O Caminho de Santiago é mais do que um sonho para os cicloturistas: já é quase uma tradição. É difícil quem não planeje ir para lá algum dia, e não conhecemos ninguém que tenha ido e gostado só mais ou menos do caminho. Todos gostam muito e trazem boas lembranças desta rota tão famosa.

Nossa chegada na Europa foi tensa. Um dia antes de nossa partida para a Espanha, em 2011, mataram o Bin Laden. Pensei: “e nós com isso?”. Quanta inocência… Tínhamos tudo a ver com isso, pois os aeroportos ficaram com segurança redobrada. Os funcionários de alfândegas, tanto no Brasil quanto na Europa, estavam com os nervos à flor da pele. Tudo era suspeito. Na chegada, que foi via Amsterdã, ainda no corredor do aeroporto, dois guardas esperavam para entrevistar todos os passageiros. Ali mesmo, na muvuca formada, respondemos às perguntas de praxe e fomos logo liberados. Já atrasados para a conexão, saímos correndo para procurar nosso voo.

Para nossa surpresa, demos de cara com mais uma fila para entrevista, desta vez num guichê de imigração. O Rodrigo, que tem passaporte europeu, livrou-se em poucos instantes, já eu enfrentei uma espera bem maior, além de um funcionário nada simpático. O rapaz devia ter pouco mais de vinte anos, mas um ar muito arrogante. Mostrei minha credencial do Caminho, e ele fez cara de interrogação: “Way of Saint James”? Caminho de Santiago de Compostela?”. Ou seja, ele não tinha a menor ideia do que era. O rapaz estava tenso, perguntou quanto dinheiro eu tinha e me pediu para mostrar o Europass, o passe livre de trem que eu havia mencionado que tinha. Procura daqui e de lá, lembrei que estava com o Rodrigo e então o chamei. Assim que o Rodrigo se aproximou, vindo do guichê de europeus, o guarda simplesmente me ignorou, e se dirigiu a ele: “Ela está com você? Ela vai passar o tempo todo com você?”. Com a resposta afirmativa do Rodrigo, o guarda disse apressado: “Pode passar”, e nem quis ver mais nada.

Com isso, por muito pouco não perdemos nossa conexão para a Espanha. Entendo que a função destes caras é mesmo causar nervosismo, para testar sua reação e pegar algum suspeito, mas acho que muitas vezes eles exageram. Eu estava muito tranquila, afinal, eram minhas férias e eu estava indo para o Caminho de Santiago viajar de bicicleta. Iria precisar bem mais do que isso para me tirar do estado zen em que me encontrava. Pensando bem, talvez isso tenha irritado ainda mais o tal funcionário.

© Rodrigo Telles

De bicicleta pela capital

Rodamos alguns dias de bicicleta por Madrid, para sentir como é a cidade e também para ter a experiência de pedalar por uma capital europeia. Não aquelas especialmente conhecidas por sua estrutura ciclística, mas uma onde fosse necessário compartilhar a via com automóveis. Fomos surpreendidos positivamente. Embora a malha cicloviária realmente seja pequena, o respeito é muito grande por parte dos motoristas espanhóis. Aliás, por parte dos pedestres também: eles sempre nos davam a preferência, o que estranhamos no começo. Madrid é uma cidade bonita e muito interessante.

A caminho do Caminho

De Madrid rumamos ao local que escolhemos para o início do nosso caminho, Saint Jean Pied de Port, na França. Há inúmeros caminhos de Santiago: o Português, o Aragonês, o do Norte… Escolhemos o Francês, por ser o mais utilizado. Chegar em St Jean de trem com as bicicletas, a partir de Madrid, e não foi tão fácil quanto esperávamos. Foram várias conexões a mais só por estarmos com as bicicletas e houve necessidade de reservar a ida da bicicleta com um ou mais dias de antecedência. Como um dos trens atrasou, perdemos uma conexão e tivemos que tomar um táxi no último trecho; ainda bem que a companhia de trem assumiu o erro pelo atraso na conexão e pagou o táxi, pois saiu bem caro, mais de cem euros.

Com isso, chegamos já fora do horário de funcionamento do escritório da Associação do Caminho de Santiago. Já era noite, mas mesmo assim arriscamos dar uma passada lá. Para nosso espanto, eles não só já sabiam do atraso do trem como estavam nos aguardando na frente do escritório, na rua. Incrível, não? E teve mais, ao saberem que íamos acampar e que tudo na cidade já estava fechando, nos deram, na miúda, um litro de leite longa vida de presente. Que bom começar um caminho assim; se a primeira impressão é a que fica, essa com certeza foi a melhor possível.

St. Jean é uma cidadezinha charmosa, histórica e turística. Nela há um portal de pedra, um marco geográfico importante do caminho, porque para lá convergem todos os caminhos que, há centenas de anos, partem da França e outros países em direção à Santiago. Já entrando no ritmo da viagem, aproveitamos a manhã zanzando pelas ruelas e iniciamos o pedal somente na parte da tarde. Resolvemos não encarar este primeiro trecho pela trilha, pois além de ser início de jornada e estarmos hipercarregados de bagagem, a primeira etapa é justamente a subida dos Pirineus, uma das mais difíceis de todo o Caminho. Baixamos nossa bola, enchemos bem os pneus e fomos para o asfalto. Não sei se por ser domingo, mas a estrada estava tranquilíssima, um sonho para pedalar. Subida dura, porém, linda, serpenteando por entre os bosques. Um aroma exalava pelo ar, refrescante, parecido com menta. Ainda tentamos alguns trechos de uma trilha, mas foi realmente impossível, estava difícil até de empurrar.

Resolvemos pedalar alguns dias primeiro e acabamos mudando de ideia e incorporando os acampamentos na rotina do caminho. Foi a melhor coisa que fizemos.

© Rodrigo Telles

Sobre ciclistas e albergues

Vencidos os Pirineus passamos por Roncesvalles, já no final da tarde. Ali aprendemos a primeira lição de como lidar com o Caminho. A vila estava bem lotada. Esta e algumas outras localidades do Caminho são muito procuradas, principalmente pela importância histórica. Os livros trazem estas informações e os peregrinos, especialmente os europeus, seguem fielmente o que está escrito. Todos saem dos mesmos lugares, ao mesmo tempo, e querem chegar ao mesmo destino antes dos outros. Na verdade, o que notamos ao longo do caminho foi que havia uma corrida diária em direção aos albergues. Estes lotam bem cedo, pois nesta corrida, os peregrinos caminham até por volta das 13 horas, somente. Apesar de após as 15 horas o clima ser fresco e agradável, quase ninguém caminha na parte da tarde. As poucas vezes que encontramos peregrinos na parte da tarde, eles eram, é claro, brasileiros e sempre batíamos um longo papo, sem pressa nenhuma.

Percebemos, então, que teríamos que ficar alguns quilômetros antes ou depois destes locais mais famosos. Como as opções eram muitas, não houve problema, porque a cada 5 ou 10 km havia um “pueblo” com albergue. Pegamos lugares mais vazios e, além disso, tivemos a oportunidade de descobrir outros lugares encantadores que estão fora da lista de eleitos pelos guias.

Já sabíamos como era o esquema para ciclistas. Quem está de bike precisa esperar até as 20 horas para ser aceito nos albergues, pois a preferência é sempre dos caminhantes. Então, se queríamos ficar em albergue seguíamos adiante, já que a luz nesta época de primavera vai até perto das 22 horas. Mas na maioria das vezes nós optamos por acampar. Estávamos carregando barraca e toda a tralha de camping e cozinha, porque ainda iríamos fazer uma outra etapa de viagem pela Europa, cruzar os Alpes da Itália para a Áustria.

No início até pensamos em despachar este excesso de bagagem para Santiago, mas resolvemos pedalar alguns dias primeiro e acabamos mudando de ideia e incorporando os acampamentos na rotina do caminho. Foi a melhor coisa que fizemos. Alguns dias havia campings e em outros fazíamos acampamento selvagem. Foi uma experiência e tanto. Bem mais sacrificado, por carregarmos mais peso, mas em compensação a cada dia escolhíamos um canto mais bonito que o outro para fixar nosso pequeno lar. Os pontos com áreas de descanso para os peregrinos estavam marcados em nosso mapa. Em geral, eles consistem de mesas com bancos, bica de água potável, árvores e gramado. Traduzindo para a nossa linguagem, passou a se chamar “camping livre”. Nas primeiras vezes ficamos um pouco receosos de aparecer alguém e sermos convidados a nos retirar, mas depois relaxamos, porque ninguém jamais nos incomodou.

Há vantagens em ficar na barraca do que nos albergues. Os albergues eram extremamente limpos e todos, atendentes e peregrinos, muito simpáticos, mas houve uma certa incompatibilidade de horários. As manhãs estavam bem geladas, por isso era mais confortável para nós começar a pedalar a partir das 9 ou 10 da manhã. Só que nos albergues se acorda antes das 4 horas, e às 7 horas é obrigatório partir, ou seja, tudo muito cedo para nós. À noite também restava pouco tempo, pois o horário de fazer silêncio e ir dormir é às 21 horas. Lembrando que só éramos aceitos após às 20 horas, sobrava somente uma hora para tomar banho e cozinhar.

Algumas vezes conseguimos conciliar albergue e acampamento, armando a barraca no gramado ao redor. Este foi o melhor esquema de todos. Negociávamos um preço e tínhamos acesso à cozinha e banheiro, desfrutávamos da companhia de mais peregrinos, mas podíamos dormir sossegados e até a hora que queríamos. O bom de ser brasileiro é que sempre damos um jeito para tudo…

© Rodrigo Telles

Perdidos

Pode-se confiar cegamente nas setas amarelas, e a não ser nas cidades maiores, poucas vezes elas te abandonam. Mas basta sair da trilha um pouco para se perder pelos vilarejos e estradas vicinais. Compramos um guia para saber onde voltar para a trilha, mas a escala dos mapas disponíveis não era suficiente para nos localizarmos. Então optamos por fazer o máximo possível pela trilha, por mais penoso que fosse o trecho, com pedras ou degraus, assim acabamos desviando pouquíssimas vezes para a estrada. Estimo que tenhamos feito mais de 95% do caminho pela trilha. Mas não era o que faziam os ciclistas que encontramos. Todos iam pela “carreteira”, cruzando o Caminho somente nos pontos principais. Muito mais rápido e fácil, mas bem mais pobre em termos de paisagem e contato com a natureza e as pessoas.
Buen Camino

Com pedaladas sempre tranquilas, fizemos até Santiago em 15 dias, dois dias parados por lá e mais dois até Finesterre. Muitos ciclistas fazem em menos tempo, mas não vimos vantagem nisso, e optamos por curtir o caminho com calma. Parávamos onde queríamos durante o dia, passávamos horas fotografando algum pueblo, observando a paisagem, ou fazendo um piquenique com direito aos maravilhosos pães, queijos e frutas da Espanha. Durante o período da manhã, com todas estas paradas, íamos cruzando sempre os mesmos peregrinos que estavam a pé. Hora nós passávamos por eles, hora eles nos passavam. A maioria elogiava nossa tranquilidade em aproveitar o caminho, mas em alguns dava para ler o pensamento pelo olhar: “que ciclistas mais preguiçosos”! Nas trilhas estreitas esta ultrapassagem repetida de peregrinos foi um pouco trabalhosa. Além das nossas paradas, o próprio ritmo de deslocamento é bem diferente entre ciclistas carregados e caminhantes. Nas descidas, nós os ultrapassávamos, e nas subidas, sempre que era necessário empurrar a bicicleta, eles nos passavam. Na parte da tarde, quando os peregrinos já tinham parado, a trilha era só nossa.

Também tivemos dificuldade na aproximação com os peregrinos. Não queríamos assustá-los, achamos um pouco antipático tocar a campainha, pois eles invariavelmente davam um pulo para o lado. Tentamos fazer algum barulho para nos fazer notados, mas não deu certo. Aliás, tentamos de tudo: uma freada, um ruído do pneu, uma troca de marcha, uma balançada na bagagem, conversa em voz alta, mas nada disso deu resultado, eles seguiam concentrados em seus passos e só nos percebiam quando estávamos muito perto e se assustavam. Então, adotamos o método de gritar o cumprimento padrão “Buen Camino”, que pelo menos era uma forma mais educada de assustá-los.

Chegando ao Fim da Terra

Tivemos muita sorte com o tempo: em 19 dias pegamos somente uma manhã de chuva, no restante, só céu aberto. O que para nós foi uma benção, para os peregrinos foi um tormento, principalmente na região das mesetas, com mais de 300 km de plano e pouca sombra. Já a subida mais temida, a do Cebreiro, é realmente dura, mas também a mais bonita. Acampar no alto do morro do Cebreiro e ver o por e o nascer do sol lá de cima foi um presente que compensou cada quilo a mais carregado nos alforjes. A chegada em Santiago de Compostela é um pouco conturbada, pois apesar de ser uma cidade bonita e organizada, é uma capital de província, muito movimentada e com muitos ônibus de turismo convencional, o que não combinava muito com nosso clima introspectivo do momento. Assim, resolvemos esticar mais um pouco o caminho até Finesterre, para ter um final mais tranquilo e contemplativo.

Muitos são os motivos que levam alguém a percorrer o Caminho de Santiago, mas o que mais encontramos por lá foram pessoas que decidiram tomar um novo rumo na vida e o caminho foi um marco desta mudança. Vários europeus que se aposentam fazem a peregrinação de Santiago como forma de pontuar uma nova etapa em suas vidas, em que terão novos valores, mais tempo para pensar em si, na saúde e menos em juntar dinheiro. Seja qual for o motivo que leva as pessoas a ir até lá, é sempre um bom motivo, ou melhor dizendo, um motivo do bem. Forma-se assim uma atmosfera única, contínua, de mais de 800 km de pura solidariedade, plenitude e paz. Só isso já vale a viagem, e acho que foi o mais marcante desta experiência para mim.


© Rodrigo Telles

Dicas

Bicicleta nos trens
Poucos trens de média distância aceitam bicicleta, e nenhum trem rápido aceita. Com isso, foi necessário fazer mais conexões e também fazer reserva com antecedência, às vezes, de vários dias. Um mito caía para mim, pois um dos fatores que me motivou a ir para a Europa era vivenciar a tão falada facilidade de transporte intermodal. Mas a facilidade se restringe a deslocamentos regionais.

Gastos
Para quem vai ficar em albergues e comer “menu” em restaurantes, o gasto diário gira em torno de €30. Para nós, que revezamos os albergues com acampamentos (boa parte das vezes camping selvagem), ficou menos da metade disso, €14 por dia, por pessoa.

Em Santiago
Tem um bom camping a cerca de 3 km do centro da cidade. Outra dica, quando se cansar de andar pela cidade uma boa área verde para descansar é o Parque do Monte da Almáciga.

Credencial
Tire sua credencial com antecedência aqui no Brasil: www.santiago.org.br

Site com bastante informação: www.mundicamino.com

Para agendar albergues que aceitam ciclistas: www.bicigrino.info/albergues

Um livro bom e compacto o suficiente para ser carregado na bagagem: Guia Excursionista, Camino de Santiago, por Cordula Rabe, Ed. Rother.