Foi simples assim: feriado do dia 1º de maio, Raquel acordou e foi pedalar. No fim da tarde voltou pra casa, foi xeretar as novidades na rede social e se deparou com um artigo que apresentava roteiros de viagens para se fazer de bike. Conheceu a North Sea Cycle Route, a Rota do Mar do Norte, com mais de seis mil quilômetros passando por vários países europeus. Comprou as passagens. Embarcou dia 30 de maio. E entre o dia 1º e o dia 30, resolveu o resto. E o resto era tudo!

Iniciamos nesta edição uma série de entrevistas com a Raquel, para apreciar com mais tempo e espaço as experiências dela e aprender um pouco sobre ousadia, improviso e muito mais.

Quem é Raquel Jorge e de onde vem a paixão por viajar de bicicleta?

Nasci em Botucatu mas nem sei onde fica no mapa, com menos de um ano nos mudamos para a Lagoa da Conceição em Florianópolis, e lá vivi a infância dos sonhos, onde aprendi o valor de ser livre, andar descalça, pescar na lagoa, nadar no mar e claro, andar de bicicleta.

Aos 10 fomos para São Paulo, difícil transição. Cheguei aqui com uma referência de vida que não cabia nesta metrópole. Cresci em um sítio na praia, e da liberdade das ruas, árvores e do mar fui para o concreto, o anonimato e a hostilidade. Desesperada por liberdade comecei a trabalhar, tinha 13 anos e era aprendiz em uma oficina mecânica de jeeps que ficava perto da minha casa. Com 15 anos a bicicleta voltou à minha vida. Comecei a pedalar e nunca mais parei. A bicicleta me devolveu para o mundo que eu conhecia. Vento no rosto, autonomia, bem estar e prazer. Quando pedalamos enxergamos os espaços de outros ângulos, a bicicleta nos aproxima da dinâmica da cidade, humaniza nosso olhar e traz uma sensação autêntica de pertencer, onde aprendemos a dividir e cuidar. Ganhei confiança e passei a circular livremente pela capital paulista.

Aos 20 me mudei para Londres, onde vivi por 10 anos. Comprei uma bicicleta usada e com a exceção dos meses de inverno, era ela que me levava para todos os lugares. Aos 30 deixei Londres e passei um ano mochilando pelo mundo. Índia, Sudeste Asiático, Estados Unidos, Américas Central e do Sul. Os deslocamentos entre cidades eu fazia de transporte público, mas nos centros urbanos sempre dava um jeito de descolar uma bicicleta para poder ir e vir com mais liberdade. A sensação de pedalar por cidades como Delhi, Hanoi, Bangkok, Marrakech, Havana e Mumbai é difícil de descrever, você se sente um nativo e interage com a dinâmica da cidade de forma intensa e verdadeira.

© Raquel Jorge

Com 31 pousei novamente em São Paulo, trabalhei, fiz faculdade, casei. Aos 40 descasei, deixei o emprego, vendi apartamento e voltei a fazer aquilo que faço melhor e mais feliz. Viajar.

Sou formada em Administração e Hotelaria, mas não tenho apego. Já lavei muito prato, fiz muita faxina e fui até pintora de parede (em NY). Qualquer coisa que seja lícita, minimamente prazerosa e que, vez ou outra, me permita ir pro mundo.

Minha vida, desde pequena, envolveu sempre muitas mudanças. De casa, de escola, de cidade. Isso fez com que meu apego estivesse sempre muito mais vinculado às pessoas do que aos lugares. Além disso tem um pouco de personalidade: ariana, independente, curiosa. O diferente, o desconhecido, o novo sempre me atraíram muito. Por isso essa paixão pela estrada, onde nunca sabemos o que vamos encontrar depois da curva. Viajar aguça todos os nossos sentidos. É como voltar a ser criança e isso me faz sentir viva. Não existe tédio ou preguiça quando estou na estrada.

E viajar de bicicleta é o casamento perfeito. A bicicleta não envolve burocracias e te proporciona total autonomia somada ao imenso prazer que é pedalar. Além disso, de bicicleta você fica mais exposto, mais vulnerável, o que leva as pessoas a te acolherem com carinho. Isso gera um envolvimento real e intenso com os elementos e com as diferentes culturas por onde passa. Você interage muito mais quando viaja de bicicleta.

Tenho 4 paixões na vida. Viajar, fotografar, pedalar e o Paco, meu cão (safado, mimado e absurdamente adorável).

O que é a North Sea Cycle Route? Como se deu a decisão de realizar este percurso?

É a Rota Ciclística do Mar do Norte. Você segue pela costa passando por Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica, Inglaterra e Escócia (ou vice-versa). No dia primeiro de maio li uma reportagem sobre esta rota e me apaixonei. Fiquei na dúvida se começaria pela Escócia ou pela Noruega. Decidi começar pela Noruega por ser um país que eu ainda não conhecia. A rota oficial começa na cidade de Bergen, mas há uma estrada, a Atlantic Ocean Road, considerada uma das mais lindas do mundo, que fica a 763 km ao norte de Bergen. Seria um pecado estar tão perto e não conhecê-la. Com isso, resolvi começar em Trondheim e de lá ir descendo. Embarquei no dia 30 de maio.

© Raquel Jorge

Fale um pouco sobre os preparativos para esta viagem.

Eu tive um mês para resolver tudo. Organizar o mundo que ficava para trás foi o que mais consumiu minhas energias: minha casa, minhas contas, meu cão. (Deixei uma procuração com meu irmão, caso algo acontecesse comigo). Depois cuidei da saúde, fiz um check-up médico e odontológico, aproveitei para providenciar antibiótico, algo muito difícil de adquirir sem receita. Tive aulas de mecânica para ter total autonomia na estrada e com isso entendi quais peças e ferramentas eu precisaria levar. Eu tinha uma ideia de onde gostaria de começar e terminar a viagem. Então calculei por cima o tempo que precisaria para isso. Comprei as passagens e reservei as primeiras duas noites em Bergen, de onde eu pegaria um trem para Trondheim.

É preciso levar muito pouco, mas deve ser o pouco certo. Em função da limitação procurei levar roupas e acessórios de qualidade e alta tecnologia. Os equipamentos eletrônicos: câmeras, lap top, celular e todos os cabos, adaptadores e carregadores que os acompanham foram o que mais pesou nos alforjes, mas indispensáveis. Eu saí do Brasil com 13 kg de bagagem, distribuídos em dois alforjes traseiros e um top case. Depois que deixei a região sub polar despachei algumas coisas que não precisaria mais e continuei a viagem com apenas 10 kg.

Planejar e estudar os locais por onde você quer passar é muito importante. Eu não sei fazer nada disso e meu planejamento se resumiu ao básico para poder partir. Minha única preocupação foi entender as condições climáticas que eu iria encontrar. Acredito que quando não planejamos a viagem flui melhor, mais leve, mais livre, pois não alimentamos expectativas demais e isso permite com que a viagem seja constantemente uma surpresa, e nunca uma decepção. Eu gosto de viajar assim, acordar sem saber onde vou dormir. É no improviso que as melhores coisas acontecem. E não há melhor lugar para adquirir informações e aprender do que no próprio lugar. Mas eu viajo há muitos anos e tenho muita experiência. Eu não recomendaria o mesmo para alguém que vai encarar a estrada pela primeira vez.

© Raquel Jorge

Isso fez com que meu apego estivesse sempre muito mais vinculado às pessoas do que aos lugares… Não existe tédio ou preguiça quando estou na estrada.

Você utilizou bicicleta própria ou alugada? Como foi sua logística até o local de partida da viagem?

Sempre fui apaixonada por bicicletas. Lembro da emoção e das borboletas se debatendo na barriga na primeira vez que pedalei sem as rodinhas. Uma sensação de liberdade e autonomia difícil de descrever. E mais difícil ainda de reproduzir. Aqueles momentos que são únicos na vida. Foi com uma bike infantil, cor de rosa. Não me lembro a marca e isso não importava.

Depois veio uma Ceci, apesar de eu desejar com todo o meu coração uma BMX Pantera – era meu sonho de consumo – sempre preferi os brinquedos dos meninos… Quando fiz 15 anos comprei uma Trek, adquirida com muito suor e trabalho em 1989 e roubada em 1991. Durante os anos na Inglaterra foram várias, nenhuma muito especial. O retorno ao Brasil contou com a melhor aquisição de toda uma vida: uma Specialized Myka Elite. Mtb de menina, bonita mas parruda e dura na queda. Nunca me deixou na mão – confiança é tudo nessa relação. E desde 2010 ela me acompanha, ou melhor, me leva para todos os lugares, faça chuva ou faça sol. Minha parceira para todas as horas.

A estrela da viagem passou por uma completa metamorfose nas mãos do mestre Branco, do Aro 27. Ficou quase irreconhecível, com bagageiros, paralamas e alguns acessórios como o suporte para a Go Pro. Ganhou pneus híbridos, mais luzes, novas manoplas e retrovisor. A lista do trabalho realizado foi longa, mas valeu a pena.

Confesso que me assustava um pouco a ideia de levar minha bike, toda a logística que isso significava. Mas com a ajuda de amigos queridos e experientes aprendi como montá-la e desmontá-la. Despachei duas caixas: em uma a bicicleta, na outra os alforjes e meu capacete. Senti um enorme alívio quando desembarquei em Bergen e vi minhas caixas vindo pela esteira de pacotes especiais. Ali estava o que seria meu mundo pelos próximos quatro meses.

Muitas pessoas, curiosas sobre a viagem, mostram um interesse grande em relação a isso: como levar a bicicleta? Era algo que também me preocupava. Mas é um mito. Não existe dificuldade alguma e você não precisa investir em malas caras e sofisticadas. É só colocar em uma caixa e despachar como um dos itens a que tem direito. A bicicleta não pesa mais do que uma mala grande. A única questão é que a caixa sai dos tamanhos padrões e você precisa despachar em um guichê especial. Só isso. É muito tranquilo e não envolve custos extras. Se você vai pegar um voo doméstico, algumas companhias despacham a bicicleta sem a necessidade de encaixotar. Basta virar o guidão e inverter os pedais.

© Raquel Jorge

E antes de falarmos sobre a viagem em si, na próxima edição, como foi sua ambientação no ponto de partida? Suas expectativas se confirmavam?

Quando pensava nessa trip, o que mais metia medo era a ida para Bergen. Os voos, os trâmites, como eu ia carregar a caixa da bicicleta mais a caixa com os alforjes. Será que os aeroportos teriam carrinho? E se extraviasse? E se eu perdesse a conexão? E se? Eram muitos “e se”. Mas quem viaja sabe que é sempre mais fácil resolver os problemas quando eles acontecem do que quando os imaginamos.

Foi um desperdício de sofrimento. A viagem foi tranquila e sem nenhum contratempo. Deu tudo certo desde a saída de São Paulo até a chegada na Noruega. Graças aos meninos do Aro 27 que me ajudaram a embalar a bike. A Adriana que me levou ao aeroporto. A Andrea da British Airways que conseguiu despachar a bike para o destino final e me colocar na janela. O seu Arnaldo que levou as caixas para serem despachadas fora da esteira. A Lua que zelou por mim durante um voo longo de filmes tristes.

Esse help coletivo me proporcionou cinco horas deliciosas na minha adorada Londres – que passei caminhando pelas margens do Tâmisa. Quinze minutos foi o tempo que levou para ir do centro de Londres de volta a Heathrow – pelo Express Train saindo de Paddington. O segundo voo foi tranquilo, com direito a sobrevoar o Mar do Norte e as montanhas nevadas que cercam Bergen. Pousamos em um aeroporto pequeno e acolhedor – até onde aeroportos podem ser acolhedores.

Daí precisava de um carrinho para colocar as caixas, e para pegar o carrinho precisava de um token. Um funcionário simpático do aeroporto me deu dois sem me cobrar por eles, uma espécie de moeda furada no meio. Um deles carrego no pescoço desde então, ao lado da medalhinha de Nossa Senhora. Próximo passo: achar um táxi que topasse levar, a mim e minhas caixas, para o hotel.

O taxista, um paquistanês sorridente, topou abaixar os bancos para que a caixa coubesse e, sem perder o sorriso me perguntou onde eu pretendia colocar uma TV tão grande! Foi o primeiro e último táxi que eu pegaria na viagem, pois quase precisei vender um rim para pagar a corrida!

O hotel era simples, mas aconchegante. TV que só pegava canais em norueguês. Internet bombada e aquecedor que ajudaria a secar as roupas! Já era noite, mas o sol brilhava forte sobre a cidade. Fui dormir, exausta, sem saber que seriam os últimos raios de sol que veria por muitos dias. O hotel não incluía café da manhã, então, assim que amanheceu saí para comer. Sentei em um café no centro, onde fiquei a observar a chuva que cai, torrencial, sobre a bela Bergen, adornada por casinhas que pareciam ter sido desenhadas, cercadas por montanhas nevadas. Entretida pelo Mar do Norte e seu antigo mercado de peixes, cheio de vida, cheiros e sabores únicos – como a carne de baleia defumada que eu praticamente fui forçada a provar. Não há nada mais rico que observar as pessoas, principalmente quando são tão diferentes da gente.

© Raquel Jorge

Não há nada mais rico que observar as pessoas, principalmente quando são tão diferentes da gente.

Chovia e fazia frio. Mas isso não alterou em nada a rotina dos noruegueses. As pessoas caminhavam pelas ruas, todas com corta vento e galocha, como se fosse uma manhã de sol. Crianças se aglomeravam em frente a monumentos e ouviam, atentas, ao professor que ensinava sobre sua história, ciclistas circulavam livremente e amantes andavam de mãos dadas alheios ao vento que os fazia andar inclinados.

Na rua todos pareciam iguais, loiros, com suas capas de chuva, gorros e galochas. Mas no interior dos lugares as capas e gorros eram removidos e os estilos pessoais se revelavam. Povo bonito, elegante e gentil. Assim são os noruegueses. Mas sem exageros, sem impor nenhuma intimidade, são práticos e objetivos. Debaixo da água que insistia em cair voltei para o hotel. Sentei na cama, olhei para as minhas caixas com uma mistura de euforia e medo e pensei: agora não tem jeito, vou ter que fazer essa bagaça!