TRANS RIO URUGUAI E SERRA CATARINENSE: BIKEPACKING SOLO DO OESTE AO LITORAL

Marcar o dia de início de uma cicloviagem é sempre algo incerto. Com muitos meses de antecedência, não sabemos bem o que pode ocorrer o como estaremos. E sempre resta a dúvida, especialmente quando inventamos uma expedição longa, difícil e pretenciosa, e sabemos que é possível desistir no último instante. De fato, nesse ano ainda não havia viajado de bicicleta, e cancelei outras cicloviagens curtas que havia planejado, seja por conta das condições climáticas, ou por conta de compromissos de trabalho. A última cicloviagem que fiz foi em outubro do ano passado, 3 dias explorando um trecho de que ainda não conhecia na foz do Rio Irani no Rio Uruguai. Para diminuir esse risco, e selar um compromisso comigo mesmo, marquei minhas férias nesse período, e comprei com muita antecedência a passagem de volta…

Em frente a crista que divide as bacias dos rios Pelotas o Canoas, e cujo encontro forma o rio Uruguai. © Fábio Carminati

Não lembro bem desde quando, mas já faz alguns anos que acalento o desejo de ir até o litoral de bicicleta, seguindo por estradas de chão. Fui amadurecendo a ideia, descobrindo lugares, e no ano passado finalmente consegui desenhar uma rota viável, evitando o máximo possível de asfalto, e unindo vários lugares que gostaria de visitar. Conectei a Ponte férrea em Marcelino Ramos, o lugar onde o rio Uruguai se forma entre Barracão e Campos Novos, a ponte pênsil sobre o rio Canoas entre Campos Novos e Celso Ramos, a região de Coxilha Rica e o Passo Santa Vitória, no interior de Lages, e a Serra do Corvo Branco. O desenho da rota foi feito a partir disso, cruzando vales, passando por comunidades interioranas e cidades pequenas, percorrendo estradas vicinais e picadas, atravessando pontes, rios e atoleiros – cruzando a Serra Catarinense e descendo em direção a planície costeira.

© Fábio Carminati

Com a bicicleta pronta, a carga toda amarrada, no dia 13 de abril, de tarde, saí rumo a Chapecó. O tempo estava bem fechado e logo fui ao encontro de uma garoa fininha, na Efapi, mas a previsão era de melhora nos próximos dias. Pedalei mais ou menos 30 km até a casa de amigos, onde pernoitei, pois assim pude testar a bicicleta, e verificar se não estava esquecendo nada importante. Realmente os primeiros dias de uma cicloviagem são sempre os mais duros até se acostumar com o peso da bicicleta e o ritmo da viagem.

O dia seguinte amanheceu coberto pela neblina, e essas manhãs misteriosas são perfeitas para começar uma viagem de bicicleta. Há algo de mágico na névoa que esconde o horizonte, assim como no desconhecido que se revela a cada volta do pedal. E, de fato, após cruzar a ponte sobre o Rio Irani, em Paial, o caminho que se abria era pura novidade para mim. Aquela linha que havia traçado no mapa agora era feita de estradas e paisagens inéditas. A névoa foi cedendo à medida que eu descia o vale e a manhã avançava. E embora ainda estivesse bastante conectado nas tensões e preocupações cotidianas que acompanham o início de todo expedição, elas se dissolveram quando a realidade da viagem se impôs na primeira visão do Rio Uruguai. Perto do meio-dia cruzei a ponte sobre o Rio Uruguai, e entrei no Rio Grande do Sul.

© Fábio Carminati

Cheguei em Aratiba no final do dia, e fui para o hotel que havia reservado – a única reserva que fiz, considerando ainda o início da viagem, precavendo-me de qualquer imprevisto e imaginado que estaria muito cansado. Mas tudo ocorreu muito bem, a bicicleta e a bagagem formavam um pacote único, e eu estava em ótima disposição. Fui dormir cedo, tranquilo e seguro para seguir viagem.

© Fábio Carminati

A previsão se confirmou, e praticamente em toda a viagem a neblina do amanhecer cedia lugar a dias luminosos. Parti bem cedo, e o dia começou com uma longa e íngreme subida. De fato, quanto mais próximo das margens do rio Uruguai, mais acidentado é o relevo, com muito sobe e desce, cruzando os diversos vales que compõe a sua geografia. Em Marcelino Ramos, visitei a ponte férrea sobre o Rio Uruguai

E em quatro dias cheguei no lugar onde rio Uruguai se forma pelo encontro de rio Pelotas com o Canoas, próximo a ponte na BR470, entre Barracão e Campos Novos. Cruzei a ponte, voltei a Santa Catarina, e galguei a longa subida pela BR 470 até a entrada para a estrada que leva à ponte pênsil. A estrada foi piorando e virou uma picada estreita, e enquanto descia por uma rampa íngreme e escorregadia tudo o que havia subido pelo asfalto, comecei a duvidar da existência da ponte. Mas ela estava lá, e depois de cruzar descobri que no lado de Celso Ramos a estrada existe, e a subida é mais suave até a crista que divide os vales dos rios Canoas e Pelotas, a um pouco mais de 700m de altitude. No mapa, é possível identificar onde a crista fica mais estreita, e enquanto subia ia pensando se conseguiria fotografar um dos rios ou os dois.

Passei por Celso Ramos, Anita Garibaldi, Cerro Negro, subindo sempre, enquanto a paisagem mudava radicalmente. A bicicleta é um excelente meio para observar e experienciar essa transição de relevos e paisagens, nem muito rápido, nem muito devagar.

Havia deixado a bacia do rio Uruguai para trás, já havia ultrapassado os 1000m de altitude e acessava os campos da região serrana. Embora ascendente, o sobe e desce é menos acentuado nessa região que próximo aos vales do rio Uruguai. Depois de Campo Belo do Sul, aos 1000 m de altitude, descobri um caminho mais interessante do que havia traçado, pela estrada dos Motas e fui acampar nas margens do Rio Vacas Gordas e aproveitei para limpara e lubrificar a relação da bicicleta.

No dia seguinte, cheguei no corredor de tropas no meio da manhã. Esses corredores são balizados por muros de pedra assentados sem argamassa, conhecidas na região como Taipa. Em muitos trechos, viraram estradas regulares, de chão, e em outros continuam como picadas, trilhos de boi e cavalo ligando invernadas e fazendas.

© Fábio Carminati

Eram essas picadas que eu havia mapeado, e pretendia percorrer. Os corredores facilitavam a condução das boiadas, e serviam de guia quando baixava a viração, a instalação súbita da neblina, que torna a visibilidade próxima a zero, fenômeno típico da serra.

© Fábio Carminati

Cheguei no Bodegão, e enquanto devorava dois pastéis gigantes, obtive informações mais precisas sobre o acesso ao Passo Santa Vitória, distante quinze quilômetros dali. Fui informado das condições da trilha final até o rio Pelotas, e advertido sobre os principais perigos que poderia encontrar, topar com o leão (é assim que chamam o puma na região serrana), ou com uma manada de javalis, ou, o que é mais ariscado, ainda mais acampando sozinho, ser visitado pelos fantasmas que vagam pela região – existem muitos cemitérios espalhados pelas coxilhas….

Abasteci de água, e rumei para lá. A estrada, que já estava em péssimas condições, acabou uns cinco quilômetros antes do passo, e virou uma picada descendente cheia de erosões e atoleiros, que despencava 5km até o rio. Fui descendo, empurrando quando não conseguia pedalar, desatolando a bicicleta, carregando-a, até chegar no mangueirão, com o dia terminando.

Fui conhecer o passo Santa Vitória no outro dia. Ele leva esse nome pois ali, dezembro de 1839 ocorreu uma batalha da guerra dos farrapos, com a participação de Giuseppe e Anita Garibaldi, e a vitória dos republicanos. Os passos são lugares onde é possível atravessar os rios a vau, e esse era um dos principais passos no histórico caminho das tropas entre o Rio Grande do Sul e São Paulo. Depois de cruzar o passo, os tropeiros levavam o gado para engordar nos pastos da Coxilha Rica, que leva esse nome devido a qualidade do capim que viceja ali.

Enquanto empurrava morro acima, comecei a duvidar da possibilidade de atravessar de bicicleta a trilha do corredor de tropas. Na teoria, onde passa cavalo dá para ir de bicicleta, porém na prática é um pouco diferente…

© Fábio Carminati

Fiquei um dia a mais no Bodegão: dormi, li, escrevi, editei fotos, conversei e descansei bastante. Nesse processo, convenci-me de que seria possível cruzar de bicicleta a trilha do corredor das tropas. Parti cedo, rumo ao início da trilha, e entrei nela perto do meio-dia. Bem fechada no começo, logo deparei-me com a primeira erosão, o primeiro atoleiro, e o primeiro riacho, nessa ordem…. Percorri menos de 5km, e depois do terceiro ou quarto riacho, identifiquei um excelente lugar para acampar, bem protegido, pois a previsão era de temporal.

Assim que me instalei para preparar a janta, começou a chover, e me mudei para o avanço da barraca. Choveu a noite toda, e de manhã a chuva e a neblina acompanharam-me até a saída da trilha, brindando-me com uma paisagem espetacular no corredor das tropas. A beleza da vastidão branca – as cores e a luz refratada no vapor d’água, a invisibilidade do horizonte nos campos de altitude – infelizmente não é fotografável. E quando comecei a pedalar na estrada, em torno de 1200m de altitude, o tempo abriu e revelou a paisagem em todo o seu esplendor.

© Fábio Carminati

Atravessei o interior de Urupema pelo vale do rio Lava Tudo, e esse foi o trecho mais complicado para orientação. Na serra, os caminhos mais vicinais cruzam fazendas, e as estradas se confundem em um labirinto de caminhos.

Assim, do Bodegão, em Coxilha Rica, até o camping, em Urubici, foram aproximadamente 170km, que percorri em 3 dias, e atingi a altitude mais elevada da viagem, ultrapassando os 1600m de altitude, na comunidade de Jararaca, interior de Urubici. Fiquei dois dias nessa cidade, que adoro, descansando e aproveitando para fazer a manutenção da bicicleta.

Descansado, com a bicicleta lubrificada e as pastilhas de freio novas, saí cedo e, quando cheguei no topo da serra do Corvo Branco, por sorte, a neblina já havia se dissipado. Essa serra fica bem no meio das nascentes do rio Canoas e Pelotas, pois eles nascem, respectivamente, no Campo dos Padres, e nos Campos de Santa Bárbara – no Parque Nacional de São Joaquim.

Desci devagar, aproveitando e fotografando, e no pé da serra, um pouco depois de começar o asfalto, parei para comer um prato feito, usar internet, e perguntar sobre o trajeto que havia planejado para chegar até Santa Rosa de Lima. Como eu já desconfiava, assim que saísse do asfalto, pirambeira. Os vales próximos aos contrafortes da Serra Geral são profundos, estreitos, íngremes, e os rios caudalosos. Nesse dia, despenquei de 1200m no topo da Serra do Corvo Branco para 240m em 70km, cruzando os diversos afluentes do rio Braço do Norte. Estava experienciando a transição para planície costeira, mas ainda estava longe da parte “plana”. E no dia seguinte, o último de pedal, passei por Anitápolis, seguindo a montante do rio Povoamento, e ascendi dos 240m a 980m de altitude, em mais ou menos 60km, chegando em Rancho Queimado, próximo a região metropolitana de Florianópolis. No total, percorri aproximadamente 760km, com 14000m de subida acumulada, em 16 dias, sendo 14 dias pedalando.

© Fábio Carminati

Maiores informações em:

https://pt.wikiloc.com/trilhas-bikepacking/cicloviagem-trans-rio-uruguai-do-oeste-catarinense-ao-litoral-104274728

e

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