Pedalar em outros países, à primeira vista, pode parecer complicado e trabalhoso. É preciso determinação, muitos mapas na mão – sou adepta dos mapas impressos, então, não saio sem eles -, saber um pouco de mecânica de bike, noção de primeiros socorros, ler antes sobre as normas de trânsito do país que vai visitar… Mas acredite, é mais fácil do que pensamos – principalmente quando o retorno de tudo será uma viagem memorável. Desta vez, o país que escolhi para explorar de bicicleta foi a Inglaterra, mais especificamente o interior do país – pedalando através da National Cycle Network.

A National Cycle Network (NCN) é uma rede de caminhos seguros, livres de trânsito e tranquilos. Apesar do seu nome, não é exclusiva para os ciclistas. A NCN também é popular entre os caminhantes, corredores e cavaleiros. São rotas interligadas que passam por estradas vicinais, na zona rural e florestas. Ela conecta todo o Reino Unido – Irlanda do Norte, Escócia, País de Gales e Inglaterra. São caminhos lindos, com muito verde e ótima sinalização.

© Vera Marques

Essas vias já existem há muitos anos, algumas são históricas, eram exclusivas para pedestres ou cavalos. O que o Reino Unido fez foi simplesmente incluir a bicicleta na lista de “tráfego permitido”, enchendo de plaquinhas, tanto para indicar o caminho, quanto para alertar o ciclista da prioridade a quem segue a pé.

As rotas são numeradas e podem ser conferidas no site sustrans.org, a fonte mais abrangente de informações sobre ciclovias em todo o Reino Unido, que inclui o mapeamento interativo de todas as rotas da NCN e outras ciclovias do país. Além disso, adquiri os mapas impressos para tê-los em mãos e traçar a minha rota.

Meu ponto de partida foi Cambridge. A cidade gira em torno de sua famosa universidade, formada por 31 colleges. O mais famoso é o King’s College. Sua arquitetura é considerada uma das mais bonitas, isso sem contar que um dos cartões postais da cidade é a King’s College Chapel, uma capela construída em estilo gótico perpendicular que dá um destaque único ao local. Além dos colleges, outras atrações da cidade são o rio Cam e suas pontes. A cidade é um charme, sempre movimentada, e vale a pena explorá-la por alguns dias.

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Primeira rota

Cambridge / Bottisham / Ely / Longstanton / Cambridge
71,7 km

Esta rota segue as rotas NCN 11 e 51 através de Cambridgeshire. O percurso começa no rio Cam e segue à sua margem via NCN 11, antes de se juntar à rota NCN 51, perto de Fen Ditton. Todo percurso é feito através de estradas rurais. O primeiro vilarejo que passei foi Bottisham, e logo após Lode, onde avistei lindos cottages (chalés), comuns na área rural do país. Com telhados de sapê, janelas pequenas e pilastras de madeira no seu interior, elas são muito pitorescas.

Dali o caminho me levou por um trecho muito agradável até chegar a Wicken Fen Nature, a mais antiga reserva natural da Grã-Bretanha. Foi nessa reserva que Charles Darwin coletou besouros lá na década de 1820, e na virada do século os pais da ecologia moderna e conservação, os botânicos de Cambridge Sir Harry Godwin e Dr. Arthur Tansley, realizaram trabalhos de pesquisas. A reserva é rica em vida selvagem, especialmente invertebrados. (www.wicken.org.uk/). O lugar é lindo e merece uma parada. De lá, segui ao longo do rio Ouse até chegar a Ely.

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Segunda rota

COVENTRY / WARWICK / STRATFORD-UPON-AVON
34,2 km

Coventry é uma cidade bem cosmopolita, e até bem grande para padrões europeus. Foi uma das cidades inglesas mais destruídas durante a Segunda Guerra. Um bombardeio destruiu todo o telhado da Catedral de São Miguel, construída nos séculos XIV e XV. Suas ruínas foram mantidas como um memorial para fazer com que o poder de destruição e tudo que ela representou e representa para os envolvidos não fosse esquecido. Várias homenagens aos que lutaram na guerra estão espalhadas pelas ruínas da catedral. A minha parada ali foi suficiente para explorar os principais pontos de interesse.

Segui a Rota NCN 52 até Warwick, cidade fundada nas margens do rio Avon no ano de 914. Tornou-se famosa por ter a maior concentração de castelos medievais do planeta. Visitei o Castelo de Warwick, localizado em uma colina às margens do rio Avon, construído por William, o Conquistador, em 1068.

Uma casa que chamou a minha atenção foi o Lord Leicester Hospital. A construção de madeiras emolduradas é fantástica. Apesar do nome nunca, nunca foi utilizada para doentes, e sim como uma casa de repouso para ex-militares e suas esposas.

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De Warwick segui pela Rota NCN 41 através de uma estrada toda asfaltada e com pouco trânsito. Não foi difícil chegar a Stratford-upon-Avon, uma das cidades mais ao norte de Cotswolds e uma das mais famosas da região. Afinal, foi o berço de ninguém menos do que William Shakespeare. Ele nasceu no dia 23 de abril de 1564, e faleceu em 1616, mas continua vivo na memória literária e na vida bucólica do vilarejo.

A grande maioria das casas e estabelecimentos tem estilo tudor, casas de madeira, com largas vigas também de madeira, deixando a fachada da casa toda quadriculada!

Minha primeira providência foi comprar o ingresso para seguir as trilhas percorridas por Shakespeare. O valor é 21.5 libras para adultos e dá direito a visitar os cinco principais pontos de interesse da cidade, para entender a vida naquela época: Shakespeare’s Birthplace, Nash’s House & New Place, Hall’s Croft, Anne Hathaway’s Cottage e Mary Arden’s Farm.

Terminei o dia sentada às margens do rio Avon, no Bancroft Gardens onde acontecia uma peça de teatro – comum por lá; afinal, estava na cidade do poeta nacional da Inglaterra – o “Bardo do Avon”.

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Terceira rota

STRATFORD-UPON-AVON / CHIPPING CAMPDEN
50 km

Nesse trecho segui a rota NCN 5 e NCN 41. Foram 50 km de estrada a partir de Stratford-upon-Avon até Chipping Campden, passando por outros vilarejos. Foi difícil pedalar nessa região à vontade e ficar em cada vilarejo dias e dias. Em diversos momentos, entre um vilarejo e outro, parava, parava… Em todas as cidades ficava imaginando como seria morar ali, em uma casinha de pedra com lareira, e um jardim florido.

Em Chipping Campden, o charme fica por conta das suas casas de pedra em tons amarelo-alaranjados, algumas cobertas de verde, outras de flores, num degradê de encher os olhos!

Fiquei hospedada no Volunteer Inn B&B, uma pousada do século XVII repleta de história. Um “Inn“, que é o meio de hospedagem mais comum no interior da Inglaterra, trata-se basicamente de um pequeno hotel, geralmente em uma grande casa georgeana. No térreo fica o pub, bem tradicional. Aí você abre uma porta no canto do pub, sobe um lance de escadas e está em frente ao seu quarto. Muito bem instalada, voltei ao pub e lá fiquei, observando o mais puro jeito inglês de ser. O pub estava cheio de senhorzinhos e senhorinhas inglesas, tomando seus aperitivos, ouvindo uma boa música e jogando conversa fora, num clima descontraído de uma bucólica cidade do interior da Inglaterra.

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Quarta rota

CHIPPING CAMPDEN / MORETON-IN- MARSH / STOW –ON-THE WOLD / TOTTENHAM / HONINGTON
48,2 km

No dia seguinte, depois de um completo café inglês – antes de seguir o roteiro planejado para o dia – decidi visitar Broadway, distante 7 km. Segui pela Cotswold Way, um percurso de tirar o fôlego. O Cotswold Way é uma trilha de caminhada que segue ao longo do comprimento dos Cotswolds (cadeia de pequenas colinas no centro da Inglaterra), começando em Chipping Campden, no norte, e terminando em Bath, no sul. A trilha tem 102 km e vistas deslumbrantes. Pena que só percorri 14 km (ida e volta)…

Depois de explorar a pequena cidade e uma tentativa frustrada de visitar a Torre de Broadway, voltei para Chipping Campden e segui pedalando pela rota NCN 442 e 48.
Novamente, foram vários vilarejos com casas de pedras que preservam sua beleza natural totalmente integrada com a vegetação do local e jardins impecáveis. Foi tranquilo chegar a Stow-on-the-Wold.

Rústica, com chão de pedras, Stow-on-the-Wold é uma “cidade mercada” extremamente pitoresca e muito visitada por ter bons antiquários. Por muito tempo, o vilarejo foi o principal centro usado para a comercialização de ovelhas e lã. A Igreja de St. Edward acompanhou a história da cidade e já serviu de abrigo para soldados refugiados.

Depois de explorar Stow-on-the-Wold, segui pedalando pela NCN 48, com destino a Honington, vilarejo onde havia feito reserva no Bed and Breakfast para um pernoite. O sistema Bed and Breakfast surgiu na Irlanda e é bastante comum na Europa. Funciona assim: o visitante se hospeda na casa de um morador local, que será seu anfitrião. A experiência reúne o conforto e a privacidade de um hotel com o clima aconchegante de uma casa. Uma das vantagens dessa hospedagem é o convívio com o morador e contato com os hábitos e a cultura local.

Quinta rota

HONINGTON / ILMINGTON / MICKLETON / HONEYBOURNE / EVESHAM / CHELTENHAM
71,8 km

No percurso até Evesham o cenário se repetia e as sinalizações continuavam presentes. Parei em Evesham, conhecida pela “Batalha de Evesham”, uma das duas principais batalhas da Segunda Guerra dos Barões, que ocorreu na Inglaterra no século XIII. A cidade é um charme, com pontes sobre o Rio Avon, catedral e parques lindos.

Meu plano depois de visitar a pequena cidade seria: logo na saída pegar a rota NCN 41 até Tewkesbury, onde acessaria a NCN 45 até Gloucester. Bem esse “era” o plano. Porque próximo ao vilarejo Hinton on the Green, onde eu deveria virar à direita e acessar a NCN 41, tive um minuto de distração, e segui direto. Demorei um tempo para perceber meu erro, comecei a achar estranho o movimento de carros, já havia pedalado por vários e vários quilômetros e em nenhum momento o tráfego de carros foi tanto. Então parei e conferi meu mapa – eu estava na rodovia A46. A rodovia dava acesso a Cheltenham, cidade que estava nos meus planos depois de Gloucester. Olhei o mapa, conferi a distância e seriam apenas 22 km. Então pensei: “porque não inverter o percurso?” Decididamente não foi uma boa ideia. Seguir pela rodovia foi muito tenso e comecei a perceber que os motoristas estranhavam a minha presença ali. Errei feio. Cheguei a Cheltenham exausta devido a tensão.

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Sexta rota

CHELTENHAM / GLOUCESTER / STROUD
47 km

Desta vez conferi meus mapas mil vezes antes de partir e contei com a ajuda do proprietário da B&B que realmente me achou corajosa por estar explorando seu país, sozinha de bike.

Parti de Cheltenham logo pela manhã. Seguindo pela NCN 41 até Gloucester seriam apenas 16,3 km, o que me possibilitaria chegar a Gloucester cedo e aproveitar ao máximo a cidade, famosa pela sua catedral. Algumas cenas feitas no castelo de Hogwarts, da saga Harry Potter, foram realizadas nesta catedral.

Em Gloucester foi fácil achar a sinalização da rota NCN 45, que me levaria até Stroud. Chegar à cidade foi fácil, mas achar o hostel que havia reservado foi outra história. Nos lugares por onde passei procurei sempre pelos Hostels YHA, que são excelentes, alguns são antigos castelos, mansões etc. O que eu não sabia era que em alguns lugares o YHA faz parcerias, ou seja, algumas propriedades sedem quartos para a organização. Em Stroud a parceria é com Hawkwood College, um colégio na zona rural. Um lugar tão lindo, tanto que eu decidi ficar três dias lá e pedalar aos arredores da propriedade.

Um lugar que visitei foi o pequeno vilarejo Painswick, distante 7 km. Além da bela e preservada arquitetura, Painswick destaca-se pelos belos jardins, especialmente o jardim da igreja, com 99 teixos podados.

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STROUD A BIRMINGHAM DE TREM

O legal de pedalar pela Inglaterra é que se cansar ou o tempo não ajudar, é só pegar um trem. As bikes são bem-vindas nos trens no Reino Unido, mas tem que reservar o espaço para elas com antecedência, pois cada trem de 400 passageiros tem só cinco vagas de bike. Essa é a regra. Eu não havia feito a reserva, pois não tinha a minha intenção ir de trem. Mas o dia amanheceu chuvoso e com muitas nuvens escuras. Segui até a estação e a pessoa que me atendeu foi compreensiva e permitiu que eu embarcasse sem a reserva (o espaço reservado para bikes estava vazio – sorte minha). O ticket não foi barato, custou 26 libras, e a viagem durou quase duas horas (www.thetrainline.com)

Birmingham é a segunda maior cidade do Reino Unido e eu decididamente estava fugindo das grandes cidades. Na estação decidi seguir de trem para York, havia lido que a cidade tem muita história para contar. Pedalei um trecho da rota NCN 65. E por dois dias explorei a cidade murada com um centro composto por estreitas ruas que abrigam uma enorme catedral medieval. Foi fundada pelo Império Romano ainda antes de Cristo, dominada pelos vikings no século IX e um dos centros da Guerra das Rosas no século XV. Foi uma ótima ideia visitar essa linda cidade, que foi ocupada por romanos, vikings e normandos.
Novamente de trem segui para Stratford-upon-Avon, cidade que havia me apaixonado e escolhi para descansar por uma semana depois dessa aventura toda. Voltei para o Hostel YHA.

Depois de descansada resolvi conhecer Norwich e visitar uma amiga. Ali fiquei alguns dias, pedalei um trecho da Rota NCN 1 e finalizei minha aventura.

Pedalei por não menos do que 30 vilarejos pelo interior, e todos eram incríveis! Desde a arquitetura – construções seculares (anglo-saxões, tudors, períodos georgeano e vitoriano) – até os detalhes – pequenos ou grandes. Às vezes o cenário era composto por um rio e uma ponte, por ruas estreitas cheias de curvas, um mercado medieval, uma vista para o campo e várias catedrais. Cada cidadezinha, um charme especial. Poder imaginar o passado ali foi demais. Foi uma viagem incrível, principalmente por tê-la feita sozinha, do começo ao fim. E perceber que este foi o fator mais importante, o maior desafio, e que isso muda tudo.

© Vera Marques