Existem várias maneiras de se encarar e viver a vida. Alguns a veem de forma constante, outros em etapas ou ciclos. Eu vejo a vida como uma sucessão de projetos de curto, médio e longo prazo, cada qual com suas etapas. Eu estava no final de um destes projetos que me tomou um bom tempo, o doutorado em Desenvolvimento Sustentável na UnB. Após a defesa, não tive dúvidas: iria pedalar para recobrar as energias. Em uma conversa com uma grande amiga, a Cacau (Cláudia Melatti), de Londrina, decidi que a cicloviagem seria para o Uruguai, passando pela reserva ecológica do Taim-RS.

Fui para Brasília para a defesa da tese, e entre a aprovação que me dava o título de doutor e a comemoração pelo fim de um dos meus projetos pessoais, comentei da viagem com meu tio Dagoberto, de 69 anos. Dagô disse que toparia ir se eu pudesse esperar uns dias para ele revisar a bike e arrumar a tralha.

Dagô é um “tio político”, amigo de colégio do meu pai. A convivência sempre foi constante, em acampamentos, idas a cavernas e outras saídas. Era uma companhia 100% confiável. A viagem agora seria em família, com destino a Montevidéu, pela costa, cerca de 700 km de praias, cidadezinhas e alguns parques nacionais no caminho. Não é todo mundo com quase sete décadas que topa pegar uma bicicleta e sair em direção a outro país pedalando algumas centenas de quilômetros. Mas o Dagô sempre praticou exercícios regularmente, segundo ele, como uma forma de sentir menos limites que a idade impõe às pessoas.

© Tássio Franchi

A ida dele mudou um pouco os planos de viagem, dormir e comer principalmente. Antes a ideia era acampar em 80% do tempo e só usar alojamentos quando estivesse em cidades maiores. Mas como existe uma farta oferta de pequenos hotéis e hostels, isso não foi um grande problema. Em geral, ficamos bem acomodados para os padrões de dois cicloturistas. Com relação à alimentação, geralmente eu passava com frutas e poucas alimentações mais pesadas, mas Dagô insistia em conhecer os prazeres da gastronomia local, o que foi ótimo! Comemos como reis a viagem toda! Sempre que podíamos, almoçávamos e jantávamos fartamente, tudo regado a bons vinhos nacionais. No final da viagem acabei engordando uns dois quilos! Mas na programação do pedal, poucas mudanças: chegamos a pedalar 92 km em um bom dia, e 33 km em um dia ruim. A idade em nada afetou a pedalada, já o vento minuano, sim!

Durante a viagem fui percebendo que com treino e dedicação podemos adiar em muito a aposentadoria de nossas bikes. Envelhecer é compulsório e irremediável, mas como envelhecer é uma decisão de cada um. Uma decisão que temos que tomar ainda jovens e colocar como um daqueles projetos de longo prazo, o qual só vamos colher seus frutos já no outono da vida.

A viagem

No trecho entre Rio Grande e o Chuí, a reserva ecológica do Taim é digna de nota. Plana, plana, plana… Ás vezes o horizonte se misturava com a umidade da manhã e sumia de vista. Aves e capivaras preguiçosamente deitadas no banhado ao lado da pista. Dormimos na pequena vila do Taim, onde pela manhã fomos ver uma igrejinha que dá vista para a Lagoa dos Patos. A infraestrutura para receber turistas na região infelizmente é pouca. Acampamos e comemos em postos de gasolina sem maiores problemas. Já tínhamos três dias de estrada quando chegamos ao Chuí. Este trecho no Brasil foi de cerca de 240 km, onde rendemos bem com os pedais mais longos da viagem, chegando a percorrer mais de 90 km em um único dia. O vento a favor ajudou.

Envelhecer é compulsório e irremediável, mas como envelhecer é uma decisão de cada um.

Entramos no Uruguai e fomos direto para o Arroyo Chuí fazer a foto da divisa entre os dois países. Voltando à estrada, notamos uma feliz diferença. Os acostamentos no Uruguai são em sua maioria no nível da pista e bem pavimentados. Pedalamos a maioria da viagem em bons acostamentos e contando com o respeito dos motoristas que não passavam perto demais das bikes nas poucas estradas sem acostamento. Não houve estresse ou incidente algum com isto no caminho.

Seguimos pelas rotas 9, 16, 10, 15, 13 e pela Interbalneária (IB). Em alguns momentos pegamos estradinhas locais e vias de acesso às cidades e praias. Os centros de informação ao turista, nos quais pegamos mapas excelentes pelo caminho, funcionam muito bem. O trajeto no Uruguai passou pelos seguintes locais: Barra del Chuy, La Coronilla, Fortaleza de Santa Teresa (Parque Nacional), Punta del Diablo, Cuchilla de la Angostura, Laguna Negra, Castillos, Águas Dulces, Cabo Polônio (Parque Nacional), La Pedrera, La Paloma, Rocha; Maldonado, Punta del Leste, Piriápolis, Atlântida e Montevidéu.

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Percorremos mais de 400 km em solo uruguaio com pouquíssimas elevações, a geografia uruguaia é relativamente plana. Para se ter uma ideia passamos aos pés do Cerro Pan de Azúcar, que está a apenas 423 metros acima do nível do mar e é o terceiro local mais alto do país. Não se engane achando que por ser plano é fácil: isso depende muito da direção do vento. Nos primeiros dias pedalando no Uruguai fomos apresentados ao vento minuano e descobrimos que às vezes é preciso pedalar na descida para não parar. Isso mesmo! Em descidas suaves e no plano era preciso pedalar em marcha leve tamanha a força do vento contrário. Mas não pegamos muitos dias com vento contrário e pudemos aproveitar bastante a costa do Uruguai.

Lugares visitados

Os parques nacionais são excelentes, preparados para receber todo o tipo de turistas. Geralmente tem de campings a aluguel de cabanas. O Parque Nacional e a Fortaleza de Santa Teresa são paradas obrigatórias. Na costa existe um mirante para observar as baleias que passam bem perto nos períodos de migração. Infelizmente fomos fora da época e não vimos nenhuma, mas o parque em si já é bonito.

A praia de Punta del Diablo é point de surfistas e da moçada jovem no verão. Lotada de hostels e baladas, é o lugar para quem busca agito. Mais adiante o Parque Nacional de Cabo Polônio é um lugar bem mais rústico, com uma vilinha encravada em meio às dunas e o mar, ao lado de uma colônia de lobos marinhos e com um majestoso farol. Se chega pelas dunas em caminhões 4×4. Lá ficamos dois dias em um hostel de madeira e com energia eólica; é proibido acampar por ser área de preservação. As praias no geral são legais, mas a água é gelada, se comparada com os padrões brasileiros.

La Pedrera e La Paloma são duas cidadezinhas praianas bem charmosas, cheias de casas de veraneio de uruguaios e argentinos. La Pedrera fica suspensa em um costão rochoso e atrai amantes de windsurfe que deslizam de um lado para o outro em algumas das praias. Em La Paloma, além da praia e dos mercadinhos de artesanatos, fomos ao farol do Cabo de Santa Maria, que tem um vista bonita da costa.

Passamos por Punta del Leste e dormimos em Maldonado, para gastar menos. Punta é uma cidade chique e cara para cicloturistas, com seus calçadões à beira da praia, lojas de grife, restaurantes e hotéis. Como não era o tipo de cidade que nos atraía a atenção, seguimos pedalando.

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Piriápolis está entre o Oceano Atlântico e a foz do Rio da Prata. É uma cidade interessante, construída a partir da visão de um homem que a transformou em uma balneário badalado antes de Punta del Leste. Uma visitinha ao cassino do Hotel Argentino e uma saída à noite para comer um assado uruguaio são programas para se fazer no calçadão à beira-mar.

Atlântida foi nossa última parada antes de Montevidéu. Um cidadezinha peculiar por sua praia bosqueada: parte da orla é coberta por um bosque que separa a cidade da praia, de modo que se pode aproveitar a sombra das árvores e a brisa do mar!

Saímos cedo de Atlântida para chegar a Montevidéu durante o dia. Logo que passamos o último pedágio pegamos à esquerda e seguimos pela beira-mar. Uma via um pouco desorganizada no início, mas que logo começa a ser margeada por um extenso calçadão que nos levou até o coração da capital uruguaia. São trinta quilômetros com a praia sempre ao lado. Bicicletas, corredores, idosos, pescadores, crianças, skatistas, enfim, uma diversidade de pessoas que usam o calçadão. Ficamos três dias em Montevidéu, indo a museus, restaurantes, livrarias, igrejas, feiras livres, e ao calçadão nos finais de tarde, batendo pernas! A sugestão é ter nas mãos um guia de viagens como Lonely Planet e ir conferindo algumas das atrações da cidade. Tenho certeza que quem não conhece vai se surpreender com Montevidéu.

A viagem, no geral, foi bem leve. Acordávamos cedo, ou para pegar a estrada, ou para conhecer um pouco da cidade onde estávamos. Na hora do almoço, se estávamos em um lugar legal, esticávamos a parada e íamos andar pelo lugar. Da mesma forma onde dormíamos: se chegávamos cedo, largávamos tudo no alojamento e íamos andar, se chegávamos mais tarde, saíamos para jantar e no outro dia a amanhã era de reconhecimento do local. Tudo em um clima bem tranquilo, o que garantiu que ficássemos muito felizes ao final de cerca de 700 km percorridos em 15 dias. Como acabamos parando cinco dias em Cabo Polônio (2) e Montevidéu (3), pedalamos apenas 10 dias, uma viagem realmente leve e gostosa de fazer!

Eu voltei ao Brasil descansado, e com um bom exemplo dado pelo meu tio no auge dos seus quase 70 anos. Entendi que se eu quero envelhecer com saúde física e mental, pedalando e viajando, esta decisão é minha, mas preciso tomá-la desde agora.

© Tássio Franchi