Desembarcamos no Aeroporto de Malpensa – Milão. Apesar de já ter estado ali outras vezes, para mim um novo universo estava se abrindo: dessa vez tinha trazido a bike! Não dependia mais de ônibus ou trens para sair dali.

No próprio aeroporto já montamos as bikes e começamos a pedir informação do melhor caminho a seguir. Nosso primeiro destino era a cidade de Vigevano, cerca de 50 km a sudoeste do aeroporto. Já sabíamos que saindo dali cairíamos direto na autopista, provavelmente proibida para bicicletas e lotada de carros. Perguntamos para guardas, guias de turismo e motoristas: para todos eles o único e lógico caminho seria a autopista mesmo. Até os mapas que conseguimos só mostravam essa alternativa. Claro, são feitos para quem vai de carro…

Decidimos seguir e tentar encontrar o caminho por nós mesmos. Além da experiência do Olinto, contávamos com o meu “italiano” paulistano e não seria difícil se fazer entender pelo caminho. Saímos do aeroporto e já demos de cara com a rotatória para a autopista. Na mesma rotatória havia uma saída que seguia para uma pequena vila, bem ao lado do aeroporto. Seguindo por ali logo encontramos um rapaz de bike e fomos direto pedir informação. Enzo foi categórico: “é só seguir pelos canais do Rio Ticino!”. Como era um dia de feriado, ele estava passeando por ali e resolveu nos acompanhar, indicando o caminho até os canais. Como quase tudo na Itália, esses canais também tem uma história, que Enzo nos contou enquanto pedalávamos: “estes canais foram reformados por Leonardo da Vinci para transportar os mármores para a construção da Catedral de Milão”. Pedalamos um pouco juntos pelo canal principal, e então Enzo se despediu de nós, já estava na hora dele voltar para casa. Seguimos pelo canal observando o movimento suave das águas pelo seu leito, e comecei a pensar sobre a história desse lugar.

© Rafaela Asprino e Antonio Olinto

Os canais do Rio Ticino foram abertos no século XII para transportar água, irrigar e abastecer as pequenas vilas da região de Milão. O curso artificial mudou de nome várias vezes e hoje é chamado de Naviglio Grande. Em 1272, cem anos mais tarde, os canais foram ampliados e aprofundados para permitir a navegação; a partir de então passaram a ter importância fundamental no transporte de mercadorias entre o Lago Maggiore e a cidade de Milão, sendo considerados os primeiros canais navegáveis do mundo moderno. No século XVIII o transporte de passageiros pelos canais passou a ser regular e frequente.

Leonardo da Vinci chega em Milão no final do séc XV, numa época de grandes realizações hidráulicas. Apesar dele não ter sido o inventor das eclusas, aperfeiçoou o sistema existente. Eclusa, vulgarmente conhecida como “elevador de navio”, é um sistema utilizado para vencer um desnível de água, tanto para subir ou descer um rio ou canal. Até então, no sistema utilizado, quando se abriam as comportas para a passagem da água, esta vinha com grande pressão e quase caía para dentro dos barcos. Com a engenhosidade que lhe era peculiar, Leonardo criou o portão inferior. Através desse portão é que a água entra e sai, fazendo subir ou baixar o nível, controlando o ímpeto das águas. Esse sistema foi utilizado na ligação entre o Naviglio Grande e o canal que conduzia os mármores até o canteiro de obras da Catedral de Milão.

O interessante é que o mármore não pertencia à tradição arquitetônica milanesa, que utilizava o tijolo. A possibilidade de transportar o material por via fluvial e pelos canais é que viabilizou a utilização do mármore da Cava de Candoglia, Comuna de Mergozzo, reduzindo drasticamente as despesas com transporte. Os blocos eram carregados com carro de boi até o rio Ticino, e depois pelo Naviglio Grande até a Porta Ticinese em Milão, percorrendo mais de 100 km em via fluvial. De lá foi construído um canal de ligação até o canteiro de obras, onde o mármore era descarregado. A utilização do mármore condicionou não só a arquitetura da Catedral, mas principalmente a parte ornamental. Precioso e rico, o material obedecia ao estilo gótico “internacional” que estava sendo utilizado nas catedrais da época.

© Rafaela Asprino e Antonio Olinto

Leonardo da Vinci também construiu outros canais que ligavam os canais do Rio Ticino até o Rio Ada, passando por dentro da cidade de Milão, e por isso hoje todos esses canais são chamados genericamente de “Canais de Leonardo”.

No século XX, com os novos sistemas de transporte, em especial as linhas de trem, os canais perderam a importância como via de transporte de mercadorias. Na década de 70 a região foi transformada em parque e na década de 80 foram construídas as ciclovias ao longo dos canais, passando a ter importância fundamental para nós, cicloturistas!

O tema “ciclovia” está na moda, muito está se falando sobre como e onde traçar esses caminhos para quem vai de bike. Com um pouco mais de atenção, podemos notar que no Brasil existem muitas estruturas praticamente abandonadas que poderiam ser adaptadas e transformadas em ciclovias, caminhos alternativos para os cicloturistas, longe dos carros. Um exemplo típico são as linhas ferroviárias.

No caso do Parque Ticino, além da ciclovia, há uma estrutura de parque criada sobre o caminho dos canais e do próprio rio, aproveitando a densa mata nativa. O Consórcio “Parco Lombardo del Valle del Ticino” foi fundado em 1974, tem cerca de 90.000 ha de extensão ao longo do Rio Ticino, incluindo 46 cidades das províncias de Milão, Varese e Pavia. O parque promove o desenvolvimento turístico e social sustentável do território, com atividades culturais e recreativas.

Apesar de não serem mais a rota comercial, os canais permanecem bem cuidados e úteis. Além de melhorar a qualidade de vida de quem mora na área, o parque contribui para a manutenção da flora e fauna da região. Não dá para descrever a alegria de encontrar um lugar assim para pedalar quando estamos viajando perto de grandes cidades. É quase como um oásis no meio do deserto, só que no sentido inverso, um caminho agradável paralelo às autopistas e cidades cheias de carros.

Depois de mais de 40 km de ciclovia plana em meio às árvores, seguindo os “Canais de Leonardo”, chegamos ao nosso destino. No caminho algumas mansões e jardins nos faziam viajar no tempo e imaginar a Itália Renascentista do séc XVI. O mais incrível foi pedalar pelos antigos canais transformados em parque e ciclovia, repletos de italianos desfrutando o belo dia de sol. Em um dos dias em que ficamos em Vigevano, com as bikes vazias, seguimos pelo Naviglio Grande até o centro de Milão, visitamos a Catedral e outros pontos históricos e turísticos da cidade.

Fica aqui uma dica para quem pensa em viajar pela Europa: a passagem aérea para Milão atualmente está entre as mais econômicas. Do aeroporto de Malpensa é possível chegar até o centro de Milão pelas ciclovias dos canais, ou então seguir tanto para o norte quanto para o sul da Itália sem passar pela cidade ou por autopistas.


O Naviglio Grande

© Rafaela Asprino e Antonio Olinto

Canal é uma vala artificial construída para desviar o leito de um rio e funciona com a própria gravidade, a partir do desnível entre o ponto de início e fim. Na antiga Mesopotâmia, 5000 anos aC, as pequenas vilas entre os rios Tigre e Eufrates sofriam com a sazoneidade dos rios. Na época das cheias, o mesmo rio que garantia a fertilidade da região causava grandes enchentes e destruição. Assim, já naquela época, desenvolveram a técnica dos canais e diques para controlar a água dos rios, ampliando as áreas férteis.

Na América do Sul os Incas desenvolveram o mesmo sistema para captar as águas de nascente, no sopé das montanhas andinas. Os canais cruzavam as cidades, fornecendo água de boa qualidade em frente às casas. Hoje o mesmo sistema é utilizado na cidade de Mendonza, Argentina.

O Naviglio Grande é o canal mais antigo de Milão, navegável desde 1272.

Tem 48,5 km de extensão, largura entre 12 e 40 m, de 1 a 3,8 m de profundidade e um desnível de 33,5 m.

Uma Eclusa é…

Eclusa é uma obra de engenharia hidráulica que consiste numa construção que permite que barcos subam ou desçam os rios ou mares em locais onde há desníveis (barragem, quedas de água ou corredeiras).

Eclusas funcionam como degraus ou elevadores para navios: há duas comportas separando os dois níveis do rio. Quando a embarcação precisa subir o rio ela entra pela comporta da eclusa à jusante e fica no reservatório (ou caldeira), que é, então, enchido com água elevando a embarcação para que possa atingir o nível mais alto, à montante. Quando a embarcação precisa descer o rio ela entra pela comporta da eclusa à montante e permanece no reservatório enquanto ele é esvaziado, descendo a embarcação até o nível mais baixo do rio. As comportas abrem-se para a entrada do navio. Observe que a água está ao mesmo nível do lado do navio. Após a entrada, a câmara da eclusa será esvaziada e o navio estará ao nível das águas da comporta ao fundo. Seu objetivo é, portanto, permitir a navegação. Um dos processos de enchimento do reservatório pode ser gravitacional, de modo que não é necessário o uso de bombas d’água e motores.

A Catedral de Milão

© Rafaela Asprino e Antonio Olinto

A Catedral de Milão foi construída em uma área que provavelmente, desde o séc III, constitui o centro religioso cristão da cidade. Sob a Catedral ainda podem ser vistas as ruínas do que um dia foram basílicas e batistérios. Começou a ser construída em 1386, seguindo o estilo gótico da lombardia. Somente em 1813, com a inauguração da fachada, é que a construção foi considerada finalizada.

Mais de 70 arquitetos e engenheiros passaram pelas obras da Catedral desde o início da construção até o séc XX.

A Catedral é um dos mais complexos templos góticos do mundo, suas dimensões excepcionais (158 m de comprimento, 93 m de largura e 108,5 m de altura no ponto mais alto) lhe rende o título de terceira maior igreja católica do mundo, perdendo somente para a Basílica de São Pedro em Roma e a Catedral de Sevilha.

Números da Catedral

  • Volume aproximado: 440.000 m³
  • Peso aproximado: 325.000 t
  • Superfície coberta: 11.700 m²
  • Altura da fachada: 56,5 m
  • Altura da nave principal: 45 m
  • Comprimento externo: 158 m
  • Comprimento interno: 148 m
  • Comprimento da fachada: 67,9 m
  • Largura externa: 93 m
  • Largura interna: 66 m
  • Número de colunas internas: 42
  • Altura das colunas: 24 m
  • Diâmetro das colunas internas: 3,4 m
  • Número de agulhas: 135
  • Número de estátuas: 3400
  • Número de estátuas gigantes: 96
  • Numero de gárgulas: 150
  • Janelas: 164
  • Altura das janelas da abside: 24 m
  • Área de vitrais: 1700 m²
  • Cenas ilustradas: 3600 aproximadamente
  • Degraus até o primeiro terraço: 158
  • Degraus até o balcão das agulhas: 500
  • Portas na fachada: 5