o escolher um novo destino para uma viagem de bicicleta, temos a chance de nos projetar em direção ao desconhecido. Paisagem, clima, idioma, tudo pode ser completamente diferente do que estamos habituados em nosso país, mas nada como mergulhar em uma cultura distinta para quebrar paradigmas e tomar consciência do que podemos considerar preconceito, mito ou realidade.

Quando dissemos que iríamos pedalar pelo Oriente Médio, muitas dúvidas e questionamentos surgiram, amigos e colegas preocupados com os clichês repetidos pela mídia, as notícias de guerra, o radicalismo islâmico e a questão da mulher em meio a tudo isso.

O Olinto já havia viajado pelo oeste da Turquia durante a volta ao mundo, mas foi há 20 anos. De qualquer forma, tínhamos boas referências sobre Irã e Turquia, tanto através da experiência de nosso amigo Roberto, quanto dos relatos de outros colegas cicloturistas. Assim, lançamo-nos nessa aventura de coração aberto para descobrir as semelhanças e, principalmente, aprender com as diferenças.

© Antônio Olinto e Rafaela Asprino

HIJAB

O termo árabe hijab significa “cobertura”. Hijab no Islã é o conjunto de orientações de comportamento e vestimenta no convívio social. Mulheres e homens são convidados a agir corretamente e se vestir com modéstia, cobrindo algumas partes do corpo; ao esconder as formas físicas, a personalidade e o intelecto se tornam mais relevantes. O hijab inclui corpo, mente e espírito.

Ao entrar em uma mesquita, todas as pessoas, independente da religião, devem se vestir de acordo com o hijab. No Irã, o hijab é obrigatório a todos os cidadãos, porém no ambiente privado, as famílias se comportam de acordo com seus próprios hábitos e costumes.

As formas de se vestir e cobrir a cabeça variam de acordo com a corrente ideológica do islã e com as tradições de cada país.

Modernamente, o termo hijab passou a designar uma das formas de cobrir a cabeça.

“Janeh Mosque” em Yazd (Irã). © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Às vezes, para compreender uma cultura, precisamos ir um pouco mais fundo em suas crenças. Sendo um dos berços de uma das civilizações mais antigas do mundo, essas terras já estiveram sob domínio de diversos impérios, com diferentes credos religiosos; são milhares de anos de história e cultura acumulados. Atualmente, a Turquia é um Estado Secular: embora 99% da população se declare muçulmana, sua Constituição prevê a liberdade religiosa. O Irã é uma República Islâmica (o Islã é a religião oficial, estabelecida na Constituição do país); 99,5% de sua população se declara muçulmana, e minorias religiosas como os zoroastrianos, cristãos e judeus são reconhecidas e protegidas pelo Estado.

“Lançamo-nos nessa aventura de coração aberto para descobrir as semelhanças e, principalmente, aprender com as diferenças.”

No Brasil, a maioria religiosa é cristã, isso determina muito do jeito de ser das pessoas. Nasci em uma família católica praticante, e já tendo viajado por lugares com maioria religiosa budista e hindu. Conviver com a maioria muçulmana me fez perceber o quanto de preconceito é construído em torno dessa religião, uma imagem criada pela propaganda, e que tomamos como verdade por não termos contato e nem experiência direta, ou seja, por pura ignorância. Os budistas são considerados pessoas espiritualizadas e calmas, sempre abrimos um sorriso quando alguém diz que é budista, mesmo não sendo essa nossa religião. E por que torcemos o nariz quando alguém diz que é muçulmano?

Acampamento em Badab-e Soort (Irâ) © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Em quatro meses de viagem, tivemos algumas oportunidades de conviver com famílias muçulmanas comuns, tanto no Irã quanto na Turquia. Isso me fez sentir muito próxima àquela realidade: essencialmente somos todos iguais. A forma de atuar na família, no trabalho e na religião são muito mais parecidas com a de uma família cristã de classe média brasileira do que a forma de atuar de um budista, por exemplo. Muito parecida com a de minha própria família e de várias famílias cristãs que conheço.

Jantar na casa de nossos novos amigos Reza, Afsaneh e Paria. Tivemos a oportunidade de conviver com famílias muçulmanas comuns, tanto no Irã quanto na Turquia. Isso nos fez sentir muito próximos a essa realidade: essencialmente somos todos iguais. © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Nem bem tínhamos começado a viagem e recebemos nossa primeira lição. Em Pamukkale (Turquia), enquanto nos preparávamos para começar a pedalar, conhecemos alguns estudantes tailandeses viajando a turismo. Curiosos com a moça oriental com a cabeça coberta, perguntamos a respeito e Sofia nos disse que era muçulmana. Depois de alguns minutos de conversa, além de se oferecer para me ensinar como usar o véu, me presenteou com uma bela echarpe e um broche. Rapidamente nos sentimos bem-vindos e acolhidos. Essa recepção nos fez lembrar que o islamismo é a segunda maior religião do mundo e que nem todo muçulmano é árabe, assim como nem todo árabe é muçulmano.

Encontro em khur (Irã). © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Tanto na Turquia quanto no Irã, é muito comum entre os homens o cumprimento com abraços, beijos e encostando a cabeça um no outro. Já as mulheres normalmente se cumprimentam, quando muito, com um aperto de mão entre si. Um dos preceitos do Islã é que uma mulher não deve ser tocada por homens fora de seu círculo familiar, e isso acaba sendo transportado para a cultura do país. Para nós brasileiros é até estranho, pois mal conhecemos alguém e já estamos nos abraçando e dando beijos para cumprimentar. Mesmo sendo estrangeira, passei a me comportar de forma mais discreta, e apenas entrava nas conversas masculinas quando era chamada, ou então depois de conhecer um pouco mais os interlocutores. Por outro lado, o Olinto passou a cumprimentar mulheres com um aperto de mão apenas quando elas tomavam a iniciativa.

© Antônio Olinto e Rafaela Asprino

AS ORIGENS

Árabes são um grupo étnico originário da Península Arábica.

O Islã é uma religião fundada pelo Profeta Maomé no século VII, na região onde hoje é a Arábia Saudita, e se difundiu por vários países da Península Arábica, África, Ásia e Europa.

Irã e Turquia não são países árabes. Os turcos vieram da Ásia Central e têm como língua oficial o Turco. Já o Irã é a antiga Pérsia e sua língua oficial é o persa (Farsi).

“Uma imagem criada pela propaganda, e que tomamos como verdade por não termos contato e nem experiência direta, ou seja, por pura ignorância. “

Aconteceu que, passando pelo pequeno povoado de Tebrizcik (Turquia), decidimos parar para comer alguma coisa e fomos em direção à mesquita, sempre um ótimo lugar para descansar, com água, sombra e silêncio. Logo apareceram alguns homens, pois já estava na hora do namaz (oração). Um deles veio até nós e passou a gesticular insistentemente para mim, indicando a casa ao lado da mesquita. Fui verificar para tentar entender o que ele queria de nós e, ao entrar na casa, encontrei três belas moças. Uma delas falava bem inglês, e começamos uma interessante conversa, que variou desde o que elas estudam, o que estavam fazendo em casa, islamismo e hijab. Elas me ofereceram comida, e eu aceitei, mesmo um pouco constrangida, pensando no Olinto, que tinha ficado do lado de fora. Passou um tempo e de repente a porta se abriu. Era o mesmo homem, que falou algo para elas e fechou a porta. Elas se levantaram e foram buscar seus véus. Em seguida ele abriu a porta novamente, agora com o Olinto. Só então entendi o que estava acontecendo. O homem era o imã1 naquela mesquita, e as moças, filhas dele. Ao ver os estrangeiros, ele fez questão de nos levar para dentro de sua casa. No entanto, como era hora da oração que ele iria conduzir, somente eu, mulher, poderia ficar sozinha na casa com suas filhas. Ao final da oração ele avisou que entraria com um estranho na casa, e por isso elas se cobriram. Ficamos o resto da tarde na presença agradável da família, a irmã mais velha é estudante de teologia e, a pedido do Olinto, passou a recitar alguns versos do corão em árabe. Antes de irmos embora, elas me presentearam com um belo véu, com detalhes feitos a mão. Quando nos despedimos, elas não quiseram apertar a mão do Olinto, e nem ser fotografadas. Guardamos as imagens e as emoções na memória, além da foto da mesquita, como marco do local do nosso encontro. Essa foi a família islâmica mais fervorosa que conhecemos em toda a viagem. O fato de as moças se cobrirem e não poderem ser tocadas, não impediu de forma alguma que nos transmitissem muito carinho e que pudéssemos travar uma relação profunda. A atenção que dispensaram a nós e o alto nível da conversa fez com que nos sentíssemos entre velhos amigos, um encontro muito especial.

Mulheres turcas usando hijab na praça de Konya (Turquia) © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Já com quase três meses de viagem, durante a travessia do Deserto de Kavir (Irã), chegamos muito cansados à cidade de Khur, e tudo o que queríamos era ficar sossegados tomando um sorvete, sentados numa sombra, na beira da calçada. Um senhor veio até nós e insistiu tanto para entrarmos em sua casa que não tivemos como negar. Admito que fui a contragosto, apenas para não ter que ser grosseira com o senhor que, afinal de contas, estava de coração aberto para nós, querendo nos ajudar. Sua casa era uma daquelas típicas de adobe com pátio interno, muita sombra, ar fresco, e uma tamareira bem no meio do quintal. Logo ele veio nos servir tâmaras recém colhidas, água e o tradicional chá. Ele não falava palavra alguma em inglês, e nossa comunicação foi apenas com olhares, sorrisos e as poucas palavras de nosso vocabulário em persa. Muito orgulhoso, nos mostrou sua criação de cabras e um cesto feito com as folhas da tamareira. Aos poucos fomos relaxando, e passamos a admirar e agradecer a oportunidade desse encontro que o Universo tinha nos proporcionado. Quando fomos nos despedir, pensei comigo: esta é uma pessoa para quem eu tenho o orgulho de estender a mão! Para nossa surpresa, ele não quis me tocar, demonstrando seu alto grau de respeito e religiosidade. A negação do contato físico só aumentou meu grau de respeito por ele.

A tailandesa Sofia me ensinando a usar o Hijab. © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Experiências como a de Tebrizcik e Khur nos fizeram refletir sobre a banalização dos relacionamentos em nossa própria sociedade, onde o maior valor quase sempre está na aparência, nos aspectos formais e externos, e não no conteúdo.

© Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Em Zanjan (Irã) recebemos o convite para participar de uma festa de casamento. Por causa da proibição das mulheres serem vistas em público sem o véu, a festa se divide em dois atos. O primeiro começa mais cedo para as mulheres, que fazem uma festa particular, onde dançam à vontade, com as roupas que desejarem e com a cabeça descoberta, essa festa termina com um jantar. Os homens chegam mais tarde e jantam em um recinto separado. Depois disso, parte dos convidados vai embora, e outra parte, os “convidados VIP”, vão para um lugar afastado da cidade, onde a festa recomeça, e as mulheres que desejam, podem ficar sem véu e com roupas decotadas diante dos homens, dançando e se divertindo por horas ao som de uma banda, com o repertório que varia entre as músicas tradicionais e modernas do país. Mesmo sem bebidas alcoólicas2, a euforia é grande. Nós fizemos parte dos “convidados VIP” e, para chegar até o segundo ato, pegamos carona com uma moça que estava sozinha, que dirigia de forma tão rápida e precisa quanto um “piloto de fuga”! O caminho foi muito divertido, ela ligou o som do carro e, quando falei que gostava da música, colocou no último volume, fomos cantando alto e dançando dentro do carro pelos 10km até o salão. Perguntamos se não teríamos problemas caso a polícia nos visse, mas ela nos disse que antigamente era pior, e que atualmente estão mais relaxados. Durante o jantar conversei com algumas mulheres e fiquei surpresa ao saber que os noivos estavam na casa dos 40 anos! Elas me disseram que tem sido comum as mulheres iranianas estudarem antes de se casar, que as famílias têm menos filhos, e que muitas mulheres nem se casam mais. Uma realidade parecida com a do Brasil.

Durante toda a viagem foi muito comum os homens virem me ajudar enquanto eu carregava alguma coisa. Mesmo estando na companhia do Olinto, eles não esperavam que ele viesse me ajudar. Tomavam a atitude antes mesmo que eu pudesse dizer não. Presenciamos mulheres furando fila sem pedir licença por estarem com crianças. Nos ônibus as mulheres têm preferência e sempre se sentam ao lado de outra mulher ou sozinhas. Se você é um homem viajando sozinho, é muito provável que, se uma mulher entrar no ônibus, você tenha que ceder o lugar a ela. Percebemos que essas sutilezas fazem parte de uma cultura de proteção à mulher. A mesma cultura que pode parecer opressora ao exigir uma conduta específica, tem suas compensações ao oferecer privilégios.

Mesquita Azul em Istambul (Turquia). © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Estávamos em Tabriz (Irã) bem nos dias de uma das mais importantes celebrações do Islã Xiita, a memória do martírio de Imam Husain, e nosso amigo Reza nos convidou para participar do almoço na casa de seu pai. Ao entrar na antiga casa de uma viela, percebemos que estávamos fazendo parte de um ritual familiar, e buscamos nos inserir e experienciar aquela tradição. Logo as mulheres vieram me dizer que eu poderia tirar o véu dentro da casa, mas percebi que elas mesmas estavam com a cabeça coberta, muito provavelmente por causa da presença do Olinto, um homem que tinham acabado de conhecer. Decidi fazer como elas, e permaneci com o véu, inclusive em respeito ao patriarca, que nos pareceu um homem muito religioso. Conversando sobre isso com Negin, uma das sobrinhas do Reza, ela me agradeceu em nome de seu avô e de sua família. No dia seguinte o mesmo ocorreu no almoço na casa dos pais de Afsaneh (esposa do Reza): as mulheres permaneceram com a cabeça coberta na presença do Olinto. Assim que todos os homens saíram da casa, elas tiraram o véu, mas nem todas; uma das tias demorou para tirar o véu na minha frente. Ela estava com vergonha do cabelo despenteado. Mas logo o assunto se transformou em uma conversa divertida e a mulherada já estava dando dicas de beleza, regime e moda.

“O fato de as moças se cobrirem e não poderem ser tocadas, não impediu de forma alguma que nos transmitissem muito carinho e que pudéssemos travar uma relação profunda.”

Nesse ponto, você já não está mais se importando com obrigações e restrições, e colocar o véu antes de sair em público passa a ser um hábito tão normal quanto qualquer outro do dia a dia. Claro, eu tinha que me preocupar em prender bem o véu para que ele não saísse da cabeça com o vento, e pedalar o dia todo com um pano enrolado no pescoço muitas vezes foi desconfortável, ainda mais considerando que viajamos em pleno verão. Mas isso não tinha relevância alguma diante das experiências que estávamos vivendo.

Mulheres turcas usando hijab na praça de Konya (Turquia). © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

Perguntei a algumas mulheres sobre o hijab. Umas foram enfáticas ao declarar que se sentiam protegidas e jamais sairiam em público sem o xador , que cobre todo o corpo. Outras afirmaram usar o véu apenas por causa da lei, e outras ainda por convenção social ou tradição. Para nossa surpresa, na Turquia, país onde o hijab não é obrigatório, observamos muitas mulheres usando véu, e boa parte usando o xador3. Passamos a analisar esse costume em paralelo com costumes de nosso país. Existem muitos hábitos de comportamento e da forma de se vestir que são passados culturalmente, de geração em geração. Um executivo não parece um executivo se não estiver de terno, mesmo estando em um país tropical. Uma mulher precisa estar de salto para parecer elegante, mesmo que isso cause bolhas nos pés e problemas na coluna. Podemos andar tranquilamente vestindo um biquíni no calçadão da praia, mas se fizermos isso em plena Avenida Paulista, talvez até a polícia venha nos questionar.

Almoço na casa de Afsaneh. © Antônio Olinto e Rafaela Asprino

A obrigatoriedade de cobrir a cabeça é apenas uma das restrições às quais a população iraniana deve se submeter por estar sob a tutela de um governo ditatorial. Nessa conjuntura, observamos que, essencialmente, a questão não é cobrir ou não a cabeça, e sim a falta de liberdade para decidir sobre este e outros temas no âmbito social.

Para nós, um dos dons mais preciosos do ser humano é a liberdade. Vivemos em um país que, apesar de todos os seus problemas, nos permite exercer esse dom. Por outro lado, é comum tomarmos decisões baseadas no que as pessoas à nossa volta estão fazendo, as ditas “normas sociais”, que não estão escritas nem promulgadas, mas que podemos ler nas entrelinhas das atitudes, funcionando como “véus internos”, que podem ocultar nosso verdadeiro ser. Nos acostumamos a reagir de acordo com as influências do meio em que vivemos, tanto por hábito quanto para sermos “aceitos no grupo”, quer seja ele social, religioso ou familiar. Diante disso, ficam as perguntas: o que, de fato, fazemos com nossa liberdade? Para quem entregamos o direito de decidir que roupa vestir, que valores priorizar na vida, que caminho seguir?