Conforme deixava as tarefas de advogado e enfrentava a realidade de viver como um nômade fazendo uma volta ao mundo de bicicleta, uma coisa ficou bem clara para mim: a parte mais importante para a realização da minha grande viagem era meu próprio corpo, o motor da bicicleta.

Em meu sedentário ofício de advogado, o intelecto é que impunha o ritmo; mesmo cansado, com sono e resfriado, tinha que terminar a contestação para não perder o prazo, assim, seguia trabalhando madrugada adentro. Este tipo de conduta aliada a tantos outros conceitos, inclusive de moral e higiene, transforma-nos em seres um tanto quanto desconectados de nosso próprio corpo.

Imagine viajar com um carro sem nenhum instrumento de medição e sem poder sequer ouvir o barulho do motor. Como fazer para atravessar uma serra? As chances do motor ferver seriam grandes. Como saber quanto ainda resta de combustível sem marcador? Como saber a autonomia sem odômetro?

No motor do carro existe um sensor de temperatura em contato com a água que refrigera todo o sistema. Quando o sensor detecta que a água está muito quente liga um ventilador auxiliar para tentar resfriar o radiador. Se isto não for o bastante e a água começar a aquecer demais, no momento em que entrar em ebulição todo o sistema colapsa. Antes de “fundir” o motor, que seria derreter peças internas como pistão, só a pressão e o calor já são capazes de romper uma junta e/ou empenar o cabeçote (parte superior do motor). Neste caso, será preciso parar o carro em uma oficina por pelo menos uma semana, retirar o cabeçote, mandar aplainar ou substituí-lo.

“Aos poucos fui reaprendendo a sentir cada impulso, cada dor, cada sinal e seu significado para melhor agir e não comprometer a integridade da máquina responsável para me levar tão longe e trazer de volta.”

© Antonio Olinto e Rafaela Asprino

Qualquer motorista sabe disto e em uma serra fica atento ao indicador de temperatura, se chegar perto dos 100 ⁰C é necessário parar o veículo imediatamente. O corpo possui sensores precisos como um termômetro e limites de “fervura”. Para mim, o sensor mais importante é a dor.

A dor indica qual órgão deve ser imobilizado para a reabilitação, por isso, sempre que começo a treinar forte para uma grande viagem fico feliz quando meus músculos doem ao final do dia. Sinto a endorfina se espalhar por meu corpo. Durmo muito, às vezes até 10 horas por noite. No outro dia me sinto renovado e sei que estou ficando mais forte e preparado a cada treino.

Por outro lado, uma dor no joelho não é para ser suportada. Ao invés de marcar desenvolvimento, ela marca postura errada na bicicleta (talvez selim muito baixo). A dor de uma assadura na “parte sentante” é ainda pior, pois qualquer abuso poderá lesionar a pele que neste caso demora muito para se restabelecer.

É difícil dizer o ponto exato em que a dor significa desenvolvimento e devemos suportá-la, o limite de cada ser humano é diferente e para deixar tudo mais complexo, todos nós possuímos uma flexibilidade diferente das máquinas.

© Antonio Olinto e Rafaela Asprino

Um indivíduo saudável pode transformar-se com três meses de treino sério de um motor 1.000cc carburado em um arrojado 2.0 injeção eletrônica. Ou seja, em uma mesma subida que no princípio do treinamento o motor pedia segunda e quase fervia, com o treino dá para subir em quarta, folgado!

A natureza humana é a de um antigo caçador coletor que andava o dia todo em busca de comida. O homem primitivo procurava com muita dificuldade o que era vital, açucares e gorduras. O homem moderno simplesmente inverteu este sistema transformando-se em um ser sedentário que consome demasiadamente açucares e gorduras. Quando começamos a treinar, mudamos os parâmetros de nosso organismo que passa a funcionar melhor em todas as áreas, inclusive imunologicamente falando.

© Antonio Olinto e Rafaela Asprino

O maior perigo, para quem está começando a treinar, principalmente com a chegada do inverno, é “ferver seu motor”. Não me refiro à alta temperatura, mas sim ao colapso do sistema devido ao esforço demasiado imposto em um corpo sem a devida preparação que acaba abrindo as portas para o vírus da gripe. Daí, se quiser voltar a ter a mesma performance, terá que fazer como os carros quando tem que trocar o cabeçote.

Ficar parado por uma semana, sem treinar e esperar seu corpo, por si só, combater o vírus. Quando puder voltar ao treinamento estará mais frio e será mais difícil recomeçar; por isto é tão importante perceber os sinais do corpo.

O dia a dia de uma viagem de bicicleta nos oferece muitos estímulos e empolgações. Em um único dia pedalamos por lugares fascinantes que  talvez nunca mais voltaremos a ver, conhecemos pessoas interessantes e quando chegamos em um local e já passou a hora do almoço, comemos qualquer coisa e voltamos ao pedal. Perto do final do dia cai uma chuva fria e a lama faz o percurso demorar mais do que prevíamos. Quando chegamos molhados em um abrigo estamos tão felizes por ter concretizado o percurso que nem percebemos os sensores de nosso corpo mostrando que a fome, o frio e sono já passaram do vermelho.

As táticas para um bom desempenho no cicloturismo não são iguais às utilizadas em competições de mountain bike. Estas geralmente são curtas e os participantes tentam dar tudo o que tem para chegar na frente. Se quiser ver as coisas como competição, o melhor é imaginar o cicloturismo como um rally. Não acredito que alguém dirigindo como o Ayrton Senna se daria muito bem fazendo o Paris – Dakar.

Veja o exemplo da Daniela Genovesi, a primeira mulher latino-americana campeã do Race Across America (4.800 km em 12 dias). Ela explica que, em grande parte, sua vitória é devido ao respeito que teve aos limites de seu corpo, que apesar de altamente capaz e treinado, necessitava de repouso periódico. Assim atuando, Daniela superou as pressões impostas pelas competidoras que a princípio andavam muito a sua frente, mas que no final acabaram definhando pelo cansaço, deixando para Daniela a primeira colocação. Se em um rally é importante respeitar o motor, imagine em uma aventura de verdade onde não dá nem para desistir da prova e voltar para casa… O mesmo motor que nos trouxe deverá levar-nos de volta.

Numa observação mais subjetiva da viagem de bicicleta percebemos também que se pedalarmos todos os dias perto do limite de nosso corpo, logo estaremos exaustos e tudo de novo que vemos ao redor parecerá cinza. Até o humor muda, tanto em relação às pessoas que conhecemos como aos nossos companheiros de viagem.

Não acredito na máxima: “você tem sempre que superar seus limites”. Acredito que o sedentarismo do homem moderno impõe limites muito aquém das capacidades de qualquer homem comum. É preciso encontrar e respeitar seu verdadeiro limite, pois sempre que ultrapassamos um limite real algo estará perdido, é como um motor que deverá trocar o cabeçote ou até mesmo ser recondicionado. Saber parar e descansar é bom para uma atleta de ponta como Daniela, imagine como é importante para um mortal comum como eu.

“Não acredito na máxima: “você tem sempre que superar seus limites”. É preciso encontrar e respeitar seu verdadeiro limite.”

© Antonio Olinto e Rafaela Asprino

A ciência está em reconhecer os sinais e capacidades de seu corpo. Já vi muitos afirmarem que para chegar até o Ushuaia é preciso ter um grande 4X4 como o deles, mas também já vi quem fizesse o mesmo circuito de Honda Biz (100cc). Seja qual for o tamanho do seu motor, acredito que bem cuidado e dentro do limite poderá chegar muito longe, tanto quanto seus sonhos podem ir.

Dicas de viagem

  • Combustível apropriado e de qualidade faz o motor rodar melhor (comer bem e saudável);
  • Verificar o nível de óleo e completar é bom, mas lembre-se que a troca do óleo deve ser feita no tempo certo, não adianta trocar o óleo só com 100.000 km (descansar adequadamente);
  • Os motores carburados geralmente soluçavam para pegar de manhã, mas mesmo os motores injetados não devem ser exigidos demais quando ainda estão frios (não force as pedaladas antes de estar propriamente aquecido);
  • Quem tem carro 1.000 sabe que acelerar em uma descida para aproveitar uma banguela ajuda na subida, mas se o motor começar a ferver devemos parar imediatamente e esperar esfriar (force no treino o bastante para desenvolver e não lesionar);
  • Caso seu motor tenha fervido, não deixe de verificar todos os sensores e as partes importantes, pode ser que a “cebolinha” esteja funcionando mal, talvez a válvula não esteja abrindo para circular a água ou a ventoinha está emperrada, enfim, tente ver de onde vem o problema (às vezes não compreendemos nossa baixa performance, pode ser o sol forte depois de uma noite fria, falta de açúcar circulante no corpo, uma noite mal dormida, o clima ruim que abala o moral ou mesmo aquelas famosas “falsas descidas” que aparentam ser fáceis mas são muito duras, e assim por diante…).