Se você pensa que não há aventura na Europa, vai mudar de ideia ao viajar pelos Alpes.

Entre as duas cidades que eu e meu companheiro Rodrigo queríamos conhecer, Veneza e Salzburg, ficam os Alpes, a cadeia de montanhas mais altas da Europa. Existem rotas cicloturísticas que passam mais a oeste, como a Via Claudia Augusta, e rotas de mountain bike por singletracks, mas nosso plano era cruzar de uma cidade à outra atravessando os Alpes. Desembarcamos em Veneza ainda sem o percurso definido, confiando que seria fácil conseguir informação, afinal estaríamos no continente do cicloturismo. Mas não foi tão simples assim, os postos de informação turística de todos os lugares da Europa que passamos só têm material sobre roteiros curtos, nas redondezas. Procuramos então um mapa rodoviário e conseguimos um Via Michelin excelente. Dava a localização dos campings e ainda trazia uma classificação de estradas, destacando as de menor movimento, as cênicas e turísticas e ainda a extensão de todos os túneis.

© Rodrigo Telles

No país do Giro

Depois de conhecer a intrigante e hiperturística Veneza, saímos a pedal rumo ao norte. Esta região da Itália é muito industrializada e movimentada, então, não havia muito por onde escapar. Encaramos 25 km tenebrosos. Pedaladas tensas, com tráfego intenso, estrada sem acostamento e motoristas tirando fina “a lá brasileira”. Mas depois que chegamos às estradas vicinais tudo ficou mais tranquilo.

No segundo dia já tinha à frente a primeira visão dos Alpes. Uma coisa é ver nas fotos, outra é estar bem debaixo daquela parede, sabendo que vai subir aquilo tudo de bicicleta. É lindo e hipnoticamente nos atraia para lá. Toda essa região dos Alpes é chamada de Dolomitas, cujo nome vem da rocha dolomítica, de origem calcária, que confere o formato característico das montanhas e garante a limpidez das águas.

Depois de alguns quilômetros começaram as primeiras subidas e com elas apareceram os grupos de ciclistas de speed treinando. Todos nos cumprimentavam e conforme as subidas ficaram mais íngremes eles, encantados com o peso de nossa bagagem, gritavam para nós: “bravo, bravíssimo”. Era um incentivo e tanto receber esta forma de apoio e respeito. Por coincidência, esta rota que traçamos foi exatamente a do Giro d’Italia, que havia passado por ali alguns dias antes. As bandeiras cor de rosa ainda estavam penduradas pelas cidades e os nomes dos principais ciclistas estavam pintados no asfalto.

Foram várias horas de pedal na marcha mais leve, para depois descer muito e começar tudo de novo. Enfim, paciência é a lei máxima do cicloturismo. Mas, entre uma subida e uma descida, vários visuais para os picos nevados, cânions, rios de água verde esmeralda e pedras prateadas para nos animar. Agora posso afirmar com segurança: aquelas cores são reais mesmo.

A inclinação das subidas era sempre constante, estava até na placa: 10%. É pesado mas é pedalável, desde que você mantenha o ritmo e não tenha pressa. A vantagem é saber que não vai ficar mais íngreme do que isso, então, dá para dosar bem seu ritmo. Atravessamos também alguns túneis, mas eram curtos, nada assustador.

© Rodrigo Telles

Adeus Itália

Nesta noite nos demos conta de que seria a nossa última na Itália e não havíamos comido pizza ainda, uma falha imperdoável. Resolvemos então este entrave diplomático, devorando uma pizza cada um, já que a pizza lá é assunto individual e não se divide para várias pessoas como aqui. E não é pequena não, é o equivalente a uma pizza média nossa. Pedalare e mangiare, perfetto!

Seguindo viagem, continuamos nossa ascensão serpenteando pela montanha afora. Eram tantas curvas que num dado momento dava para ver dois lances de estrada abaixo e mais cinco acima. Alcançamos um topo, que é a divisa com a Áustria e passamos pelos prédios abandonados da alfândega, utilizados antes da unificação europeia. Cruzamos o túnel mais longo de toda a viagem, cerca de três quilômetros. Foi mais tranquilo do que esperávamos, pois era bem iluminado e os motoristas eram sempre cuidadosos. Alguns trechos eram cobertos somente parcialmente, dando uma bela visão para os bosques verdes. Saindo do túnel uma cena pitoresca, a primeira imagem que tive da Áustria e que marcou muito minha memória. Quando entramos no túnel estava chovendo e quando saímos do outro lado estava um céu azul, o sol brilhava, havia um lago com uma família loirinha fazendo piquenique no gramado. Para completar, alguns cavalos pastavam ao redor. Que bucólico, parecia um calendário ao vivo.

Neste dia ainda tivemos nossa primeira experiência com os maravilhosos campings austríacos. Banheiros impecáveis, com ambiente aquecido, água quente em todos os tanques e revistas para quem espera a máquina de lavar. Em alguns tinha até secador de cabelos à disposição e música ambiente. E o preço é bem convidativo, cerca de 15 euros para o casal. Só tivemos um probleminha de comunicação na chegada aos campings, pois os cartazes informativos eram só em alemão, e os donos em geral não falavam inglês. Mas com boa vontade e simpatia de ambos os lados tudo se resolvia facilmente.

Conforme ganhávamos altitude o clima ficava mais e mais instável. Mesmo para quem está acostumado com as mudanças rápidas do tempo da capital paulista, era impressionante. O tempo mudava quatro, cinco vezes por dia, variando de céu sem nenhuma nuvem para tempestade e vice versa, em menos de duas horas. Era um tal de tira e põe capa que acabamos até nos resignando à trabalhosa tarefa.

© Rodrigo Telles

Viajante solitário

Pensávamos encontrar hordas de cicloturistas pelo caminho, mas na verdade encontramos um só. Vimos muitos cicloturistas nas partes planas, mas ali nas montanhas não. Este único e solitário cicloturista era um rapaz tcheco muito figura, que estava fazendo o mesmo percurso. A intenção dele era fazer em metade do tempo que nós, então nos despedimos. Na noite que o conhecemos, no camping, notamos que ele “secou” meia garrafa de vodka e pensamos, “o cara é forte mesmo”. Mas no final do dia seguinte nos encontramos novamente. Acho que entre diminuir a quilometragem ou a quantidade de bebida ele ficou com a primeira opção, e assim nos encontramos por vários dias seguidos ainda.

Agora a inclinação das subidas havia passado de 10 para 12%, e deu para sentir muito bem isso nas pernas. Fazíamos bastante força a cada pedalada e não havia nem um pedacinho plano para aliviar. De subida em subida fomos nos aproximando de nosso objetivo, o ponto mais alto onde cruzaríamos os Alpes. Mas no caminho tivemos ainda mais uma grata surpresa, o Hohe Tauern, um parque nacional que é o orgulho dos austríacos, por ser o berço do alpinismo na Europa; segundo consta ali foi escalado o primeiro pico nevado do mundo, em 1731. O Parque Hohe Tauern é o maior do país e segundo maior da Europa. Como ficava no meio do caminho entre a última cidade e o passo mais alto, optamos por subir um dia com as bicicletas vazias, só para conhecê-lo e voltar até a cidade onde estávamos acampados. O Parque é sensacional, tanto em beleza quanto em estrutura, e não cobra ingresso. Pude observar de perto um glaciar e também uma simpática marmota, só isso já me valeu a viagem e todas as subidas.

© Rodrigo Telles

O dia mais difícil da travessia finalmente chegara, a subida em si já havia percebido que, com bastante determinação, eu poderia dar conta. A quilometragem também não era alta, cerca de 50 km; o que ia pesar mesmo seriam as condições climáticas. Cada curva dos caracóis da estrada tinha uma placa com o nome da curva e a altitude. Parei de contar na vigésima sexta, e vieram muitas mais. A partir dos 2.300 metros foi mais sacrificado, pelo frio e chuva. Além disso, o vento varria o gelo ao redor da estrada antes de nos atingir. Com muito esforço chegamos ao passo, onde um providencial café nos deu alguns instantes de ambiente aquecido e o mais importante chocolate quente que já tomei na vida. Fiquei com vontade de perguntar o preço da xícara aquecida, sem nada dentro, só para eu ficar esquentando minhas mãos. Sempre tive um problema sério com hipotermia e congelamento, por isso tomo todos os cuidados possíveis, mas desta vez deixei de levar uma luva de neve, porque sabia que provavelmente ia usar somente um dia e carregá-la por toda a viagem. Assumo o erro, devia ter levado, pois se pegássemos uma nevasca, o que não era difícil de acontecer, o frio ia ser muito maior.

Passado o topo, veio a parte pior: bem mais difícil que subir é descer, pois esfriamos bastante por não pedalar e por conta da própria velocidade da bicicleta. Soltar o freio para chegar logo não adianta, é um frio insuportável, por muito tempo. A sensação térmica do frio aumenta muito com o vento. A temperatura era de zero grau, mas a sensação térmica a 25 km/h seria de -12°C, sem contar o vento que fazia. O jeito foi ir aguentando aos poucos, com a mão tão dura que já havia tomado o formato de apertar os manetes de freio. A paisagem era magnífica, ao sair do túnel do passo, vi um vale como uma cratera, com 180° de picos nevados ao redor. Belo e desesperador ao mesmo tempo, nem deu para curtir muito a paisagem. Várias vezes tivemos que parar durante a descida para as rajadas de vento não nos derrubarem. E para não correr o risco de rolarmos abismo abaixo com o vento, tínhamos que ir no meio da pista.

© Rodrigo Telles

A partir dali tudo foi tranquilo. Seguimos por ciclovias, hora de asfalto hora de terra, mas sempre impecáveis, pedalando entre bosques e cruzando charmosos vilarejos. Nesta parte plana passamos a cruzar várias famílias passeando de bicicleta, de patins e até de biga. Sim, vimos muitas criações de cavalos e pessoal treinando com as bigas, um esporte que parece bem popular por lá, apesar de bastante exótico para nós. Outra coisa que nos causou admiração foi cruzar com uma peregrina de mochilão e ver várias setas para o Caminho de Santiago de Compostela, que deve estar a uns 2.500 km dali!

O povo austríaco da região que conhecemos é descontraído e simpático, além de muito prestativo. Tudo funciona bem, é bastante organizado, sem perder o calor humano. Salzburg nos cativou por manter o encanto e ser uma cidade com vida própria, não só voltada para o turismo. Dali seguimos até Munique, com um amigo que está morando na Alemanha. Foram mais três dias de pedal passando pela região do belo lago Chiemsee. Mais uma vez não havia informações em nenhum posto turístico sobre esta rota, mas o GPS trazia as melhores opções para bicicleta, entre ciclovias e estradas vicinais. Aí ficou fácil, era só pedalar e torcer para chegar antes da bateria acabar. Pedalar neste trecho não exige quase nenhum planejamento, é simples e gostoso como ir passear no parque. O encerramento da cicloviagem foi em alto estilo, na choperia Hofbrauhaus de Munique, a mais antiga do mundo, com um canecão tão imenso que dava para se afogar dentro dele.

É incrível como não importa o quanto você tenha de informações ou tenha ouvido sobre um lugar, nada é comparável a ir lá e ter a sua própria experiência, sempre vai haver muita descoberta se estiver disposto a isso. E por mais que você conheça um local, nunca vai ser igual a conhecê-lo de bicicleta. A cada viagem que faço fico mais fascinada pelo cicloturismo e suas infindáveis possibilidades.

© Rodrigo Telles

Dicas:

  • Camping a 7 km de Veneza, em Veneza Mestre, com ônibus na porta.
  • Camping em Salzburg – bairro de Aigen, 5 km do centro.
  • Cama&Café (Bed & Breakfest) – são mais baratos que os hotéis e muito confortáveis. Mas não espere a convivência com a família como ocorre aqui no Brasil, lá geralmente funciona como uma pequena pousada.
  • A média de gastos incluindo alimentação e hospedagem (na maioria campings e alguns acampamentos selvagens e alguns cama-café) foi de 22 euros por pessoa.
  • Se for pegar trem com a bicicleta na Europa fique somente nos trechos regionais, em trens de longa distância pode haver dificuldades para levar as magrelas.
  • Antes de comprar a passagem aérea verifique com a companhia as condições para transportar a bicicleta. Algumas companhias chegam a cobrar 150 euros por trecho.