Durante 180 dias, Guilherme Cavallari percorreu seis mil quilômetros de bicicleta por toda a extensão da Patagônia e da Terra do Fogo, no Chile e Argentina. Ao longo da aventura, também caminhou por trilhas, acampando e explorando. As impressões da aventura viraram documentário e livro, que apresentamos e comentamos a seguir neste bate-papo com o autor.

Therbio Felipe entrevista Guilherme Cavallari

Guilherme, tivemos a grata satisfação de ler teu livro com toda a atenção e carinho. Das tantas perguntas que nos sobressaem, a primeira que gostaríamos de formular é: em que, na sua opinião, se fundamenta o estranhamento que a grande enormidade de pessoas revela quando alguém como você diz, tão simplesmente, ‘vou viajar seis meses de bicicleta e acampar por toda a Patagônia e Terra do Fogo’? Em que se baseia tal perplexidade em seu modo de ver?

Guilherme: Acho que estamos envenenados pelas doenças do “utilitarismo”, do “gerenciamento”, da “eficiência” e da “lucratividade”, termos que até pouco tempo atrás eram utilizados apenas na administração de empresas, mas que hoje são comuns no direcionamento de vidas humanas.

Quando alguém diz que vai passar seis meses pedalando, acampando e explorando um lugar como a Patagônia, como eu fiz, a reação geral imediata é questionar em que essa ideia vai acrescentar ao plano de carreira, à aposentadoria, ao projeto de acúmulo de bens e capital, que parecem ser os únicos projetos de vida válidos. Essa febre de planejar e planilhar tudo, inclusive a própria existência, leva ao absurdo de enxergarmos vidas como pequenas corporações. Pais que escolhem as escolas de seus filhos pensando no “networking” que o ambiente vai possibilitar, jovens empenhados em definir suas profissões como se isso fosse uma definição de personalidade, pessoas confusas e perdidas que em vez de buscarem a orientação de um psicanalista procuram um life coach ou outro atalho semelhante. No final, tudo parece objetivar o sucesso, como se o sucesso efetivamente existisse.

Viajar é antes de tudo autoconhecimento. Viagens longas são mergulhos profundos para dentro de nós mesmos. Viajar de bicicleta, sem o conforto e o comodismo de veículos motorizados, é um compromisso com essa busca pessoal sem atenuantes. Raramente o que é fácil, confortável e previsível é essencialmente bom.

© Guilherme Cavallari

Jornadas como a que realizou, em 180 dias, ao pedalar por 5.878 km e cumprir os 541 km de trekking, costumam oferecer momentos de extremo silêncio interior e outros de grande turbulência. Que grau de importância, você considera, que sua preparação emocional para a solidão teve em determinados momentos? Como se preparar para o imprevisível?

Guilherme: Não acredito que exista “preparação prévia” para as condições inesperadas e inusitadas da vida. Também não vejo essa minha viagem solo como solitária. Eu não estava sozinho, estava todo o tempo acompanhado de todos os demais seres vivos que habitam a Patagônia, nem todos humanos. Eu estava sempre acompanhado de minhas crenças, descrenças e fantasmas, que fazem um baita barulho! Para ser sincero, eu me sinto infinitamente mais solitário dentro de um shopping center lotado ou num estádio de futebol em final de campeonato (se eu frequentasse estádios de futebol ou shopping centers).

© Guilherme Cavallari

Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas – oferece ao leitor, além do dia a dia de pedal ou trekking, um vasto conteúdo de referências formado por mapas, citações de literatura intratextual, bibliografia para se trancar no quarto e ler por meses em pleno deleite e, de quebra, filmografia. Como se ainda não bastasse, você brinda a todos com uma listagem de equipamentos de acampamento, da bike, trekking, transporte, comunicação, emergência, vestuário e calçados, tudo absolutamente calculado com indicação de peso, individual e total. E com um fôlego de aventureiro, apresenta o cronograma detalhado. Em seu roteiro estavam, também, localidades que você já havia visitado anteriormente, pontos que geraram certa tranquilidade. Ao se debruçar para escrever esta obra, quais as principais preocupações que vieram à mente?

Guilherme: Terminada a viagem exterior, comecei a longa viagem interior para produzir o livro Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas. Precisei de seis meses para percorrer de bicicleta a Patagônia e a Terra do Fogo, mas foram necessários dois anos para escrever o livro. Pedalar é muito mais fácil que escrever!

Demorou muito tempo – dez horas por dia na frente do computador, debruçado sobre os diários escritos na viagem, diante de pilhas de livros já lidos e a serem lidos –, até eu começar a acreditar que conseguiria transpor para o papel a essência da experiência vivida. Eu tinha muita expectativa! Eu leio muito e consigo reconhecer um bom texto quando me deparo com um. Mas foi só quando desisti de tentar escrever um “bom texto” que meu livro começou a ganhar cara. Quando entendi que deveria apenas me esforçar ao máximo e me divertir no processo de escrever, a narrativa ganhou vida, ficou natural e verdadeira.

Meu maior medo ao escrever Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas foi não conseguir ser sincero e autêntico, não conseguir reproduzir a sinceridade e verdade que me impulsionaram a fazer a viagem e que me acompanharam durante todo o percurso.

© Guilherme Cavallari

Alguns companheiros cicloviajantes opinam, e nós engrossamos o coro, que mais do que as impactantes paisagens, as pessoas que se encontra pelo caminho são elementos de valor inestimável. Em sua Transpatagônia, personagens de sonho, reais, simbólicos e históricos, estão sempre presentes. Que características você destacaria que mais te chamaram a atenção entre as pessoas que cruzaram teu horizonte?

Guilherme: Enquanto eu pedalava pela Patagônia fiquei atento para não julgar as pessoas que encontrava ou a mim mesmo. Deixar as impressões internas e externas virem à superfície o mais livres possível. A isso chamei de “deixar a bagagem em casa”, indicando simbolicamente a bagagem cultural.

Assim, eu não buscava ou evitava encontrar determinadas pessoas com determinadas características. Encontrei todo tipo de gente – turistas e residentes, ricos e pobres, sensatos e insanos – e todos foram bem-vindos. É claro que o ambiente externo – no caso, a Patagônia – filtra e influencia as pessoas que estão ali, inclusive eu mesmo. Havia então uma característica geral de autossuficiência, liberdade, mais introspecção e propósito, diferente do público que encontro, por exemplo, em grandes cidades.

A vida na Patagônia não é fácil, confortável ou cômoda, e buscar isso naquele lugar é um pouco descabido. Encontrar o conforto no desconforto, a fartura na carência, a plenitude na solidão eram exercícios constantes e lições que eu sabia que iria encontrar na viagem. Se eu quisesse algo diferente teria ido para outro lugar.

© Guilherme Cavallari

A transição entre cicloturismo, trekking e cicloturismo novamente, parece ser algo bastante difícil: por favor, fale a respeito.

Guilherme: Embora eu considere a bicicleta um veículo de transformação – mais do que um veículo de transporte, esporte ou lazer – , ela é mesmo assim apenas um veículo. Em diversas situações a bicicleta não me levaria aonde eu queria chegar por não haver caminhos, por não ser o veículo mais apropriado, então, caminhar era a única alternativa. E isso foi planejado, não aconteceu por acaso na viagem.

Nunca pensei em termos de dificuldades em transitar da bicicleta para o trekking e voltar para a bicicleta, eu sempre pensava na imensa oportunidade que era ter essa liberdade de locomoção e festejava com a mesma intensidade cada pedalada e cada passo.

É claro que eu tinha o equipamento adequado e isso facilitava tudo. Mas antes disso vinha a disposição física e mental de enfrentar outros obstáculos e sair da minha zona de conforto. Quando nos habituamos com uma situação ela se torna confortável para nós, mesmo sendo aparentemente desconfortável para os outros. Esse exercício constante de aceitação e adaptação é fundamental na busca do autoconhecimento.

Quem não consegue se adaptar, por exemplo, à falta de banho ou à água fria, à comida meia-boca ou escassa, à falta de conforto e higiene de um acampamento selvagem, muito provavelmente não vai conseguir aceitar e se adaptar aos inevitáveis “desconfortos” da vida como velhice, doença e morte.

© Guilherme Cavallari

Em parte da dedicatória super bacana que há no livro que ganhei de suas mãos, você escreveu “que todos os caminhos têm seus pumas”. Para os ciclistas que sonham com Patagônia e Terra do Fogo, quais são suas considerações a respeito de preparar-se para tal desafio?

Guilherme: Nessa dedicatória, assim como no texto do livro, eu me refiro aos “pumas simbólicos” tanto quanto aos pumas reais. Nossos medos, expectativas, frustrações, ansiedades e preconceitos são quase sempre muito mais perigosos que os pumas de verdade. E como “todos os caminhos têm seus pumas”, cabe a cada um de nós encontrar seu caminho consciente e harmonioso entre esses pumas, cobras, ursos, aranhas e demais objetos de fobias.

© Guilherme Cavallari

Imensidões dramáticas, lagos e lagunas, vulcões, rios, rios e rios, semiárido, geleiras, vales, baías, ventos, bosques, parques nacionais, passarelas, pontes e fronteiras. Ler o seu livro é uma viagem a horizontes geográficos e culturais extremos. Dá um frio na barriga ser responsável por inspirar tanta gente? Como você se relaciona, enquanto autor, com esta responsabilidade?

Guilherme: Eu acredito que livros têm vida própria, independentes de seus autores. Isso não quer dizer, no entanto, que qualquer um pode escrever e publicar qualquer coisa sem assumir responsabilidades. Longe disso.

Em Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas fiz questão de expor, além da viagem exterior e da viagem interior, também um pouco da minha relação pessoal com os livros, que representam o mundo abstrato. Quando leio, vivo outras vidas. Personagens e principalmente autores oferecem exemplos e modelos de vida para mim. Eu quis conhecer a Patagônia principalmente por conta dos livros que li sobre o lugar e espero que meus leitores sintam o mesmo impulso ao ler meu livro. Mas acho que “viajar de bicicleta” ou “conhecer a Patagônia” não são as mensagens mais importantes do meu livro.

© Guilherme Cavallari

Gui, seu livro virou documentário e está bombando no NetFlix. Porém, sabemos que a linguagem de vídeo, por vezes, abrevia o tanto de conteúdos emocionais e históricos expressos na obra literária. Gostaríamos de fazer um convite para que nossos leitores se tornassem seus leitores, mas ninguém melhor do que o próprio autor para fazê-lo. Com a palavra, Guilherme Cavallari.

Guilherme: O merecido sucesso do documentário Transpatagônia, baseado nas filmagens que fiz durante a viagem e em depoimentos que dei mais tarde, dirigido pelo talentoso Cauê Steinberg, não concorre com o livro Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas.

Durante a viagem de seis meses mantive um extenso diário, alimentei um blog e fiz podcasts para o Portal Extremos. Parte do material do blog e dos podcasts foi usado para elaborar e editar o filme-documentário Transpatagônia. Mas quando sentei para escrever o livro fiz questão de não usar o material já utilizado no blog, nos podcasts ou disponível nas filmagens. Comecei uma nova viagem do zero usando meu diário pessoal e minha memória como guias. A linguagem e a narrativa do livro são completamente diferentes da linguagem e da narrativa do filme, embora a experiência seja a mesma e o narrador também. Um material completa o outro.

Sei que existe uma preguiça geral de ler textos longos hoje em dia, que todo mundo acha mais fácil assistir a um filme ou ler um simples comentário na internet. E mesmo assim publiquei meu livro com 336 páginas. Isso porque eu simplesmente me recuso a alimentar essa preguiça, tanto em mim quanto nos outros. A preguiça de ler é prima-irmã da preguiça de pensar, de estudar, de viajar, de viver novas experiências e de sair da própria zona de conforto. E dessa fonte eu já sei que não sai água potável.