Raquel Jorge relata sobre paisagens incríveis que teve a oportunidade de conhecer durante sua cicloviagem pela North Sea Cycle Route. Sozinha, ela pedalou 6.200 km passando por Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica e Inglaterra.

Raquel, em uma cicloviagem de 6.200 km passando por países como Noruega e Alemanha, você deve ter visto muitas paisagens incríveis. Quais foram as belezas naturais que mais lhe impressionaram?

A sensação de transitar por estes países é a de que você está a pedalar por pinturas. Em cada curva do caminho o queixo cai e os suspiros de admiração, prazer e encantamento são constantes. Você tenta absorver tudo, como se a visão, o olfato, o paladar, o tato e o HD da memória não fossem suficientes para registrar e sentir tudo o que você está vivenciando. Digo isso para esclarecer porque é tão difícil, para mim, selecionar a seguir apenas alguns dos lugares que conheci, pois cada um dos 110 dias que passei na estrada foi único e mágico.

Odda e fiordes. © Raquel Jorge

Trolltunga

A língua do Troll é uma pedra no topo da montanha, que mais parece um enorme trampolim. Lá embaixo um lago de águas azuis. Um lugar mágico onde tudo é sagrado, o único barulho é o vento que faz e você senta e olha ao redor: sobre você nuvens claras e escuras dançam permitindo, de vez em quando, o azul do céu se mostrar. E ao seu lado, correm filetes de água, decorrentes do degelo primaveril.

Preikestolen. © Raquel Jorge

O hiking até Trolltunga (A Língua do Troll) sai de Odda (22 km ida e volta), em um percurso puxado e que requer uma certa técnica em escalada sobre montanha nevada. Mas não foi essa a maior dificuldade que enfrentamos. Eu e minha guia já havíamos subido 9 km quando dois americanos vieram correndo em nossa direção. Uns 800 m à frente, uma garota foi encher a garrafa de água na queda de uma cachoeira, a neve sob ela cedeu e ela caiu em um buraco de mais de 2 m de altura. Juntei-me às outras pessoas, e em pouco tempo éramos 15. Fizemos uma corrente humana e a tiramos do buraco. Ela já estava em um estado avançado de hipotermia, inconsciente, convulsionando. Tentamos aquecê-la a qualquer custo. Ela ficou sem pulso (ou nosso próprio frio nos impediu de senti-lo) e começamos a nos revezar no CPR. Quando o helicóptero finalmente chegou, injetaram adrenalina, entubaram com oxigênio e a levaram.

Estávamos a 1 km de Trotullga e quando o helicóptero partiu, rolou um clima de: “vamos até o fim depois de tudo isso”? Todo mundo molhado, com um frio inexplicável e um certo constrangimento em pensar no prazer do hiking depois do que havíamos vivido…. Daí pensamos coletivamente: falta só um quilômetro. Resolvemos seguir em frente! Quando chegamos lá, naquele lugar mágico, o sol surgiu e os ânimos melhoraram, pois fizemos justamente o que devemos sempre fazer: celebramos a vida! Um mês depois, recebi uma mensagem da minha guia dizendo que a garota já havia recebido alta do hospital. Com o coração leve, pensei: nossos esforços não foram em vão!

Odda e os fiordes

Odda é simplesmente uma pintura. Difícil descrever a geografia deste lugar. Há um baita lago azul que afunila e vira uma enorme corredeira que despenca por aproximadamente 2 km até se abrir em outro enorme lago. A cidade se formou em volta desta corredeira e às margens do lago de baixo. Tudo isso, é claro, emoldurado por montanhas feitas de rocha, enfeitadas com florestas de araucárias, inúmeras cachoeiras e, apesar de ser quase verão, muita neve.

O vilarejo é pequeno e lindo. Em um sábado de sol encontrei um clima de paz. Famílias passeando, almoçando ao ar livre, todos se cumprimentando e colocando a prosa em dia. Mas Odda é também uma cidade que recebe muitos estrangeiros, por ser o ponto de partida para o hiking que leva a Trolltunga. São dois grupos distintos dividindo o mesmo espaço sem se misturar. Os moradores de tão belo e pacato vilarejo, e os estrangeiros, embasbacados com a beleza do lugar e apontando suas câmeras para todos os lados.

Costa Oeste da Dinamarca.© Raquel Jorge

Preikestolen

Preikestolen, ou A Pedra do Púlpito, como também é conhecida, não é uma atração turística! O Empire State, a Torre Eiffel e o London Eye são atrações turísticas. Preikestolen é um santuário! É a humanidade sendo presenteada com algo que sequer consegue compreender, mas que nos faz conscientes de o quanto somos pequenos, de o quanto o tempo que passamos neste planeta é efêmero.

Molde. © Raquel Jorge

A costa oeste da Dinamarca

São aproximadamente 500 km de absoluta beleza, da cidade mais ao norte do país, Skagen, até chegar em Ribe, mais ao sul, sempre com o Mar do Norte do seu lado direito. Nunca pensei que a Dinamarca tivesse uma costa tão bela, com praias lindas, areia branca, dunas, florestas e milhares de aves. A rota segue pela costa e passa por um parque maravilhoso, chamado Thy National Park. Durante as três horas que passei pedalando pelas trilhas e singletracks do parque não cruzei com um único ser humano. Confesso que é em lugares assim, remotos e naturais, onde me sinto mais feliz, mais em paz, mais em casa. Mais ao sul, após passar por Thyboron, peguei um braço de terra bem longo, de um lado o mar, do outro um lago. E entre ambos a via exclusiva para ciclistas. Levei três dias para percorrer o trecho entre Harboore e a belíssima cidade de Ribe, a pérola da Dinamarca.

Atlantic Ocean Road. © Raquel Jorge

Nationaal Park Zuid-Kennemerland (Holanda)

Há algo muito interessante sobre as ciclorrotas da Holanda (já havia notado isso na Dinamarca e na Alemanha), elas te tiram da estrada tanto quanto é possível, por isso muitos trechos são por parques ou pela região rural. Além disso, elas dão um jeito de você passar por tudo que pode ser considerado “interessante”, como um dique, um moinho, um vilarejo pitoresco ou uma eclusa, mesmo que isso adicione vários quilômetros que poderiam ser evitados. Mas acredito que a ideia é: quem está viajando de bicicleta não está com pressa, por que “evitar” quilômetros que vão te mostrar algo legal?

© Raquel Jorge

Aprendi a amar este conceito, mesmo quando estava cansada e pensava no quanto seria bom simplesmente seguir em linha reta, no fim, sempre valeu a pena! O que este parque me proporcionou foi mais do que belas e tranquilas paisagens. Estava em um singletrack que cortava uma relva quando vi dois veados maravilhosos, com galhadas intactas. O coração saltou e fiquei ali paralisada, admirando a grandeza e a dignidade daqueles animais. Entre nós, nenhuma cerca ou grade. Assim como eu, eles também estavam livres. Mais à frente me deparei com uma família inteira deles, estavam se alimentando em uma clareira. E se isso não fosse suficiente, já perto da saída do parque, um congestionamento de um bicho que nem sei o nome, da família dos bovinos, mas com chifres enormes e franjas longas e ruivas – simplesmente maravilhosos. Fiquei parada uns bons 10 minutos antes de criar coragem para passar por eles.

Nationaal Park Zuidkennemerland. © Raquel Jorge
© Raquel Jorge

As florestas encantadas e os pores do sol na Alemanha

Perguntaram recentemente se, ao cruzar a Alemanha, não tive vontade de conhecer seus famosos castelos. A resposta: não, vontade zero. Castelos deixaram de me encantar há muitos anos. Acho eles lindos e pitorescos, admiro sua arquitetura, mas não mudo mais minha rota para esbarrar em um. Eles não passam da prova concreta da desigualdade histórica. Da exploração do homem sobre o homem. O que me emocionou de verdade foi atravessar as florestas do norte do país. Ouvi dizer que as florestas alemãs não são selvagens. Após devastarem o país, os alemães replantaram todas, incluindo a famosa Floresta Negra. Mas isso não diminuiu em nada minha admiração pela beleza que encontrei, ou meu encantamento ao pedalar por elas. A palavra é bem essa: encantamento, pois são, sem dúvida, florestas encantadas. Tudo nelas é mágico. Os raios de sol infiltrados entre os galhos e folhas, as cores, os perfumes e os sons que delas emanam. Foi também na Alemanha que fui presenteada com os mais belos pores de sol.

Brugge. © Raquel Jorge

E quais foram as paisagens culturais que mais lhe agradaram?

Atlantic Ocean Road (Noruega)

Ou, como passei a chamá-la: Atlantic Dreamy Road!

O paraíso de quem ama a estrada. A união perfeita entre a arquitetura de Deus e a arquitetura do homem. Beleza que não cabe nos olhos, mas que invade a alma, como as ondas violentas e gélidas que entram pelo Mar do Norte e as lágrimas quentes que escorrem ao se deparar com tamanha grandeza.

Assim é a Atlantic Ocean Road. Imponente, bela e muitas vezes inóspita. Um lugar em que você fica completamente entregue ao tempo, ao vento e à temperatura. Mas acima de tudo, à beleza. Quanto a pedalar por ela, dizem que o vento é hostil, mas não foi o que vivenciei. Saí de Kristiansund, a cidade mais próxima, mas dei de cara com um túnel logo na saída da cidade. Tive que atravessá-lo em um ônibus (pedestres e ciclistas são proibidos de atravessar túneis) que me deixou do outro lado, onde já era permitido pedalar. Da saída do túnel até o início da Atlantic Road foram 24 km. A estrada, de número 64, é simplesmente uma pintura. Ela continua após percorrer as pontes e ilhas, e vai até Molde (mais 51 km), um vilarejo protegido por montanhas nevadas e adornado por lagos azuis, considerado um paraíso por mochileiros do mundo todo.

© Raquel Jorge

Centro Histórico de Brugge (Bélgica)

Brugge é tida como uma das cidades mais lindas do mundo e é Patrimônio da Humanidade protegida pela UNESCO. Eu já conhecia, mas entrar no centro histórico pedalando teve outro sabor. Mudou muito desde minha última visita. Estava mais cheia de gente, mais suja, mais consumista. Ainda assim, linda e com cheiro de chocolate…. belga!

“Viajar é, para mim, a experiência mais enriquecedora que existe, onde você exercita intensamente todos os seus sentidos.”

© Raquel Jorge

Entre uma catedral e outra, muitos turistas entrando e saindo das infinitas lojinhas que davam para as estreitas ruas de paralelepípedo. Estava tão distante deste mundo – urbano e consumista, dos apelos publicitários, das falsas necessidades – que não me senti mais parte dele. Foi como se eu estivesse observando de fora, de outra dimensão, de dentro deste lugar em que me encontrava onde nada disso importava. Onde a vontade de possuir, comprar e ter simplesmente não se manifestava.

Lembro de um livro que li há muitos anos, “Vida Líquida”, do Zygmund Bauman, onde ele fala sobre a forma como nos preenchemos. Neste mundo em que tudo é obsoleto, onde nada é feito para durar, entramos em um círculo vicioso de consumir e vivenciar coisas e relações efêmeras, onde o prazer existe mas não dura e logo voltamos a sentir o vazio, retornando assim ao início do ciclo. Sábios são aqueles que entendem isso e se alimentam de conhecimento e de emoções sólidas, que entram e ficam. Dessa forma, onde antes era vazio, aos poucos vai se preenchendo de algo que é verdadeiro e consistente. Algo que jamais perdemos e que só tende a nos deixar mais ricos e paradoxalmente, mais leves.

Viajar é, para mim, a experiência mais enriquecedora que existe, onde você exercita intensamente todos os seus sentidos. E olhando para trás, lembrando de todos os lugares, dos sorrisos, do comportamento das pessoas em diferentes lugares do mundo, dos cheiros, dos sabores, das cores, das belezas e tristezas que presenciei por aí, concluo: minha bagagem é leve, mas tem um mundo inteiro dentro de mim!

© Raquel Jorge
O Farol de Lonstrup.© Raquel Jorge

O Farol de Lonstrup

O pedal até o vilarejo de Lonstrup, na Dinamarca, foi tranquilo, apesar do vento contra. Faltavam uns 2 km para entrar na cidade, quando eis que no fim da curva surge na minha frente um moinho lindo. Na estrada um desenho de uma xícara de café. A sensação foi a de ter encontrado um oásis no meio do deserto. Parei e o lugar não poderia ser mais pitoresco. Uma casa de tijolinhos brancos no pé do moinho, na varanda, de grama bem cortada, mesinhas com toalhas de retalhos coloridos e cadeiras de madeira. Dentro um café aconchegante, tudo de muito bom gosto cuidado por mocinhas bem treinadas.

Me alojei em um chalezinho no camping da cidade, 7 m² mais a varanda. Percebi que não precisava de mais que isso pra ser feliz. Fim de tarde fui de bike à procura do farol nas dunas. Achei. Vento absurdo e visual absolutamente lindo. E mais uma vez vi o sol mergulhar, vermelho, pra dentro do mar.

Bunkers Alemães de Lokken. © Raquel Jorge

Bunkers alemães de Lokken

Saí de Lonstrup, na Dinamarca, em direção ao vilarejo de Lokken. Tive a brilhante ideia de seguir pela praia. Muito bonito, muito bonito, mas haja perna pra pedalar na areia carregando mala e cuia com um vento que não queria ser meu amigo. Um pouco antes de chegar em Lokken, uma imagem inesperada. Uma praia linda cheia de bunkers de concreto cravados na areia. Parecia que haviam caído do céu. Não fazia a menor ideia de que este lugar existia. Fui procurar informações a respeito. Uma placa no alto da falésia explicava que eram bunkers alemães, construídos durante a Segunda Guerra e que faziam parte do “Atlantic Wall”. Uau. O queixo caiu… Fiquei ali bastante tempo, apreciando a imagem, meio bela, meio sinistra.

Londres. © Raquel Jorge

Londres

Não adianta, eu viajo, viajo, viajo e Londres continua sendo a cidade mais sensacional que eu conheço. O horizonte mudou um pouco desde minha última visita. Alguns prédios extremamente modernos e hightechs. Mas olhando de perto, continuava a mesma Londres charmosa e irreverente em que eu vivi.

Fui até a catedral de St. Paul com o intuito de acender uma vela e agradecer pela maravilhosa viagem. Cheguei lá. Tudo muito lindo. Peguei a fila para entrar. Eu lembrava que não era gratuito entrar nesta casa de Deus, mas quase caí de costas quando vi o preço: 18 libras! O quê? Nem que a vaca faça cof cof my friends. Dei meia volta com zero de culpa e saí pensando: esta não é a casa de Deus, esta é a casa do Tio Patinhas!

© Raquel Jorge

Eu havia separado 5 libras para velas, mesmo sabendo que não dá para mensurar gratidão. Atravessei a Milenium Bridge convicta de que empregaria este valor de uma forma mais verdadeira. Fui à Tate, caminhei ao longo do Tâmisa e resolvi atravessar a ponte para Charing Cross. Após o último degrau vi um rapaz sentado no chão com um cartaz que dizia: “sem abrigo, com fome. Por favor, me ajude”. Olhei para aquela imagem de total abandono e não tive dúvidas: coloquei as 5 libras na mão dele e desejei força. Ele sorriu com a alma e apenas disse: “Deus te abençoe”. E eu pensei, ele já faz isso! Sei que isso não vai resolver o problema dele, mas ao menos neste dia ele comeu. Ou bebeu…

Londres é cidade mais cosmopolita que eu conheço. Na mesma calçada caminham uma noiva, um transexual, uma gueixa, um executivo e mulheres de burca. De um lado um grupo joga capoeira e do outro um oriental toca violino. E aí você se atrasa para encontrar os amigos porque Leicester Square está muvucada com a première do novo filme da Drew Barrymore e enquanto ela desfila pelo tapete vermelho você tenta passar pela multidão. E aí você saí do pub e caminha pelo West End, passa pelo teatro no momento em que a Nicole Kidman está no palco. Depois pensa em entrar no Ronnie Scott onde a família The Coors está se apresentando, mas desiste porque já está tarde e você está pobre de marré, marré deci!

© Raquel Jorge