ROTA DO FERRO, 90KM FEITOS EM BICICLETAS DOBRÁVEIS

Quando conheci o trecho da Rota do Ferro em 2019, me encantei com o lugar. Parecia um sonho pedalar por uma trilha com ausência de motorizados (nem motos ou carros) e caminhos no meio da mata, passando por rios, cânions, túneis, pontes…  uma verdadeira viagem no tempo, tal como era a viagem na Maria-Fumaça, caminho original da rota.

 Tunel Barão de Cocais. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Resolvemos, eu, o também jornalista Ike Yagelovic e o amigo Álvaro, realizar uma aventura: percorrer os 80 km da rota, em dois dias e em bicicletas dobráveis aro 20, algo inédito na rota, pois a maioria dos ciclistas que percorrem o caminho inteiro, o fazem em apenas um dia e em MTBs. Nada contra esse estilo de pedal, mas queríamos vivenciar a rota na bicicleta de uma forma devagar e passar pelo menos uma noite nela. Somos apaixonados por bicicletas dobráveis e, como era uma cicloviagem teste, escolhemos as pequenas sabendo que a viagem seria lenta, mas no tempo da vida. 

 FAzenda Vera Cruz. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Calculamos que a altimetria que mais favorecia as dobráveis seria fazer a rota partindo de Sabará, que conta com apenas 2% de elevação em média, para subidas. Levamos barracas e material de camping, pois não sabíamos onde iríamos passar a noite. Nossa ideia é sempre acampar ou pernoitar em locais que possamos ajudar as comunidades locais, fomentando a economia dos municípios e vilarejos por onde passamos. Assim partimos de Sabará em três dobráveis, duas da marca Dahon, e uma Blitz. A Blitz estava com pneus Atacama 20 x 1,95 que renderam mais no terreno. Na bagagem, não mais que 8 kg.

 Capela Nossa Senhora do Rosário – Santa Barbara – foto Will Odilon. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Essa viagem precisou ser adiada em três momentos. Num deles, o pai do amigo Álvaro, tinha falecido. Ele ainda estava em luto, mas totalmente resiliente sobre o destino. Respirei fundo e lembrei das palavras de Guimarães Rosa:

O correr da vida embrulha tudo,

a vida é assim: esquenta e esfria,

aperta e daí afrouxa,

sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.

Achamos que muitos iriam rir de deboche ao verem as bicicletinhas na trilha, pois já estamos acostumados a ouvir gracejos pedalando na cidade. Mas foi exatamente o contrário! Os ciclistas pararam para elogiar a empreitada e foi assim que cruzamos com Paulo Dutra, um dos criadores da Rota do Ferro. Uma prosa rápida, mas fundamental para nossa empreitada. Pedalar em Minas não é só ficar na bicicleta e percorrer longos caminhos em pouco tempo. É preciso parar algumas vezes, apreciar a beleza e a hora da prosa, bem no estilo do mineiro. Pequenos gestos de gentileza que podem salvar todo o rolê.

 Mirante Rota do Ferro Rancho Novo a Barão de Cocais. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Dividimos a rota em duas partes com um trecho para se fazer no primeiro dia e o restante no segundo. O primeiro trecho de Sabará a Rancho Novo, um vilarejo entre Caeté e Barão de Cocais. A ideia era chegar em Caeté, almoçar e seguir para Rancho Novo, antes das 16h, para encontrar com calma um lugar para acampar e dormir. Teríamos cumprido a agenda se não fossem dois contratempos: pneu furado e perda do celular antes de Caeté. No aparelho fiz o registro dos primeiros quilômetros da rota. Bateu um desespero inquietante e enquanto almoçava, Yagelovic percorreu um pouco do caminho de volta, para ver se encontrava o aparelho.

© Gil Sotero e Ike Yagelovic

Antes de seguir viagem conheci, no restaurante, um casal de ciclistas que gentilmente enviou mensagem a um grupo que pedalava na região. Me disseram que na rota outros já haviam encontrado câmera e celular e devolveram aos donos. A dona do simpático restaurante na boca da rota, Dona Lúcia, completou com um olhar e palavras de apoio. Segui registrando a viagem com minha pequena câmera mirrorless (que, ainda bem, levei).

Trecho que a Rota do Ferro Cruza com a Estrada Real. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

De Sabará a Rancho Novo precisamos enfrentar uma subida lenta e constante. Com a luz caindo rapidamente e com problema na câmara de ar, chegamos às 18h em Rancho Novo. Fizemos o reparo no pneu da minha Dahon Mariner ao lado de um boteco. A luz do poste ajudou e assim pudemos também perguntar aos frequentadores onde ficava a Fazenda Vera Cruz, local indicado por ciclistas para pernoitarmos. O caminho foi indicado do tradicional jeito mineiro: “Logo ali. Pedale pelo atalho e em 3km chegarão à fazenda”. Na primeira tentativa, já pedalando apenas com as lanternas das bikes na estrada de terra, erramos a entrada e voltamos para um caminho em que vimos dois carros passarem. Era um atalho no mais absoluto breu. Enquanto pedalava no escuro, eu pensava em como montar as barracas para dormir. Avistamos as luzes da fazenda, encontrando a porteira já aberta.

Ike Yagelovic, Alvaro e Rafael, administrador da Fazenda Vera Cruz. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Sabíamos que o lugar já poderia estar cheio, pois era Dia dos Namorados. Assim que começamos a falar, o gerente Rafael deu aquele sorriso e disse que já sabia que estávamos a caminho. Em tempos de Whatsapp, três forasteiros em bicicletinhas não passariam incólumes! Avisou de cara que não tinha vagas, mas que poderia nos alojar em uma das casas da propriedade.

Apartamento onde pernoitamos – Fazenda Vera Cruz – Ike Yagelovic. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Ficamos sem reação, pois achávamos que no máximo nos deixaria acampar. Para completar, outra notícia emocionante: meu celular havia sido encontrado por ciclistas e foi parar nas mãos justamente do Paulo, um dos criadores da rota, com quem bati um papo no caminho. O alojamento tinha camas, lareira e banho quente para todos. Não é à toa que Minas ficou entre os dez destinos mais acolhedores do mundo segundo pesquisa do TripAdvisor. A noite terminou com vinho, lareira, caldo e muita prosa.

© Gil Sotero e Ike Yagelovic

No dia seguinte resolvemos sair às 8h30 em direção a Barão de Cocais, com 30 km de descida.

Indo embora da FAzenda Vera Cruz. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Ao sair da Fazenda perdemos a rota. Mais uma vez a boa receptividade mineira nos ajudou. Encontramos ciclistas que nos colocaram de volta ao caminho. E que caminho! Achei o segundo trecho mais bonito que o primeiro e passamos por mais túneis, pontes e também cachoeiras com direito a banho. A maior dificuldade foi vencer com as aros 20 o terreno pedregoso que compunha a antiga ferrovia. A viagem rendeu menos por causa delas e também do peso das bikes, mas por conta disso pudemos realizar algumas paradas, como em um mirante com uma vista espetacular no meio da trilha, e também conhecer outros ciclistas da região. Seu Donato, de 66 anos, ficou surpreso com a nossa “loucura”. “Cês são doidos de fazer este trecho com os aros 20. Eu topo qualquer estrada, mas com estas aro 20 eu não encaro não”, disse rindo. E completou: “E ainda mais com este peso…. não precisa disso. O melhor mesmo é utilizar o comércio local”, ponderou ele no alto de sua vivência e sapiência, de quem sabe que os cicloturistas devem, cada vez mais, ajudar o desenvolvimento sustentável local. Foi ótimo o papo, pois este é exatamente o nosso entendimento. Explicamos que as barracas eram só para o caso da gente não encontrar um pouso no caminho, o que, felizmente, não aconteceu. 

Chegando em Barão de Cocais. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

O trajeto até Cocais possui singles espetaculares e momentos de pura contemplação no meio da mata. Com direito a encontrar a Cachoeira Água Fria, à beira do caminho pra um refresco obrigatório. Cachoeira deserta, com águas geladas que fazem jus ao nome, totalmente revigorantes.  Chegamos por volta das 13h em Barão dos Cocais para almoçar e seguir adiante. A essa altura o cansaço das 10 horas na bike no dia anterior estava batendo e ainda faltavam 13km até Santa Barbara. Almoçamos e esperamos um pouco a lomba passar e seguimos para Santa Bárbara. A pedalada foi intensa no trajeto quase plano em direção à bela cidade de Santa Bárbara. Chegamos a tempo da melhor hora da luz da tarde. Olhei para minha pequena e lembrei de um mestre que se foi há um tempo; Waldson Gutierrez, famoso “Antigão” que fazia muitas cicloviagens em sua dobrável nomeada Nanika. No seu blog ele sempre citava outro viajante. 

“Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver. – Amyr Klink

A forte ligação do trem com os mineiros está na base da criação da Rota do Ferro

© Gil Sotero e Ike Yagelovic. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

A Rota do Ferro reúne o que de mais intenso Minas Gerais tem a oferecer aos turistas admiradores da natureza, esportistas ou não: história, beleza natural, hospitalidade mineira, gastronomia raiz, desafios, superação. Com cerca de 80 quilômetros de trilhas naturais passando também pelos belíssimos centros históricos das cidades de Sabará, Caeté, Barão de Cocais e Santa Bárbara.

Seguindo o antigo leito da antiga (e hoje desativada) Estrada de Ferro Sabará a Santa Bárbara, de 1901, ela hoje é um circuito turístico/esportivo frequentado por ciclistas, corredores, caminhantes de todas as idades, inclusive famílias inteiras. Pela pouca altimetria, é considerado um dos circuitos mais inclusivos do país.

E a “redescoberta” desta rota começou quando uns seis amigos ciclistas da região e de Belo Horizonte, Paulo Dutra, José Munaier, Marcos Monteiro, Marco Túlio, Jadson e Fábio Carvalho, resolveram explorar o trecho, totalmente abandonado e tomado pelo mato.

© Gil Sotero e Ike Yagelovic

Com o espírito aventureiro próprio dos ciclistas, armados de muita disposição e facões, foram abrindo a trilha literalmente no braço. Aos poucos foram descobrindo tesouros naturais e do patrimônio histórico que estavam escondidos pelo abandono do tempo: túneis, pontes históricas, mirantes, cortes de pedra por onde passavam as Marias-Fumaças. Paulo Dutra lembra com emoção daqueles primeiros momentos: “A gente fez um estudo histórico da linha férrea antes de começarmos a empreitada. Tínhamos a ideia de que poderíamos encontrar uma rota com grande potencial. E aí, fomos na cara e na coragem abrindo a trilha no facão.”

Alvaro saindo do tunel rota do ferro. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

A Rota do Ferro, que atrai centenas de pessoas todos os finais de semana, encantadas com a aventura ao alcance de todos, é um orgulho para os desbravadores. Assim que começaram os trabalhos, vários voluntários aderiram ao projeto. “Fizemos mutirões e ‘vaquinhas’ e contamos com o apoio de vários grupos de ciclistas, caminhada, corredores e amigos que realizaram a capina e limpeza nas trilhas”, relembra Paulo Dutra.

Rota do Ferro  – trecho Sabará a Caeté. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Desde 2018, a Associação Turística e Esportiva Rota do Ferro, que fica em Sabará, está implementando melhorias nas trilhas, sinalização e divulgação do Circuito Turístico Rota do Ferro. Há pouco tempo conseguiram importantes vitórias: dois dos pontos mais críticos de passagem para os esportistas, onde pontilhões muito antigos haviam desabado ou estavam em péssimas condições de tráfego, tiveram os problemas solucionados. A prefeitura de Sabará construiu uma ponte pênsil no km13, que se tornou um dos pontos mais divertidos da Rota, e a prefeitura de Barão de Cocais instalou o piso no pontilhão férreo no km 50, tornando a Rota do Ferro mais segura para seus frequentadores.

© Gil Sotero e Ike Yagelovic. © Gil Sotero e Ike Yagelovic

Atualmente, os idealizadores do projeto estão finalizando a sinalização em todo o percurso para que, quando vier o fim da pandemia, começarem a divulgação mais intensa com a criação de projetos que aproveitem todo este potencial histórico e natural e tragam benefícios turísticos e esportivos aos quatro municípios históricos por onde passa a Rota do Ferro.  


Por Gil Sotero e contribuição Ike Yagelovic – Ciclonavegantes.

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© Gil Sotero e Ike Yagelovic
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