Sonho de consumo

O contraste da nossa sociedade “moderna e desenvolvida”, pautada no consumismo, com os exóticos povos considerados “primitivos” de regiões longínquas da Índia, gera reflexões sobre o modo de vida que cada um de nós escolhe, e sobre como podemos contribuir para um futuro verdadeiramente sustentável, feliz e que valoriza a vida.

Uma vez comecei a observar a similaridade existente entre os prêmios de concursos e sorteios. Com frequência são sonhos de consumo. O prêmio mais comum é dinheiro, afinal com ele pensamos que podemos comprar tudo. Logo depois vêm veículos automotores, aparelhos eletrônicos da moda e por aí vai.

Junto com os sonhos coletivos de consumo sempre encontramos viagens. Parece que todos gostam de viajar, seja lá como for. Um cruzeiro num navio luxuoso, passeio pela Disney, uma semana num hotel ao lado de uma praia ou outro local paradisíaco…

Posso garantir que encontraremos dificuldade em vender uma rifa de viagem de bicicleta, afinal, mesmo que seja com carro de apoio e comodidades, uma viagem de bicicleta não se compra, conquista-se a cada pedalada do caminho com as gotas do próprio suor.

Queijo secando ao sol a 4.500 m de altitude. © Rafaela Asprino

Em uma viagem de bicicleta cada um procura algo diferente. Muitos querem sentir a adrenalina de mergulhar no desconhecido e abraçar o risco dos lugares em que nunca estiveram antes, outros buscam recordes, superação, desafios, etc. Entretanto, todos podem aproveitar o caminho para aprender com ele.

Quando saímos em uma grande viagem de bicicleta, eu e Rafaela buscamos lugares remotos para evitar veículos automotores e para tentar encontrar coisas típicas. Como todos nós podemos nos perder pelos caminhos que escolhemos, tento sempre me conter quando vejo o diferente. A busca pelo exótico às vezes ofusca belas mensagens.

Uma das experiências mais interessantes que tivemos em nossa viagem pela Índia é algo impalpável. Para bem vivenciá-la decidimos não registrá-la com métodos invasivos, como filmes e fotos, mas simplesmente com a memória de nossos sentidos.

Bolachas de bosta secando na parede das casas. © Rafaela Asprino

Já era hora de procurar lugar para acampar e assim que conseguíssemos água, iríamos parar. Passando ao lado de um amontoado de casas vimos uma bomba d´água manual e paramos para completar nossos estoques.

Enquanto eu bombeava, a Rafa mantinha a garrafa na mira da água. A 300 metros dali observo um homem gesticulando como que fazendo um convite para ir até ele.

Estávamos chegando ao meio do caminho entre Kargil e Padum, atravessávamos o vale do rio Suru, cercados por áridas montanhas dos dois lados. A região de Kargil é habitada por muçulmanos que vivem há muito tempo em um tipo velado de guerra civil. A convivência era muito estranha, a maior parte das pessoas que se aproximava vinha pedir algo, até as crianças eram agressivas, a frase que mais ouvíamos era “give me one pen” (me dê uma caneta).  Perto de Rangdum voltamos a entrar em região habitada por budistas, mas ainda estava receoso com qualquer convite feito por locais.

A princípio nem liguei e continuei bombeando. Com a insistência  do homem passei a observar que ele estava acompanhado de sua família,  todos sentados no chão e  tomando  um tipo de lanche da tarde. Decidimos que valia a pena nos aproximar.

Transportando o mato cortado nas encostas de montanha para colocar no alto das casas e servir de alimento aos animais no inverno. © Rafaela Asprino

A esta altura já tínhamos feito várias fotos de pessoas e lugares que para  nós eram exóticos (diferentes), algumas vezes com o zoom, sem que os protagonistas descobrissem. Desta vez decidimos simplesmente viver a experiência sem o risco de atrapalhar momentos mágicos com os constrangimentos provocados por nossos equipamentos.

Atravessamos a cerca e um pequeno lamaçal para encontrar todo o clã sentado após um dia duro de trabalho. Duas senhoras que pelas marcas do sol no rosto pareciam ter uns 70 anos faziam trabalhos simples ou cuidavam de um bebê de colo, havia uma criança de cerca de três anos ainda aprendendo a falar, seus pais eram bem jovens denotando a idade tenra dos casamentos na região e, por último, um casal somente um pouco mais velho, avôs das crianças, que parecia ser chefe do clã.

Em meio a sorrisos envergonhados e gargalhadas despojadas tentávamos nos comunicar. O chefe conseguia falar muitas palavras em inglês, comum para um indiano que já trabalhou num grande centro. Isso ajudava a compreender seu estilo de vida, mas quase nem precisava falar, afinal existem muitas linguagens universais: o sorriso demonstra satisfação, a mão estendida tocando o solo a seu lado me convidava a sentar no honroso local forrado com pano de saco de estopa à sua direita, enquanto a Rafaela se acomodava junto às mulheres no outro lado do círculo.

Serviram-nos de tudo o que possuíam e demonstravam como provar. Em uma tigela típica colocaram chá quente e nos entregaram em mãos, à nossa frente colocaram uma lata com farinha.

Iaques. © Rafaela Asprino

Em segundos veio em minha mente as lembranças de um livro que li na minha juventude, “A Terceira Visão”, escrito por um inglês que assinava com o pseudônimo de Lobsang Rampa. Há quem diga que ele nunca saiu da Inglaterra, mas a forma que descreve a vida de um monge tibetano me fazia sonhar em conhecer mais este povo. No livro ele descreve exatamente o que estávamos provando: chá salgado com manteiga de iaque, misturado com tsampa.

Tsampa é um tipo de grão de trigo que é torrado e moído até virar farinha. Despejam na tigela um pouco de chá e vão misturando esta farinha com as mãos encardidas de um dia de trabalho na ceifa de grãos até virar uma massa, como um pão antes de assar. Esta farinha tostada integral não requer outro preparo e pode ser consumida de forma direta ou acompanhar qualquer outra coisa desde sucos, água, sopa ou sobre a comida, como nossa farofa.

Ao lado vimos algo parecido com bolachas brancas amassadinhas com os dedos secando ao sol. Era queijo de iaque sendo desidratado para poder ser estocado e consumido no inverno (iaque é um tipo de boi muito peludo e forte, às vezes parece até um bisão).

Depois de “conversar” bastante, a primeira a sair da roda foi uma das anciãs. No que ela se esforça para levantar, solta um sonoro pum! Prrroh! E todo mundo ri em gargalhadas compulsivas, inclusive ela com os poucos dentes que lhe sobravam.

Nossa! Quanta pobreza! Puxa! Como eles sofrem! Que nojo daqueles dedos com unhas encardidas comendo com as mãos!

Claro que tudo isto nos salta aos olhos e logo pensamos em ensinar nossos princípios de higiene e educação. Mas nesta vivência percebi que poderíamos aprender mais que ensinar.

Crianças colhendo bosta de vaca em cestos nas costas. © Rafaela Asprino

Estes povos vivem em uma região de solo e clima muito ruins, no inverno chegam a experimentar trinta a quarenta graus abaixo de zero. A rigor, para sobreviver com tantas carências, eles iriam esgotar rapidamente os poucos recursos naturais que dispõe, mas não. Quem esgota recursos naturais somos nós, os povos que vivem em sistemas econômicos de alto consumo e desperdícios.

Estas comunidades de Ladakh já possuem o que as grandes potências tecnológicas ainda não conseguiram desenvolver: um equilíbrio que se provou sustentável através de séculos. Cada família tem pelo menos dois iaques machos para arar a terra e pisotear os grãos para descascá-los após a colheita. Durante o inverno os iaques são trazidos para o porão das casas e alimentados com um pouco de tsampa e todo o mato que os pastores conseguiram coletar nas encostas dos morros durante o verão. É nesta estação que a água de degelo canalizada irriga a tsampa e outros vegetais que serão consumidos frescos ou estocados de forma desidratada.

Depois do preparo da terra, os animais são soltos no alto das montanhas; “equipes” de mulheres fazem o pastoreio e vivem meio que acampadas em barracas para tirar leite e fazer queijos. Este sistema de vida é igual ao dos camponeses suíços de séculos atrás, com a diferença que os tibetanos ficam a 4.500 metros de altitude; além de fazerem um grande estoque de queijo desidratado fazem um estoque enorme de cocô de iaque.

Colhendo tsampa. © Rafaela Asprino

A vida é dura…

Não existem muitas árvores no Tibete e todas as refeições, inclusive o chá que provamos e o aquecimento das casas  durante  o  inverno, são feitos a base deste combustível tão  ecológico e que pode  ser reconhecido no Brasil como “bosta de vaca”.

Não vimos entre eles pessoas obesas, é claro, também quase nem existem farmácias, todos parecem fortes e saudáveis.

Tá, você não é muito ligado em ecologia, né? Mas então me deixe comentar mais um detalhe sobre este povo que pudemos perceber e que talvez possamos reaprender.

Eles vivem em comunidade. As crianças são educadas pela própria família, não estou falando de educação formal, estou falando dos princípios e valores que aprendemos quando ainda somos crianças, algo que chamamos “educação de berço”. Nos dias de hoje todos temos que trabalhar, e muito, para poder comprar cada vez mais coisas, daí as crianças são entregues a creches cada vez mais jovens e pouco aprendem com seus pais, pois não há tempo para elas.

Se não existe tempo para as graciosas crianças em nossa sociedade, o que dizer dos teimosos velhinhos!?

Sem a necessidade de produtividade extrema estes povos convivem em seu dia-a-dia com os “fiascos” dos velhinhos e com as crianças “atrapalhando” as atividades laborais, afinal, todos já foram crianças e os sortudos ainda ficarão velhos, tudo isso é muito natural e deve fazer parte do cotidiano.

Este é o local onde tudo aconteceu, tínhamos que fotografar pelo menos o local. © Rafaela Asprino

Em várias comunidades de Ladakh vimos projetos patrocinados por países de primeiro mundo. Alguns construíram escolas inteiras que só utilizam energia solar, outros promoviam o teatro, e por aí vão tantos projetos assistenciais que buscam melhorar a vida dos habitantes da região.

Por trás do exotismo destes povos tentamos nos concentrar nas lições que transmitem de forma tão simples. Não temos nenhuma foto para mostrar suas roupas coloridas e o semblante mongol esculpido pelo sol e pelo vento. Deixamos somente nossa modesta narrativa e a pergunta:

Quem teria mais para aprender? Nossa moderna e “desenvolvida” sociedade de consumo ou estes exóticos povos “primitivos” que pouco sabem do mundo lá fora?

“EM UMA VIAGEM DE BICICLETA CADA UM PROCURA ALGO DIFERENTE. MUITOS QUEREM SENTIR A ADRENALINA DE MERGULHAR NO DESCONHECIDO E ABRAÇAR O RISCO DOS LUGARES EM QUE NUNCA ESTIVERAM ANTES, OUTROS BUSCAM RECORDES, SUPERAÇÃO, DESAFIOS, ETC. ENTRETANTO, TODOS PODEM APROVEITAR O CAMINHO PARA APRENDER COM ELE.”