Por: João Carvalho, Luciano Pirro e Gileno Santos

Para a maioria das pessoas, viajar à Europa significa ir a grandes cidades, como Londres, Paris e Roma, fazer compras, visitar museus e comer em excelentes restaurantes. Para os amantes da natureza e de atividades ao ar livre, entretanto, não há nada que se compare à beleza e à majestade dos Alpes. Foi imbuído deste espírito, que em 2011, o Campa Bikers (campabikers.wordpress.com), de Campina Grande – PB, reuniu um grupo de 16 pessoas para realizar a travessia da Via Claudia Augusta, começando na Alemanha, atravessando os Alpes austríacos e terminando em Trento, na Itália. Desta vez, decidimos partir para algo mais radical: o Tour do Mont Blanc.

Grupo preparado para o início do tour. © Fabio Dantas e João Carvalho

O Tour do Mont Blanc em mountain bike começa e termina na cidade francesa de Chamonix, na região da Alta Sabóia (Haute Savoie). A trilha é de alta dificuldade, tanto física quanto técnica. Subidas intermináveis, às vezes por estradões de terra batida, outras vezes por trilhas com muitas pedras e raízes, onde pedalar se torna impossível. Praticamente não há trechos planos, as subidas são sempre seguidas imediatamente por descidas acentuadas e longas, com desníveis de até 1.000 m. Geralmente, estas descidas são muito técnicas, seja com curvas de quase 180°, com muitas pedras, ou bastante estreitas e margeando abismos assustadores. Os freios se acabam rápido. A ascensão acumulada média é de 1.200 m por dia, durante cinco dias.

Vista do centro de Chamonix. Na parede do prédio estão representados montanhistas famosos, lendas do alpinismo. © Fabio Dantas e João Carvalho

Devido ao elevado grau de dificuldade, este ano nosso grupo foi menor, 11 pessoas. Contratamos um guia que cuidou das reservas de hospedagem, do transfer do aeroporto de Genebra a Chamonix e de nos orientar e guiar na trilha. Esta decisão foi tomada por vários motivos. Primeiro, se trata de uma trilha em alta montanha, onde a sinalização por vezes é inexistente. Segundo, passamos por trechos perigosos, margeando abismos, em que a orientação de alguém que conheça a trilha é fundamental. E finalmente, alguns dos locais em que pernoitamos são refúgios de montanha, impossíveis de fazer reservas pela internet. A empresa escolhida foi a Mont Blanc Mountain Biking Holidays (www.mbmb.co.uk), de propriedade do inglês Phill Henen, radicado na França há 20 anos e há 17 anos conduz clientes pelo Tour do Mont Blanc. A MBMB realiza a volta completa, cerca de 165 km, em cinco dias, o que nos pareceu bem razoável. Outras empresas realizam a mesma volta em apenas três dias, o que é adequado somente para grandes atletas.

Chegada no Col de La Forclaz. © Fabio Dantas e João Carvalho

Não se iludam com a distância média de 35 km ao dia. Fazer esta volta em cinco dias é extremamente pesado, por causa das intermináveis subidas. Só quem está muito bem condicionado consegue completar. Do nosso grupo de 11, sete completaram o percurso todo, dois perderam um dia por problemas mecânicos e 2 tiveram de desistir após o primeiro dia. Definitivamente, não é uma viagem de cicloturismo. É um teste muito exigente de capacidade física, técnica e, sobretudo, mental de cada um.

Saímos de Recife e desembarcamos em Genebra (Suíça). Encontramos Phill e Michele, que nos transportaram até Chamonix, onde ficamos instalados no Chalet de Fresnes, a 4 km da cidade. Esta é a sede da MBMB, residência de Phill e Michele e pousada. A vista de lá é estonteante de bela! Avista-se o Glacier des Bossons e o Glacier Taconnaz, dois rios de gelo que descem a montanha e, ao fundo, a famosa Aiguille du Midi, uma agulha de pedra que se destaca dos demais picos.

Subida forte em direção ao Col de Ferret. © Fabio Dantas e João Carvalho

Nosso primeiro dia (domingo) passamos na cidade. Chamonix é sede da Maison de la Montagne (Casa da Montanha), que abriga a Companhia dos Guias de Alta Montanha de Chamonix, a mais antiga e tradicional instituição deste tipo na Europa, que congrega os famosos Guides de Haute Montagne (Guias de Alta Montanha) de Chamonix, objeto de filmes, livros e artigos de revistas. Em seguida, fomos conhecer a ZeroG, Ioja de bike e acessórios no centro da cidade que também aluga bikes top, onde a festa (de consumo) foi grande. Um dos vendedores, o Henrique, é português e os demais falam excelente inglês, o que facilitou bastante a comunicação. Depois fomos comer em um restaurante na rua principal, chamado Ie Bivouac, que serve excelentes pratos da cozinha típica savoyarde e uma excelente cerveja. Foi ótimo para afogarmos a lembrança dos gastos na ZeroG.

A trilha

Nosso primeiro dia começou por volta das 10 horas e fomos pedalando por 5 km até o centro de Chamonix. Depois de sairmos da cidade, entramos em um singletrack na mata. Logo de cara pegamos uma subida e depois de cerca de 1 km chegamos em uma estrada de asfalto. Depois de descer por 800 m fizemos a primeira de muitas paradas para nos reabastecermos de água. Em seguida, fizemos outra descida bem técnica com muitas raízes atravessadas e, em certo momento, ao lado de um desnível gigante. Passamos por vários riachos de águas oriundas de geleiras (a cor leitosa das águas denunciava), até chegarmos novamente no asfalto e seguirmos por uns 3 km para uma estação de teleférico. Ao chegarmos na estação, subimos em um teleférico fechado até o local onde iríamos almoçar (sanduíche que compramos no centro de Chamonix), a 1.500 m de altitude.

Descida difícil com muitas raizes e pedras. © Fabio Dantas e João Carvalho

Depois do almoço, seguimos novamente subindo em outro teleférico, agora aberto, até chegar aos 1.800 m e começamos o nosso primeiro grande downhill: inicialmente um singletrack simples, que logo tornou-se mais técnico, estreito e bem inclinado. Terminado o singletrack, começamos a descer por uma estrada para 4×4 que, apesar de ser da largura de um carro, era muito veloz, longa e inclinada, requerendo o uso de técnica e freios. Paramos no meio da ladeira ao lado de uma estação de esqui desativada e descemos por uma estrada de asfalto extremamente sinuosa em “S”. Foi aí que cruzamos a fronteira da França com a Suíça. Alguns companheiros chegaram a gastar completamente as pastilhas de freio neste trecho. Cruzando a cidade de Trient, começamos uma subida bem inclinada de 5 km em “S”, ao final da qual chegamos ao Hotel Col de La Forclaz.

No segundo dia, nosso destino era La Ferret. Estávamos a 1.890 m de altitude e felizmente o pedal começou com uma descida pelo asfalto. Logo saímos do asfalto para um singletrack rápido sob a sombra de árvores que formavam um “túnel”. Passamos inclusive por trabalhadores podando árvores.

Col de Ferret, a 2.537 m de altitude, o ponto mais alto de todo o tour. © Fabio Dantas e João Carvalho

Até atingirmos a altitude de 1.000 m fomos alternando trechos de asfalto e singletracks, tudo isso de forma muito rápida, pois o desnível era grande. Então, percorremos uns 3 km numa rodovia e começamos uma longa, demorada e sofrida subida em asfalto, também em “S”, pois a inclinação era gigante, típica das etapas de subida do Tour de France. Foram 11 km até alcançarmos 1.800 m de altitude. Seguimos rumo a Champex Lac, com um lago lindo e cristalino.

Como tudo que sobe, desce, à tarde, começamos numa descida forte em singletrack super técnico e perigoso, com rochas e raízes em toda a sua extensão. Descemos para uns 1.100 m até uma rodovia numa localidade com casas. Pedalamos entre “vielas” e seguimos pelo asfalto numa estrada por cerca de 5 km. Depois de uma breve pausa para recuperar o fôlego, descemos ainda mais por um singletrack sinuoso e perigoso, costeando um abismo. A trilha não tinha mais que 60 cm de largura, às vezes até menos, por causa da canalização de pedras para água da chuva que bloqueava a maior parte da trilha. Alguns optaram por desmontar e empurrar a bike, sem dúvida a opção mais prudente e segura.

Chegada ao Rifugio Monte Bianco, a 1.700 m de altitude. © Fabio Dantas e João Carvalho

Já na Itália, seguimos por asfalto até um restaurante para uma deliciosa macarronada a bolonhesa. Na pequena e charmosa cidade de Cormayeur, saboreamos um legítimo sorvete italiano. Seguimos em subida moderada de 6 km até chegar ao nosso próximo alojamento, no Rifugio Monte Bianco, a 1.700 m acima do nível do mar. A beleza da paisagem ali é indescritível. Avista-se todo o paredão do maciço do Mont Blanc oposto a Chamonix, com geleiras, picos cobertos de neve e paredes de rocha. Até avalanches presenciamos. Foi um dia cansativo e, em alguns momentos, estressante. A subida com pedras tornava a tração e o equilíbrio sobre a bike mais difícil.

Ao atingirmos o topo de um monte, paramos para reunir o grupo. Estávamos numa planície verde, cercada de montanhas, com indícios de que ali o gelo era intenso no inverno. A certa altura, já tínhamos a presença constante de blocos de gelo, derretendo por conta do que eles dizem ser o verão. Não havia mais trechos pedaláveis: subimos com a bike nas costas. O esforço foi extremo e cansativo e a altitude já era superior a 2.000 m. Chegamos a um centro de visitação (La Casermetta) e paramos para contemplar a espetacular vista, que incluía o topo do Mont Blanc. A chegada até ali, a 2.365 m, era um triunfo. No centro, uma maquete em 3D do maciço do Mont Blanc, grande foto panorâmica e uma faixa descrevendo vários aspectos naturais e geológicos.

Saindo do centro de visitação, continuamos subindo. Até empurrar a bike era difícil, pois não havia mais trilha e sim degraus. Outro fator de dificuldade era o vento extremamente forte, que nos forçava a usar a bike como apoio, pois a cada passo o vento tentava nos varrer da face da montanha e o frio era intenso. Chegamos ao ponto mais alto do dia, provavelmente a mais de 2.500 m, demarcado por um amontoado de pedras.

Encontramos muitos trekkers, mas nenhum biker. Essa trilha não é para quqlquer um.. © Fabio Dantas e João Carvalho

Após um descanso merecido, pegamos um donwhill longo, por um trecho de pedras, degraus, valas e abismos, muito técnico, rápido e perigoso. Descemos aproximadamente 1.000 metros e chegamos ao Refuge Les Mottets, ainda na Itália, onde todos paramos para descansar as mãos que doíam de tanto apertar os freios. Deixamos para trás a etapa mais difícil do dia e seguimos por uma estrada de asfalto ainda descendo, até chegar na fronteira com a França. Almoçamos pratos típicos franceses: lupin (coelho) e canard (pato).

À tarde, pegamos uma rodovia bem movimentada, que nos levou a uma das mais belas paisagens da viagem: um lago com água deslumbrante, entre montanhas e rodeado de pinheiros. Era o Lac de Roselend, nosso ponto de parada do dia, em uma pousada à beira do lago.

© Fabio Dantas e João Carvalho

Último dia

Começamos o dia com mais um excelente petit dejeuner, prontos para encarar o nosso último dia de pedal. Assim que avançávamos, já começávamos a avistar o cume do Mont Blanc, ao longe, indicando que estávamos nos aproximando do vale de Chamonix. Encaramos uma descida em singletrack muito técnico, inclusive pedalando em “valas” muito estreitas e sobre pedras, por uns 600 m até uma pequena fazenda de criação de gado leiteiro. Novamente, descidas com várias curvas exigiram muito dos nossos freios: um perigo por causa da alta velocidade que atingimos e do tráfego de carros. Pegamos um trem para subir até o Col de Voza, a 1.653 m de altitude. No alto, avistamos Chamonix ao longe.

Era chegado o momento do último downhill. Iniciamos descendo por uma estrada de terra bem íngreme por alguns metros e logo em seguida entramos em um singletrack bem técnico. Alguns optaram por continuar na estrada de terra, por pensar que seria mais fácil, o que revelou-se falso pois a estrada inclinou de uma forma absurda. Mesmo com os freios da bike travados, ela descia escorregando, derrapando, pois havia muita pedra solta na estrada. O grupo voltou a se reunir já no asfalto, nos arredores de Chamonix. Rumamos, então, para o Challet des Fresnnes: havíamos completado o Tour do Mont Blanc.

Foi uma semana de descobertas e aprendizado para todos nós, que nos deixou gratificados e com a sensação de missão cumprida. O Tour do Mont Blanc é diferente de tudo que conhecíamos em termos de mountain bike. Na verdade, não existe no Brasil nada equivalente, em termos de desnível e de dificuldade técnica combinados. O que encontramos no Tour está em outra escala de grandeza. Desníveis de até 1.000 m é algo que não encontramos em nosso país em trilhas de bike. Por isso, o Tour do Mont Blanc só deve ser tentado por quem está muito bem condicionado fisicamente, sem excesso de peso e que possui bom nível técnico nas trilhas. Sobretudo, é preciso muita determinação e força mental para completar os cinco dias de percurso. A contratação de um bom guia também é fundamental. Nesse sentido, não há como não recomendar nosso guia, Phil Henen e sua Mont Blanc Mountain Biking Holidays. Phil revelou-se um guia seguro, cuidadoso e que se adaptou rapidamente à indisciplina dos brasileiros, sabendo nos colocar nos trilhos na hora certa. O suporte fornecido por Michele e sua van também foi perfeito.

Prontos para encarar o último dia de pedal. © Fabio Dantas e João Carvalho