DE PEDAL PELA MAIOR CADEIA MONTANHOSA DA EUROPA

Procuro não olhar muito para o topo da montanha. Olho fixo apenas alguns metros à frente de minha roda dianteira. Concentro-me para não perder a linha ideal pedalando a trilha, junto toda a minha energia e a coloco em minhas pernas e, como em um transe, pedalo montanha acima; o ritmo da pedalada é uma combinação entre respiração, batidas do coração e o movimento dos pedais.

Alguns metros de ascensão e as coxas começam a queimar. Eu não me importo, ignoro, faço caretas e continuo no meu ritmo, quase curtindo as dores. Estou chegando, agora é a vez de o pulmão exigir mais oxigênio, a respiração ficar mais ofegante, mas consigo chegar ao topo com um ritmo controlado.

Não sei o que mais gosto ao subir montanhas. Será a vista do topo? Será o desafio da pedalada em si? Serão essas dores? Acho que é uma combinação de respostas. Gosto mais de subir que de descer pedalando as montanhas. Alguns já me disseram que tenho tendências masoquistas. Será? Esse gosto pelas montanhas me fez pedalar pelas maiores cadeias montanhosas de nosso planeta, da cordilheira dos Andes ao Himalaia e os Alpes não poderiam faltar em minha coleção.

Atravessar os Alpes de bicicleta não é apenas um desafio geográfico, é sobretudo um desafio físico e psicológico.
A história do Transalpes

© Fábio Zander

Moro a alguns anos no sul da Alemanha e no quintal de casa tenho os Alpes. Para o meu trabalho de bike guide guiando ciclistas mountain bikers pelos Alpes, a cidade de Munique é o lugar ideal para se viver.

Quando ainda morava no Brasil e pedalava por serras ou atravessava os Andes, já lia ou ouvia falar a respeito das travessias de bicicletas pelos Alpes em minhas cicloviagens e encontros com cicloturistas europeus. A partir de então, atravessar os Alpes de bicicleta foi um dos meus sonhos, realizado anos depois, em 2009.

A história dos Transalpes ou Alpencross, como é chamada a travessia pelos Alpes de bicicleta, começou provavelmente em 1989 com um roteiro criado pelo alemão Andi Heckmair saindo de Oberstdorf, no sul da Alemanha, com destino a Riva no lago de Garda, na Itália. Esse roteiro clássico tem aproximadamente 320 quilômetros e 13.500 metros de ascensão total, transpondo diversos passos que são os pontos mais altos de estradas e trilhas.

Atualmente existem inúmeros roteiros, trilhas e estradas alpinas, sendo que diversas agências oferecem essas pedaladas e mesmo assim é raro o encontro com outro grupo.

A vantagem de se contratar uma agência é o transfer da bagagem de um hotel para o outro, a reserva das hospedagens e o acompanhamento de um guia especializado que conhece bem o roteiro. Isso significa ao ciclista a concentração total na pedalada, atravessando vales, montanhas com lindas paisagens e vistas de tirar o fôlego.

Atualmente guio diversos trajetos, principalmente partindo da cidade alemã de Garmisch com destino ao lago de Garda. Os roteiros exigem diferentes níveis técnicos e físicos. Alguns mais leves para bicicletas do tipo trekking, como pela Via Claudia Augusta ou a Via Bavarica Tyrolensis, e outros por caminhos e trilhas mais exigentes para o mountain bike.

© Fábio Zander

Alpes para iniciantes

Existem inúmeros trajetos e dois deles – a Via Bavarica Tyrolensis e a Via Claudia Augusta – são indicados para os iniciantes que gostariam de ter a primeira experiência nos Alpes, pedalando algumas trilhas menos técnicas.

Via Bavarica Tyrolensis – este belo roteiro começa em Munique, a capital da Baviera, no sul da Alemanha, e segue até Innsbruck, a capital do estado do Tirol, na Áustria, e retorna a Munique. São aproximadamente 380 quilômetros e 2.225 metros de ascensão total.

O trajeto segue beirando o rio Isar até a represa de Sylvenstein. No passo de Achen (941 metros), uma longa descida, passando pelo lago de mesmo nome, até Innsbruck. Vale a pena pernoitar um ou dois dias em Innsbruck, dar uma volta pela cidade e subir nas montanhas para curtir o visual espetacular dos Alpes e do Vale Inn. A volta para Munique é feita pela mesma rota até o passo de Achen. Do passo segue-se por outro caminho num sobe e desce tranquilo até o lago de Tegern. Daqui são mais alguns quilômetros até Munique.

Um roteiro percorrido por muitas famílias, pois existe boa infraestrutura para hospedagem e alimentação, além de muito contato com a natureza, cultura e a história da região.

Via Claudia Augusta – foi construída por ordem do imperador Claudius no ano 45 antes de Cristo. A antiga estrada romana é longa e o trecho mais conhecido liga a cidade mediterrânea de Veneza, na Itália, até o rio Danúbio, na Alemanha, e tem aproximadamente 790 quilômetros de comprimento.

© Fábio Zander

Para os ciclistas, o trecho mais interessante fica nos Alpes, iniciando a pedalada em Füssen, onde também fica o famoso castelo Neuschwanstein, e terminando no lago de Garda, atravessando diversos passos e ciclovias em bom estado de conservação. A Via Claudia Augusta é um clássico dos Transalpes e talvez um dos trajetos mais conhecidos pelos ciclistas europeus.
Diário de uma pedalada

Para aqueles que querem se aventurar de forma clássica, não há nada melhor que o roteiro de Garmisch ao lago de Garda, percorrendo quatro países. O início é no sul da Alemanha, atravessando a Áustria, passando rapidamente pela Suíça e terminando no norte da Itália. São, no total, aproximadamente 390 quilômetros e 8.500 metros de ascensão em cinco etapas de pedalada.

Na noite anterior à partida, encontro-me com o grupo e faço um briefing sobre a pedalada. Nessa pequena reunião, dou informações gerais sobre a etapa com o perfil altimétrico, dicas e respondo perguntas dos participantes.

Também informo a importância de pedalar racionalmente, economizando e dividindo as energias. Vivencio algumas vezes entre os ciclistas mais jovens e os mais velhos um ótimo exemplo para pedalada racional: os jovens, mais fortes e cheios de energia, pedalam com toda a sua força nos primeiros dias e sofrem esgotados nas últimas etapas. Já os ciclistas mais velhos e experientes, economizam e dividem suas forças chegando ao destino na maioria das vezes em melhores condições físicas que os mais jovens.

© Fábio Zander

1ª Etapa

Garmisch (Grainau) a Imst
Distância: 58,9 quilômetros
Ascensão total: 1.796 metros

No início do dia é possível perceber o nervosismo do grupo, o que é normal. Todos estão mais quietos. É aquele momento no qual cada um se pergunta se conseguirá chegar até o final e se não será o retardatário do grupo. Por isso, antes da partida, enquanto os participantes se preparam, toco no meu celular a música “Highway to Hell” da banda AC/DC, o que é sempre bem-vindo e acaba descontraindo os participantes.

Começamos a pedalada às 8 h 30 min. Em minha opinião, o primeiro dia é sempre o mais puxado, pois todos estão se conhecendo e se testando. Por isso mesmo, já na noite anterior e no início do dia, aviso o pessoal para pegar leve, não exagerar e forçar a pedalada, pois é preciso economizar energia para as próximas etapas. Esse dia também é muito importante para eu conhecer os participantes e achar a velocidade ideal para os próximos dias.

A saída já começa com subida, pedalando em torno da maior montanha alemã, a Zugspitze com 2.962 metros de altura. Antes de atravessar a fronteira com a Áustria passamos pelo pequeno e gelado lago de Eibsee, subindo por uma trilha em meio a raízes e pedras.

Passamos pelo primeiro passo do dia em Hochthörle (1.460 metros) e tomamos o nosso primeiro café na cidade austríaca de Ehrwald, com direito a um Apfelstruddel, uma torta de maçã típica da região.

A subida do segundo passo, o Marienbergjoch (1.790 metros), é pauleira, talvez a subida mais forte de toda a travessia, sendo que o trecho final tem 30% de inclinação. Quem pensa que Transalpes é só pedalar, engana-se, existem trechos onde a bicicleta tem que ser empurrada ou mesmo carregada.

Chegando em Marienbergjoch, almoçamos em um refúgio que é uma casa típica e aconchegante da região, curtindo o visual e o mar de montanhas e vales. Depois descemos pedalando até a pequena vila de Imst e para o fim de nossa primeira etapa.

© Fábio Zander

2ª Etapa

Imst a Nauders
Distância: 71,8 quilômetros
Ascensão total: 1.807 metros

Outra pedalada puxada por lindos trechos de cascalho e trilhas entre bosques de pinheiros. Normalmente no segundo dia o grupo já está entrosado e todos costumam incentivar-se mutuamente durante a pedalada. No fim de cada forte subida há a comemoração em grupo e o respeito ao ritmo do próximo.

Já de início temos uma subida até o passo de Pillerhöhe (1.559 metros) que é feita por asfalto. Do topo tem-se uma vista fascinante para o vale Inn e o rio de mesmo nome. A descida é por trilha até a vila de Prutz. Nosso almoço é feito às margens de um pequeno lago em Ried, ao lado do rio Inn. Para os mais corajosos, uma parada para dar um pulo nas águas frias de degelo.

De Ried pedalamos por um trecho de asfalto pela Via Claudia Augusta até a Suíça, onde começam os últimos quilômetros de pedalada por estreitas trilhas até Nauders, situada na Áustria. Uma longa subida por estradas de terra e cascalho até 1.750 metros de altura e depois um merecido downhill por uma trilha em meio à floresta. Com um pouco de sorte é possível ver de longe veados e javalis cruzando o caminho.

© Fábio Zander

3ª Etapa

Nauders a Meran
Distância: 97,9 quilômetros
Ascensão total: 1.134 metros

Gosto de Nauders, uma pequena cidade localizada a 1.395 metros de altura também muito conhecida pelas estações de esqui no inverno. Daqui saímos com destino a Meran em uma etapa longa de quase 100 quilômetros. O primeiro e único passo do dia é o Plamort com 2.170 metros de altura que costumamos transpor ainda pela manhã, depois de duas horas de subida por muito cascalho e pedras soltas. Em cima do passo existe uma barricada construída na época da segunda guerra mundial para evitar que os tanques atravessassem a fronteira entre a Áustria e a Itália. Existem muitos bunkers espalhados pelas montanhas e podemos entrar num deles. Aqui de cima, uma vista maravilhosa para a represa de Reschen.

Antes da construção da represa existia no local uma vila chamada Graun. A mesma foi reconstruída alguns metros montanha acima e atualmente vê-se dentro do lago apenas a ponta da torre da antiga igreja. Depois da represa, a pedalada segue por uma leve e constante descida até Meran. Nesse dia o almoço é feito na vila de Glurns em meio a construções e muros medievais.
Durante a pedalada, também se avista, em meio a muitas macieiras, o castelo de Juval, do famoso escalador Reinhold Messner. Ele comprou o castelo em ruínas em 1983 por aproximadamente 30.000 euros. Atualmente é a residência do montanhista e um museu com arte e peças do Tibet e Nepal.

4ª Etapa

Meran a Coredo
Distância: 55,6 quilômetros
Ascensão total: 1.667 metros

Meran, já na Itália, é meio caótica por causa do trânsito. É a segunda maior cidade depois de Bolzano na região sul do Tirol. Saímos da cidade com destino à primeira subida e a travessia do passo de Gampen com 1.520 metros de altura. Pedalada difícil por trilhas eslameadas e técnicas. Passamos pela pequena vila de Don e iniciamos uma de minhas trilhas preferidas até a entrada da cidade de Coredo.

© Fábio Zander

5ª Etapa

Coredo a Riva
Distância: 104 quilômetros
Ascensão total: 2.108 metros

Nesse dia costumamos acordar mais cedo para início da etapa às 7 h 45 min. O dia é longo e tem muita subida pelo trajeto. Eu costumo brincar e dizer aos participantes que eles precisam suar para merecer o lago de Garda e a etapa de hoje fecha com chave de ouro essa travessia.

Pegamos uma forte subida a caminho de Andalo (1.040 metros). Aqui na região do Trentino existe uma área onde foram reintroduzidos dez ursos em 1992, hoje eles são vinte. A região também tem muitas macieiras e uvas, principalmente para o vinho. O passo de San Giovanni com os seus 1.110 metros de altura é a dura etapa final por trilhas bem íngremes. Lá de cima um visual espetacular do lago de Garda e as montanhas a sua volta.

Descemos por uma estrada asfaltada cheia de curvas até a cidade de Arco. Daqui pedalamos por aproximadamente cinco quilômetros até Torbole, no lago de Garda. Às margens do lago a comemoração em grupo, a alegria e a satisfação de terminar uma travessia alpina de bicicleta usando as próprias forças.

O lago de Garda tem grande movimento de turistas, principalmente entre abril e setembro. Tem opção de atividades para todos; é possível praticar esportes náuticos, pedalar uma das inúmeras trilhas na região, caminhar, nadar ou aproveitar o sol em uma das muitas praias.

No final de cada Transalpes fica para mim aquela pergunta sem resposta clara e objetiva: “Por que alguém, de mente a princípio sã, se sujeita a atravessar os Alpes de bicicleta sofrendo com longas subidas, trilhas técnicas, algumas dores e no final ainda alegrar-se?”

O “pior” de tudo é que muitos retornam no ano seguinte e pedalam algum novo roteiro que requer ainda mais do ciclista. Para mim, uma boa resposta e a mais plausível é que o visual dessas montanhas e o lago de Garda compensam todo e qualquer esforço.

© Fábio Zander

Informações Gerais

A bicicleta de quem atravessa os Alpes:
Existem três tipos de bicicletas para se atravessar os Alpes: as modelos trekking, de estrada ou mountain bike. Os meus roteiros preferidos são com a mountain bike, que deve ser leve e forte com quadro de carbono ou alumínio, com suspensão dianteira e traseira com curso de pelo menos 140 mm e freios a disco com tamanho mínimo de 185 mm.

O Equipamento Ideal
Em uma mochila com capacidade entre 25 e 30 litros:
• dinheiro, documentos e celular
• mapa da região
• primeiros-socorros
• protetor solar
• capa de chuva
• camel bag
• kit remendo, câmara de pneu, bomba de ar e ferramentas básicas

Melhor Época
A temporada de pedalada é entre os meses de abril e setembro. Fora desse período é inverno e as trilhas estão cobertas de neve.

Quem Leva
Zander Bike Tours: www.zanderbiketours.com
A agência organiza roteiros de Garmisch ao lago de Garda (também pela Via Claudia Augusta), travessia dos lagos entre Bodensee e Königssee e a Via Bavarica Tyrolensis, de Munique a Innsbruck.