Therbio Felipe entrevista Douglas Grubel

Desde minha mais distante infância, sempre pensei que, quando a gente parte, a gente SE parte, deixando e levando um pouco de nós e dos outros. Anos atrás, quando tomei conhecimento sobre a cicloviagem do querido catarinense Douglas Grubel, algo de muito especial me sensibilizou. Ao partir, parte de Douglas se jogou à companhia da dúvida, num curso entre o inesperado e a realidade concreta dos lugares e das pessoas com as quais foi cruzando pela América Latina.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

Entrevistamos o cicloviajante no início de dezembro e lemos seu livro com entusiasmo. Uma reflexão emergencial que nos chega ao apagar das luzes de 2021.

“Sensível, mas não fraco. Forte, mas não rude” é o livro-pergunta vivido e escrito por Douglas e que nos envolve surpreendentemente, pedalada a pedalada, confrontando-nos com um desafiador questionamento: qual é a tua dor?

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Como surgiu a ideia de um jovem historiador-educador, natural de Blumenau – SC, empreender uma cicloviagem com este questionamento tão profundo? Como é buscar saber qual a dor das pessoas que encontrar pelo caminho?

DG Talvez a minha formação em História tenha influenciado em gerar este questionamento sobre a dor. De certa forma, também, o meu interesse por filosofia e por questões sociais talvez tenha contribuído, mas é difícil ter certeza. Ao certo, é possível que nunca saberei o porquê segui com esse questionamento durante a minha cicloviagem.

Às vezes, por mais que tente racionalizar uma resposta de como tudo isso começou sinto que certas respostas fazem parte do mistério da vida e jamais saberei a resposta. O que posso dizer é que, talvez, o momento em que estava vivendo na minha vida, as dores que tinha nesse momento, possivelmente tenham contribuído para que eu começasse a observar, também, qual era a dor das outras pessoas.

Nesse momento em que iniciei a empreitada, via a cicloviagem como uma greta (fresta), uma fissura, uma possibilidade diante dessa vida mecanizada e desse sistema que normaliza e padroniza tudo e todos. A cicloviagem, então, era uma chance de experimentar viver nessa greta, nessa fissura, e foi exatamente aí que me meti durante 3 anos e 5 meses, buscando sentir-me vivo e fazendo algo que fazia sentido para a minha vida. Era uma questão de encontrar o meu lugar no mundo, fazendo algo bonito com a minha existência.

E, então, buscar saber qual é a dor das pessoas e compartilhar, com todo o respeito, essas dores é parte de viver nessa greta. Esses encontros, essas conversas, enfim, eram exatamente o que eu buscava.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Qual a trajetória escolhida para a cicloviagem e por quais motivos você teve esta ideia? Em que pontos a viagem de bicicleta foi te levando por caminhos que não haviam sido planejados?

DGCuriosamente, a viagem havia sido planejada só até Minas Gerais. E, na verdade, nem foi tão planejada assim, porque em muitas decisões que tive que tomar por onde passar, por exemplo, fui tomando no caminho, ouvindo atentamente o que as pessoas me indicavam. Como disse, minha ideia era ir até Minas Gerais, conhecer mais da história do Brasil, visitar essas cidades históricas da Estrada Real como Ouro Preto, Tiradentes, São João Del Rey, Mariana, entre outras.

Tudo o que aconteceu depois de Minas Gerais não foi planejado. A viagem foi se desenvolvendo naturalmente e, a partir de então, fazia pequenos planos para dias, quem sabe, semanas. Só depois que cheguei no Nordeste é que comecei a pensar em sair do Brasil. Lá pelo Ceará e pelo Maranhão pedalei com a cicloviajante holandesa Maaike Baylé. Ela já havia morado no México e me falou super bem do país. Foi então, depois de pedalar com a Maaike que decidi estender minha cicloviagem até as terras do antigo Império Azteca.

Depois de recorrer a América Central e chegar ao México, a viagem teve outra mudança que não havia sido pensada até aquele momento. Ao chegar em Playa del Carmen, percebi que estava tão perto de Cuba e que, talvez, não teria outra oportunidade na vida para conhecer esse país que tanto me provocava perguntas. Não pensei duas vezes. Assim que pude, embarquei para pedalar a ilha de ponta a ponta.

Depois de Cuba decidi retornar para a América do Sul, ao norte da cordilheira dos Andes, em Bogotá, Colômbia, para a partir daí começar minha pedalada pela parte mais difícil da cicloviagem, mas também uma das mais lindas: pedalar pela Cordilheira transpassando Equador, Peru, Bolívia, Chile, Argentina. Ao fim, me sobrou recorrer o litoral do Uruguai e retornar ao Brasil pela fronteira com o Chuí.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Douglas, em sua opinião, quais os desafios pessoais percebidos ao ultrapassar os limites territoriais e, por consequência, culturais e emocionais em sua cicloviagem?

DGO desafio é o de se aprofundar no autoconhecimento e, ao mesmo tempo, conseguir manter o foco na cicloviagem e no próprio equilíbrio emocional. Porque você pode descobrir coisas que você não queria, ou que talvez não estava tão preparado para viver. O desafio em uma cicloviagem longa é processar tudo isso com clareza e consciência, porque senão, ao invés de se ajudar, você poderá se confundir ainda mais.

Já, os desafios culturais, eu não os vejo como uma dificuldade. Não os vejo como barreiras que precisam ser superadas. Essas diferenças, as vejo com naturalidade. Culturalmente, imagino que somos como uma colcha de retalhos, com distintas tramas e cores. Mas, se observarmos a nossa “trama” veremos que ela sempre tem algo das outras culturas, daqueles que ainda não conhecemos, assim como também encontramos algo nosso nas “tramas” dos outros. Por isso vejo essas diferenças culturais com naturalidade, não como barreiras.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Ao chegar em Minas Gerais, você começou a gravar depoimentos das pessoas que aceitavam contar a respeito da dor que carregavam. Quais as primeiras sensações a respeito?

DGPercebi que com mais intimidade e mais tempo de convívio com elas, tornava mais tranquilo para fazer essa pergunta, justamente para que se sentissem mais confortáveis e tivessem confiança para se abrir comigo.

Percebi que ter essa conversa sobre a dor não era algo bom somente para mim, era também para eles. Vi que tinham a possibilidade de se abrir a um desconhecido, de desabafar algo da sua vida que, possivelmente, não poderiam faze-lo com outra pessoa mais próxima.

Em geral, percebi muita solidão nas pessoas, muitos não têm com quem conversar sobre assuntos tão importantes quanto este sobre a sua própria dor.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Sua bike, o “pavão misterioso”, foi a grande companhia que te incentivava a ir adiante. Qual a sua percepção diante das reações das pessoas frente a um cicloviajante chegando em novos territórios?

DGA reação das pessoas ao conhecer um cicloviajante são as mais diversas possíveis, acredito que esses olhares são bastante subjetivos.

Talvez, a maioria sinta curiosidade/admiração/espanto. Essas são as reações mais comuns, mas, eu também senti reações e sentimentos de medo/pena/indiferença. Medo, pelo fato de ser uma pessoa estranha, é um medo frente ao diferente e ante ao desconhecido.

Pena, porque não entendiam o quão linda pode ser uma cicloviagem. Acreditavam que eu estava somente sofrendo, pagando algum tipo de promessa. Indiferença, porque geralmente estavam dispersos e não notavam a minha presença, não tinham curiosidade nem admiração, mas também não sentiam medo ou pena, simplesmente eram indiferentes.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Como surgiu a fantástica frase “sensível, mas não fraco. Forte, mas não rude”?  Ela dá todo um sentido especial tanto à cicloviagem, ao livro que já saiu do forno e ao futuro documentário vivo? O que está envolvido neste território de emoções que é o tema de sua experiência de cicloviagem?

DGSurgiu logo no segundo dia de viagem, subindo a serra de Corupá – SC. Ali, mesmo sendo apenas o segundo dia, já comecei a perceber que para fazer uma cicloviagem é preciso ser sensível, mas não fraco; forte, mas não rude. E à medida que fui viajando ia percebendo que a bicicleta é assim também. A bicicleta, se comparada com um carro ou caminhão, é sensível, mas não é tão frágil. E por me levar tão longe, passei a perceber que ela é super forte, também, ainda que não seja rude e agressiva como outros modais.

Essa frase me acompanhou durante toda a viagem e acabou se transformando em um mantra, além de representar uma particular filosofia de vida para os meus dias. Nos momentos difíceis, sempre procurava lembrar desta frase. Ela me servia de guia para as decisões que precisava tomar.

De alguma maneira, essa frase também simboliza, para mim, o equilíbrio que existe na natureza e em todos os seres. O equilíbrio que necessitamos buscar na vida para sermos melhores, particularmente, e com os outros. É necessário passar a entender que ser sensível não quer dizer ser fraco, e que para ser forte não é preciso ser rude.

E se observarmos tudo o que nos cerca veremos que, de alguma maneira, esse equilíbrio está em todas as coisas. Por isso procurei levar essa frase como um mantra e uma filosofia de vida.

Então, depois, quando comecei a escrever o livro, não conseguia pensar em outro título, exatamente porque me norteou e me acompanhou durante toda a viagem.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Douglas, muitas pessoas, como eu, ficaram bastante sensibilizadas com o mote da sua cicloviagem, numa simbiose entre corpo e mente banhada de emoção. Após 3 anos e 5 meses de cicloviagem, como o Douglas Grubel voltou? Quais as transformações que você já percebe em si em decorrência desta experiência de vida cicloviajante tão intensa?

DGSinto que as transformações que podem acontecer em uma cicloviagem são várias e inclusive em vários âmbitos, isso depende muito também do que você está buscando nessa cicloviagem.

As transformações podem ser, desde as mais simples, como mudança de pequenos hábitos, na alimentação, na qualidade do sono, chegando até outras transformações como o aumento da criatividade, uma melhoria na comunicação ou, simplesmente, sair de velhos esquemas mentais.

Porém, acredito que grandes transformações e aprendizados vêm também depois que a viagem termina. É bem verdade que podemos pensar que a viagem segue de alguma maneira, ela nunca acaba, tudo bem. Mas, a partir do momento que você deixa de pedalar e começa a se sentir fixo e sedentário novamente, a partir de então começa a observar a vida desde um outro ponto de vista e ter outras percepções do mundo.

© Arquivo pessoal Douglas Grubel

TF – Então, para finalizar, após esta cicloviagem tão intimista, o que representa para você, hoje, a América Latina?

DGA América Latina para mim, hoje, representa esse lugar mais próximo do coração. É como escrevi na orelha do livro, que “pela generosidade, simplicidade, hospitalidade, dizem que a América Latina está mais próxima do coração”. Foi exatamente isso que senti em minha cicloviagem por esses países.

Acredito que por ser um continente com menos anos de colonização, ainda preservamos algumas coisas que talvez na Europa, por exemplo, já não se sinta com tanta força, exatamente por tantos anos de racionalidade, de normas, de uma padronização da vida.

Então, é isso que a América Latina representa para mim. Um lugar que me permitiu estar mais próximo do natural, da natureza, da nossa essência, e que exatamente por isso me ajudou a sarar certas dores. Apesar de todas as controvérsias e daquilo que muitos dizem sobre nós, latinos, sinto que a América Latina ainda é um lugar de esperanças.

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