O que passa na cabeça antes de começar uma volta ao mundo de bicicleta?

Zagreb, Croácia, 20 de setembro de 2018.
Há dois anos e meio comecei o Projeto Roda Mundo, uma volta pelo globo com a Dulcinéia, minha adorável e valente bicicleta de bambu. Em quase dois anos e meio e mais de 24 mil km, já cruzamos a África de ponta a ponta, quase toda a Europa e seguimos para o Oriente Médio. Passou voando.

Compartilho com vocês o primeiro texto que escrevi sobre o Roda Mundo, quando tudo era incerteza, um adorável comichão de nervoso e felicidade, como o primeiro amor adolescente.

Entre sementes e frutos, eis tudo o que tenho. Nunca me senti tão completo, ainda que com uma interminável sede do que nem sei que existe e já quero. Sinto saudades apenas do que ainda não conheci.

Rio de Janeiro, 04 de maio de 2016.

Escrevo agora há 30 dias antes de começar uma volta ao mundo de bicicleta. Sempre quis saber o que se passa na cabeça de alguém antes de algo assim, mas não há tantos para quem perguntar. Deixo esse texto para que uma nova pessoa o leia daqui há alguns anos, ainda que seja eu mesmo.

Lembro de uma mulher que amava folhas secas. Se divertia com o barulho, as cócegas nos pés, esperava ansiosa pelas manhãs de outono. Ela dançava por entre as folhas, que nem bailarina com a ponta dos pés, ou saltava bruscamente e ria sozinha com o som recém-criado. Cada folha soava diferente, e naquelas notas ela compunha sua música, desajeitada e magistral. Ela me olhava e sorria, marota e desafiante, com um rosto iluminado como poucas vezes vi ou tive. Eu apenas a olhava, sério, mal sabia ela que por dentro eu pensava sobre tudo isso que escrevo agora. Nunca lhe disse nada, mas sempre pensei em chegar em casa com um monte de folhas secas e espalhar pelo quarto, só pra ela. Passou o outono, não veio outro, pois no que deixei para trás estava ela também.

Invejo profundamente quem é feliz com folhas secas. Daqui, do alto de minha megalomania compulsiva, nada além do impossível me deixa feliz. Não basta ser difícil, precisa parecer idiota de tão improvável, até que aquilo se faz real e todos descobrem que dava. Me emociona a descrença a ser vencida, pois de fato é difícil imaginar uma grande árvore ao olhar para a sua semente. Não sou um bom admirador de flores, passo por elas e só lhes noto o cheiro, mas gosto de fazê-las florescer. Do outro lado, sei que alguém é gigantemente mais feliz do que eu, apenas com folhas secas. Eu preciso conquistar o mundo, ela precisa apenas das folhas no outono, ou do cheiro de jasmim da primavera, ou do sol alaranjado no fim das tardes de verão, ou do contraste de cores no ameno inverno carioca. Me pergunto se mais vale ser feliz ou realizar feitos, nunca encontrei a resposta, mas sei que só a segunda opção me deixa feliz, é uma adorável obsessão.

Percebo hoje que o sonho está na semente, mas a felicidade vem do fruto. É tudo tão distante e tão próximo quanto a tinta e um quadro.

Em 30 dias, nada do que eu conheço vai fazer parte da minha realidade, é como se eu pulasse de um quadrinho para me jogar num papel em branco. Vou fazendo novas linhas com os pneus de Dulcinéia, ou aqui em palavras. Saio absolutamente desancorado, ninguém me espera e não espero ninguém, e me espanta notar que isso é absolutamente prazeroso. Vou para onde ninguém sabe meu nome, rumo a pessoas e lugares que nem sei que existem, é como botar flores em um cartucho e fazer da vida uma roleta russa.

Algum dia vou reler esse texto, para saber qual foi o fruto da semente que planto agora. Me espanta perceber que isso pouco importa.