Aprender na prática soa como um clichê, mas não posso deixar de reconhecer que tenho maior facilidade de aprender algo quando ele está relacionado a uma experiência. Ter experiências e consequentemente aprender são coisas que busco ao viajar de bicicleta.

Parafraseando uma velha propaganda de lingerie, posso dizer que o primeiro raio quebrado a gente nunca esquece. Foi no interior da Inglaterra, depois de 6 mil quilômetros pedalados na volta ao mundo. Só então comprei uma chave de raio e coloquei em prática as teorias que aprendi a respeito de centragem da roda.

Tudo é muito simples na teoria. Quando quebra um raio é só retirar, colocar outro e apertar. O problema é que quando um raio quebra o aro entorta, pois é a tensão de todos os raios juntos e em equilíbrio que suportam a roda.

Com o aro torto o ciclista pode ter problemas com os freios, pois as sapatas podem encostar-se ao aro, principalmente em freios v-break. A grande alavanca formada pelo “V” que lhe dá tanta eficiência, também obriga que as sapatas estejam muito mais perto dos aros que os antigos freios cantilever. Se não puder ou não quiser arrumar o aro, poderá simplesmente soltar o cabo de freio e continuar seu caminho assumindo todos os riscos de pedalar sem freios, valendo-se apenas do famoso freio de pé (colocar o pé no chão ou no pneu da frente).

A primeira vez que troquei o raio achei estranho, pois tive que entortar para fazê-lo entrar no local certo, depois acabou ficando reto de novo. A maior dificuldade é centrar o aro. Seguramente não ficará perfeito como quando ele sai da bicicletaria; lá o mecânico possui uma máquina especial que ajuda a identificar com precisão o que deve ser feito para centrar e “desovalar” o aro. Na estrada, o ciclista poderá utilizar a sapata de freio como gabarito para centrar o aro. O macete é ter paciência e apertar, bem lentamente, o raio preso no lado do cubo contrário ao lado da torção do aro, até que a roda circule sem tocar nas sapatas de freio. Na prática isso pode demorar horas para quem não está acostumado.

Aí tem sempre alguém que diz: “felizmente eu utilizo freios a disco e não preciso saber de nada disso”. Quando eu e a Rafa pedalávamos na Patagônia, em El Calafate (Argentina), encontramos Gustavo, um ex-velocista argentino fazendo uma grande viagem de bicicleta. Ele já estava com três raios quebrados em sua roda da frente. Contava que mesmo sendo argentino os mecânicos na Patagônia exploravam demais para trocar um simples raio e como utilizava freio a disco estava tudo bem. Isso é um mito! A roda da bicicleta funciona com o equilíbrio de força de todos os raios e, quando um arrebenta, a tendência é que outros fiquem sobrecarregados e também arrebentem. Enquanto conversávamos sobre isto, dei um jeito na roda do Gustavo.

© Rafaela Asprino

“Bem, então se eu levar a chave, raios e aprender a centrar o aro, estou seguro?”

Mais ou menos, veja os números e proporções para não assustar: em minha volta ao mundo rodei 46.620 km, o peso total da bicicleta variou entre 50 e 70 kg. Troquei cerca de 29 raios, mas nunca um raio da roda traseira do lado das catracas (roda livre ou cassete). Até o final da volta ao mundo, nunca me dei conta de que para trocar um simples raio da roda traseira do lado das catracas é preciso retirar a catraca. Não tem outra forma de fazer um raio passar pelo furo do cubo.

“Tá e daí?”

Daí que é preciso ter um sacador especial e uma chave chamada “chave de corrente” (não é aquela que falamos na outra matéria; esta é enorme e tem um pedaço de corrente atado a ela para fixar os dentes da catraca enquanto faz força para soltá-la). Em bicicletarias geralmente os mecânicos travam o cubo em uma morsa de tão dura que é esta operação, ou seja, sem chances de fazer este trabalho no meio da estrada: mesmo com todas estas grandes ferramentas, ainda será necessária uma morsa.

Como diria o Dick Vigarista: “raios… raios duplos!” Neste momento desejo expressar minha profunda revolta contra a farsa de que os grandes fabricantes de equipamentos estão desenvolvendo novas tecnologias para melhorar a vida dos ciclistas. Enquanto o mundo todo discute qual tamanho da roda é melhor, 26, 27,5 ou 29, ninguém pensa em fazer uma pequena alteração no desenho do encaixe dos raios aos aros. Infelizmente, só vemos esta solução em poucos produtos top de linha. Será preciso tecnologia avançada para mudar um simples design?

Na volta ao mundo tive sorte de nunca quebrar um raio destes, mas isso poderia mudar. Tinha que arranjar uma solução para este problema. Em uma viagem pela Alemanha consegui encontrar um equipamento raro e caro, paguei cerca de cinco euros por um par de raios flexíveis especialmente feitos com cabo de aço e um gancho na ponta para solucionar este problema.

Carreguei este equipamento por muitas viagens como um amuleto que serviu para que nunca quebrasse nenhum raio. Pouco antes de sairmos para fazer a viagem de Bariloche à Terra do Fogo é que percebi que de tão emocionado por ter encontrado o tal do raio flexível eu nem reparei que ele não servia para bicicleta aro 26 como a minha.

Partimos em viagem sem meu amuleto que a rigor nunca serviria para nada mesmo. Justamente um dia depois de termos tomado um desvio em uma estrada que já estava interditada foi que a bicicleta da Rafa inventou de quebrar o tal do raio traseiro do lado da catraca. Não preciso explicar como é ruim uma estrada de terra na Patagônia com o famoso ripio, agora imagine uma estrada que já está interditada há anos. Na manhã em que percebemos o raio quebrado sabia que tinha que consertar antes que quebrassem outros. Concentrei-me e senti o poderoso “espírito de MacGyver” tomando minha mente. Lembrei-me de que um amigo cicloturista comentou uma teoria simples de remediar este problema. Se tivesse preparado em casa seria melhor, mas tive que fazer em plena estrada. É necessário um raio um pouco mais comprido do que aquele da sua roda. Observe que em uma extremidade o raio possui uma rosca para fixar-se no nipple, que é aquela pecinha que fica encaixada no aro para receber o raio. Do outro lado possui um formato para travar nos buracos de encaixe do cubo.

Com um alicate de bico fino, aumente a curva do raio no ponto da trava e depois corte a trava. Pronto, é só enganchar no cubo e depois roscar no nipple. Não aperte muito, pois o raio não tem mais a trava e poderá soltar. O problema foi remediado e conseguimos pedalar em estradas ruins por mais uns 300 km sem que quebrassem outros raios (até o momento que quebrou o próprio aro, mas isto é outra história).

© Rafaela Asprino

Contando assim até parece fácil, mas naquela manhã fazia muito frio e meus dedos congelavam no vento patagônico; eu era obrigado a ficar pondo e tirando as luvas durante o serviço. A maior dificuldade foi retirar o pedaço de raio que ficou preso ao cubo, demorei quase duas horas para executar esta tarefa.

Assim como o treinamento físico evita que a dor muscular sufoque o deleite de uma viagem de bicicleta, às vezes a prática em executar manutenção em sua bicicleta pode ajudar muito numa hora destas. Sempre indico aos cicloturistas aprender a fazer a manutenção em suas bicicletas, é melhor ficar tentando centrar uma roda na tranquilidade de seu quintal que no meio do deserto; o atraso de duas horas com a troca do raio alterou o ponto de nosso acampamento que ficou deste jeito no dia seguinte.