônibus, em uma hora e meia de viagem, mas dependeríamos da boa vontade do motorista e do bagageiro estar livre. Demos sorte: o motorista nos ajudou a acomodar as bikes sem a roda dianteira no pequeno bagageiro daquele grande ônibus, e só couberam porque eram 26’’.

Chegamos em Peschiera e fizemos um curto pedal até o nosso hotel. A cidade é bonita, com parques, fortaleza, marina e belos passeios de lancha no Lago de Garda. Alugamos e pilotamos uma por 60 euros!

© Roberto Zanovello

Ciclovia do Rio Mincio

Peschiera del Garda – Mantova: a Ciclovia do Rio Mincio parte de uma bela fortaleza, em Peschiera, na qual se chega em Mantova após 44 km de trajeto plano com bom asfalto. Dos vários lugares para visitar no caminho, decidimos conhecer o belo vilarejo de Borghetto, com seus moinhos e pontes antigas. Em Mantova, fomos recepcionados pelos grandes lagos da cidade e aproveitamos para descansar e comer no parque que os contorna.  Uma curiosidade da ciclovia em Mantova é que no trecho que beira os lagos existe uma duplicação, subindo ao nível da rua, pois é comum os lagos transbordarem. Outro aspecto que chamou a atenção foi no trecho urbano indo para a estação de trem, onde a ciclovia é separada da avenida, de intenso movimento, por grandes blocos de concreto, gerando certa segurança e tranquilidade aos ciclistas.

Terminamos nossa cicloviagem em Mantova, e pegamos um trem regional para Milão com espaço reservado para bikes. A maioria dos trens expressos não aceitam bikes. Em Milão pegamos o trem expresso para o aeroporto de Malpensa: não precisa pagar suplemento tendo o bilhete aéreo em mãos, e as bikes só são aceitas das 10 às 16 horas, mas não há área especial para elas. Nesse moderno trem passamos um perrengue: as bikes não podem ficar no estreito corredor e tivemos que ficar na entrada direita ou esquerda: tínhamos que ficar atentos sempre para ver de qual lado abriria a porta da próxima parada para não bloquear a entrada e saída dos passageiros. Isso nos obrigou a manobrar as bikes em um pequeno espaço e também testou a paciência dos passageiros italianos, gerando um pouco de estresse e, no final, boas risadas. Já a viagem para o Brasil, pela companhia aérea TAM, foi bastante tranquila: fomos bem atendidos e as bikes chegaram intactas.

Essa cicloviagem no exterior foi uma ótima experiência para nós e recomendamos para cicloturistas iniciantes.