Antes de viajar para a Islândia eu via imagens do país e imaginava se era possível existir um lugar assim. Parecia uma espécie de mundo dos sonhos: geleiras, desertos, vulcões, tempestades de areia e ventos com mais de 100 km por hora. E não tinha dúvidas de que para experimentar toda essa natureza precisava ser de bike.

A Islândia é uma pequena ilha localizada no ponto de convergência do Atlântico Norte com o Oceano Ártico, próximo da Groelândia e cortada ao norte pelo Círculo Polar Ártico. É a terra dos vikings. A metade do seu território pertence à placa tectônica da América do Norte e a outra parte à placa Eurasiática, o que provoca uma atividade geotérmica intensa na região, como gêiseres, vulcões e muita fumaça brotando do chão.

Tenho 31 anos, sou catarinense e moro em São Paulo. Pratico o cicloturismo há cerca de três anos. Fiz algumas viagens de bicicleta pelo Brasil, como Vitória – ES até Salvador – BA, São Paulo – SP até Curitiba – PR e a Estrada Real na temporada de chuvas. Cada uma destas viagens realizadas me preparou de alguma forma para o que iria enfrentar na Islândia. Segui para a ilha viking no solstício de verão, em junho de 2012. O clima no verão é mais ameno, com temperaturas geralmente entre 5 e 10 graus na região da costa, com cerca de um mês com luz solar constante durante as 24 horas do dia.

© Victor Hugo Guidini

Em Londres, onde fiz uma parada de uma semana, e nos primeiros dias em Keflavik, na Islândia, gravei entrevistas e músicas com músicos locais (além de fotógrafo, também sou músico). Um dos meus projetos consiste em fazer uma cartografia musical das viagens. Creio que muitos músicos têm visões singulares da vida, fugindo dos padrões dominantes, e a proposta é levar isso para as pessoas, para que elas vejam que podem muito mais e que o mundo pode ser o que você quiser que seja. Foi um processo muito interessante fazer isto enquanto viajava, pois além de pedalar, precisava buscar os músicos, gravá-los, editar todo este material e postar na internet quando parava em algum lugar.

Na capital, em Reykjavik, existem muitas ciclovias e, quando não existem, os ciclistas andam na calçada. Os transeuntes respeitam os ciclistas e vice-versa. O mesmo ocorre na relação entre ciclistas e automóveis. Acostumado a pedalar em São Paulo, onde constantemente recebo, no mínimo, olhares de desaprovação, fiquei impressionado em ser respeitado como um ciclista. No início até me sentia mal, era difícil aceitar que estava num lugar em que as ruas eram para pessoas e não para os carros, realmente o mundo pode ser muito mais do que imaginava.

© Victor Hugo Guidini

Gigantescos campos de lava sedimentada, vulcões, montanhas nevadas, sempre acompanhado de muito frio e vento.

Passei por muitas cidades, algumas com nomes difíceis de pronunciar: Reikjavik, Hrútafjörður, Akranes, Djupivogur, Grundarfjörður, Stykkishólmur, Akureyri, Egilsstaðir , Kirkjubæjarklaustur , Vik, Sellfoss, Hveragerði . Isso tornava difícil até pedir informações para as pessoas. A língua islandesa veio dos vikings e sofreu poucas alterações em 1.200 anos. Porém, toda a população é fluente em inglês. O país tem 320.000 habitantes, sendo que 2/3 da população se encontra na região de Reykjavik. O restante das cidades são vilas, geralmente com algumas dezenas ou centenas de habitantes.

Quase meia- noite em Stykkishólmur. © Victor Hugo Guidini

Havia momentos em que tudo dava errado e paralisava o luxo da viagem. Hoje vejo que estes momentos foram necessários, para dar tempo de parar e absorver tudo o que estava acontecendo ao meu redor.

Atravessei gigantescos campos de lava sedimentada, vulcões, montanhas nevadas, sempre acompanhado de muito frio e vento. No país é permitido acampar em qualquer área que não seja um parque nacional, isso inclui lugares totalmente desérticos, como quando montei a barraca junto ao lago do glaciar Fjallrson. Foi uma noite terrivelmente fria, com ventos muito fortes vindos diretamente das geleiras. O único barulho que ouvia, durante a noite, era do vento e dos pedaços gigantes de gelo despencando no lago.

Este dia teve tanto vento que precisei empurrar a bike nas descidas.© Victor Hugo Guidini

Não tinha dúvidas de que para experimentar toda essa natureza precisava ser de bike.

Foi uma viagem muito solitária, apenas você, a estrada, a bike e o vento… Sempre muito vento. Acabei pedalando, por alguns dias, com uma alemã que conheci em Þingvellir . Fomos até Geysir e Gullfoss, onde existem gêiseres e a maior cachoeira da Islândia. Todos os dias encontrava com outros cicloturistas pedalando no sentido contrário do meu, geralmente com o vento a favor deles. Algumas vezes parávamos para conversar durante o caminho. Mas o ponto de encontro das conversas era à noite, nos campings.

Poças de lama e enxofre ao norte de Mývatn. © Victor Hugo Guidini

Em muitos momentos precisei esperar a natureza me dar o aval para continuar a viagem, por exemplo, quando ocorrem as tempestades, onde as chuvas e os ventos são muito fortes, ou mesmo quando ocorrem tempestades de areia. Tive que alterar o planejamento constantemente devido a estas adversidades, como quando tive que passar uns dias em Hofn. Porém, quando o tempo melhorou, segui e avistei Vatnajokull, o maior glaciar da Europa. A paisagem mudou totalmente: de um lado, havia a costa; e, do outro, os fiordes e glaciares. E, quando cheguei a Jokulsarlon, vi uma praia com areia negra e icebergs derretendo por todo o lado.

© Victor Hugo Guidini

A primeira tempestade de areia foi a caminho de Kirkjubæjarklaustur. De longe avistava a tempestade intermitente e aos poucos me aproximava dela. Uma experiência interessante, pois machuca um pouco o rosto, mas depois de você passar por ela se sente bem mais forte.

Um caminho com tantos desafios também trouxe alguns problemas com a bike: pneu rasgado, corrente arrebentando, a chave de corrente quebrada, aro aberto, coroa quebrada e outros. E, além do mais, na Islândia só existem três cidades com bicicletarias e isso implicou em pegar ônibus para providenciar alguns consertos. Os ventos contra eram muito fortes e os ataques de aves agressivas, chamadas Sterns, eram constantes. Havia momentos em que tudo dava errado e paralisava o fluxo da viagem. Hoje vejo que estes momentos foram necessários, para dar tempo de parar e absorver tudo o que estava acontecendo ao meu redor.

Como não existe escuridão à noite nesta época do ano, em certas situações pedalava durante a madrugada, pois teoricamente os ventos diminuem nestas horas do dia. Checar a previsão do tempo e principalmente a do vento era essencial. O clima mudava drasticamente em cerca de 15 minutos e pedalar com ventos acima de 100 km/h pode ser o pior pesadelo de um ciclista. Pela primeira vez na minha vida precisei descer da bike e a empurrar numa descida, porque o vento não me deixava pedalar.

Tempestade de areia. © Victor Hugo Guidini

A Islândia é famosa por suas cachoeiras, mas Goðafoss foi um espetáculo a parte: uma cachoeira no meio de um deserto. É um lugar de muitos turistas durante o dia e a dica é acampar do lado da cachoeira, esperar chegar próximo da meia noite e curtir. Assim, se por um lado, a paisagem de Goðafoss oferecia esta visão espetacular, por outro, em Mývatn, na beira do lago existem milhões de pequenas moscas que grudam em você buscando calor. Eram tantas que chegavam a atrapalhar a visão, formando uma grande massa cinza e esfumaçada. A grande dificuldade era entrar e sair da barraca sem que as moscas entrassem. Nesta região visitei as crateras de vulcões e diversas formações vulcânicas, como em Dimmuborgir. E bastava se afastar alguns quilômetros para perceber que estava num deserto imenso, onde não há sequer vegetação rasteira no chão, somente vento, terra e enxofre.

Em áreas de atividades geotérmicas intensas, pequenas poças de lama eclodiam do chão. Era a terra mostrando que, apesar de tudo aquilo ser um deserto gigantesco, ela estava viva. O caminho foi um dos mais legais e solitários de toda a viagem. Os ventos eram muito fortes e só havia pontos de apoio a cada 100 km. Era o mundo e eu apenas. Pode parecer clichê, mas foi um dos momentos que me senti parte do mundo e vi o quão pequeno era “eu e meu mundinho” diante de tudo aquilo.

Neste dia também percebi o quanto o ambiente em que você está pedalando interfere no seu humor. Não havia como fugir ou se refugiar, só era possível se conectar com tudo aquilo e pedalar. Durante as subidas os insetos me atacavam e nas descidas o vento me barrava. Por fim, sempre conseguia chegar a algum lugar, armar a barraca e capotar. Um fato interessante era que, quando fechava os olhos, via a cor cinza.

Um dos momentos ápices da viagem foi passar pela cordilheira, pelo passo Oxi. Estar ali, no alto das montanhas, cercado de ovelhas e de gelo, fazia parecer que tudo era possível. Para rebater toda essa felicidade, quando voltei para a cidade senti uma profunda tristeza. Acho que é um movimento natural do corpo: die to live. Dei-me conta que não dá para atravessar um deserto de bike, sem ser afetado por ele.

Em Hveragerði, um dos lugares mais ativos geotermicamente, há gêiseres por todos os lados, rios com temperatura de 40 graus e muita fumaça brotando do chão. No centro da cidade há um córrego em que as pessoas cozinham ovos e assam pão. A energia do solo é tão grande que toda a água da capital é aquecida nesta cidade e transportada por canos até Reykjavik. E, falando em água, costumam dizer que a água da Islândia é a mais pura do mundo.

Geysir. © Victor Hugo Guidini

No final da viagem, quando voltei para Reykjavik, optei por ficar acampado na cidade, diferente do início da viagem em que fiquei na casa de uma amiga. Por um lado, desta vez, a cidade me pareceu um porto conhecido. Por outro, quando estava na rodovia que havia percorrido na chegada, mas no outro lado da pista, percebi várias coisas que passaram invisíveis na primeira vez. Aquele lugar era um campo gigante de lava sedimentada e totalmente desolado: havia pedras, o oceano e o barulho do vento. Parecia que estava pedalando na lua.

A Lagoa Azul foi a última grande atração natural. A água da lagoa é muito quente e, devido à alta quantidade de enxofre, a sua cor é de um azul muito intenso. Hoje em dia é um grande SPA luxuoso que atrai hordas e mais hordas de turistas, e apesar de estar sempre lotada, vale a pena conhecer.

Lagoa Azul. © Victor Hugo Guidini

Enfim, depois de ter passado por tantos lugares incríveis e singulares, quando retornei ao camping em Keflavik, encontrei outros ciclistas e foi muito bom trocar ideias com todos, compartilhar o que cada um passou e viveu naquela ilha. Cada um com uma história totalmente diferente da outra. Não acreditava no que tinha passado e vivido. Tinha retornado ao mesmo ponto em que comecei a viagem, porém, o que antes eram expectativas agora era um registro na história de minha vida. E a bike foi fundamental, pois tudo foi ao ar livre, embaixo de chuva, sol, areia, moscas e sempre muito vento. Creio que o trabalho que fiz com as fotos e vídeos dão para ter uma ideia do que é isso tudo. Mas para saber realmente como é, é preciso ver, ouvir e sentir diretamente… Ir para lá. As fotos e vídeos não são referência da realidade e, sim, uma visão sobre a viagem, a minha forma de contar a história. Espero que sirva de estímulo para outras pessoas seguirem os seus sonhos.

Mudanças drásticas no clima em cerca de 15 minutos. Pedalar com ventos acima de 100 km/h pode ser o pior pesadelo de um ciclista

Dados

  • Dias viajando: 48
  • Dias pedalados: 28
  • Quilômetros pedalados:
  • aproximadamente 1.800 km

O que levar:

  • Equipamento de camping
  • Saco de dormir para temperaturas abaixo de zero
  • Barraca resistente a tempestades e ventos
  • Isolante térmico
  • Sistema de camadas de roupas contra frio (segunda pele, eece, corta vento / impermeável) Alforjes impermeáveis
  • Ferramentas para bike / peças sobressalentes
  • Máscara contra claridade para dormir e protetores auriculares
  • Mapa / GPS

Gastos: A Islândia é um dos países mais caros do mundo, uma média de 80 – 100 reais / dia, contando com uma margem para eventuais problemas durante o caminho.

tripsdebike.blogspot.com