Comecei a desenhar minha viagem de travessia pela Espanha quatro meses antes da partida. Não só queria fazer a travessia do Caminho de Santiago, imortalizada para os brasileiros por Paulo Coelho em “O Diário de Um Mago”, mas tentar chegar a Santiago de Compostela utilizando outras alternativas de caminho.

Realizei o levantamento logístico e optei por três caminhos: Caminho Catalão (por San Juan de La Peña), Caminho Aragonês e Caminho Francês. Do início, na lindíssima Catedral de Montserrat, ao término em Santiago de Compostela, eram 1.270 km que, pelo meu planejamento, deveriam ser cumpridos em 17 dias passando por 60 cidades, vilas e povoados.

Antes da partida, em setembro, além da preparação física e psicológica, pesquisei muito sobre todas as cidades pelas quais passaria, suas altimetrias, coordenadas geográficas, distância acumulada, distâncias pontuais, enfim, acumulei o máximo de dados possíveis para que a travessia acontecesse sem imprevistos. Disse sem imprevistos? Pois é, quando estamos em cima de uma bicicleta com alforjes e por nossa conta, os imprevistos fazem parte de nossa rotina. Digo isso porque um bicigrino não é um peregrino, então, o seu bom-senso entre a famosa questão a todos os bicigrinos – caminho ou carreteira – será fundamental para o progresso saudável da sua viagem.

Durante minha trajetória encontrei muitas pessoas e uma delas me disse que você está lá não porque decidiu ir, mas sim porque o Caminho lhe chamou. Acredito nisso piamente, porque as dificuldades que passei foram grandes e teve de tudo – dor, fome, sede, cansaço, mas em todas as ocasiões sem exceção o Caminho me dava uma solução harmoniosa. Assim, aprendi com uma grande amiga: “o Caminho lhe dá o que você necessita”.

Dois alforjes, uma bicicleta, equipamento fotográfico e roupa necessária para sobreviver durante os 17 dias desembarcaram comigo em Barcelona. Minha primeira providência foi ir à agência dos Correios despachar minha mala grande com tudo que não iria usar para Santiago de Compostela.

Passei a noite em Montserrat, onde começaria meu grande sonho de chegar pedalando a Santiago. Montserrat acolhe os peregrinos que lá chegam, mas há a necessidade de se reservar por e-mail junto ao Centro de Coordenação Pastoral. Nessa noite, fiquei sozinho num quarto com oito beliches, mas não consegui dormir direito. Fora a ansiedade do começo da viagem que me assombrava, o sino da catedral tocava a cada quinze minutos.

© Nestor Freire

Dia 1 – Montserrat > Tàrrega – 77 km

Saí do Monastério de Montserrat com o dia amanhecendo, com destino a Igualada, primeira cidade distante 28 km. Montserrat fica em cima de uma montanha, logo, era só descer. Nas primeiras curvas fui parado pela polícia pedindo para que esperasse um pouco para a filmagem de um comercial de um automóvel. Pedido atendido, continuei na carreteira até Igualada, passando depois por Panadella e por fim Tàrrega. Meu trecho foi 60% asfalto e 40% terra e devido ao calor, minha chegada foi bem cansativa. Tàrrega é uma cidade muito simpática, boa culinária e aconselho reservar o albergue no dia anterior.

Dia 2 – Tàrrega > Tamarite de Litera – 79 km

Saí cedo de Tárrega passando por diversas vilas e pueblos e por cidades grandes como Linyola, Balaguer e Alafarrás. Terreno acidentado mas com visual espetacular. A região ainda é bem árida, com muitas plantações de milho pelo caminho regadas por diques vindos do Rio Aragón. Após Balaguer, vale a pena uma parada em um bom restaurante de estrada na altura de Castelló de Farfanya. Aqui tive meu primeiro contato com peregrinos. Tamarite de Litera é uma cidade muito simpática, última cidade catalã, com todos os serviços e que dispõe de albergue público.

Dia 3 – Tamarite de Litera > Huesca – 94 km

Dia longo com destino a Huesca, capital da província de Aragón, avistando sempre ao lado esquerdo o Parque Natural de la Sierra Cañones de Guara. No sentido Binéfar e Monzón, o Castelo de Monzón, construção do século XII, se impõe no alto da cidade. A subida é forte mas o visual é demais.

Berbegal é outro vilarejo super simpático que cruzei antes de alcançar Huesca. Lá, vá a padaria, compre croissants e admire o visual lá de cima antes de seguir viagem. Atenção ao último quilômetro antes de Berbegal. É melhor ir pela carreteira, não pelo caminho dos peregrinos. O Caminho Catalão termina em Huesca, capital da província, cidade grande e aconchegante que guarda muitos traços do passado.

© Nestor Freire

Dia 4 – Huesca > Ena – 80 km

Foi um bom dia de aventura. Parti de Huesca em direção a Bolea e Loarre onde pretendia alcançar o maravilhoso Castillo de Loarre (século IX), fortaleza encravada numa montanha a 1.030 m de altitude. A subida é dura, uma vez que você passa de 630 m a 1.030 m em 8 km com gradiente médio de 5%.

Após a visita ao castelo, decidi cortar um caminho pela Carretera Ermita Santa Marina e me perdi no parque; se não fosse o GPS, estaria encrencado. Tudo o que havia subido, tive que descer empurrando a bike pois a descida era de pedra. Acabei saindo num gramado grande com vários sendeiros. Novamente, sem GPS não ia rolar. Depois de muito tempo caminhando e já sem água consegui alcançar La Peña onde peguei um pouco de água e segui viagem até Ena. Consegui parar no meio do caminho para um banho de rio. Ena é um vilarejo no meio do nada, totalmente bucólica. Não há restaurante, só um albergue, algumas casas e a natureza. Foi lá que passei a noite e ainda com um pouco de suplemento, consegui me virar e dormir bem para continuar no dia seguinte.

Dia 5 – Ena > Sangüesa – 105 km

Acordei descansado, mas ainda maravilhado com Ena. Peguei estrada de terra desde o começo em direção a Botaya, mas com direito a andar descalço no rio empurrando a bike. Paradinha em Botaya para foto e respiração funda para a subida aos monastérios novo e velho de San Juan de La Penã. Para ambos, fiquei sem palavras! Cheguei depois a Santa Cruz de Las Serós para um descanso, pois ainda pretendia alcançar Sangüesa, não pela carreteira mas pelo caminho dos peregrinos. Nesse ponto, já avistava muitas pessoas fazendo o caminho a pé e o “Buen Camino” passou a fazer parte do meu cotidiano. Após passar por Puente La Reina de Jaca, entrei em direção a Arrés mas não parei na cidade, pois a subida de pedra judiava. Decidi ir pela carreteira margeando o Pantano de Yesa (Rio Aragón) pois já estava muito cansado, mas a certa altura a carreteira estava bloqueada e tive que subir até o Monastério de Loarre e descer em direção a Sangüesa. Cheguei ao Monastério de Loarre quase morto, mas o visual sempre recompensa.

Dia 6 – Sangüesa > Puente La Reina – 50 km

A minha despedida do Caminho Aragonês foi em grande estilo em Sangüesa. Fui muito bem acolhido no albergue e apesar de cansado consegui sair à noite para visitar um pouco da cidade, a catedral de Santa Maria La Real de Sangüesa e arredores. Iria andar pouco neste dia, pois iria cruzar a minha primeira cidade do Caminho Francês, Puente La Reina. Caminho com um pouco de subida no começo, margeando as autovias, passando por Campanas e Enériz. Puente La Reina, depois de Pamplona, é a entrada dos peregrinos na Espanha, logo, cidade cheia. Tente reservar antes. Eu, apesar de não ter reservado consegui um bom albergue, Albergue Santiago Apostol, enorme, com ótima infraestrutura e que me acolheu muito bem. Aqui, já conheci muitas pessoas e pude descansar bastante para continuar o dia seguinte. Estava definitivamente rumo a Santiago Compostela.

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Dia 7 – Punte La Reina > Logroño – 71 km

Meu destino era a primeira grande cidade do Caminho Francês, Logroño. O caminho até lá tinha relevo acidentado, passando por Villatuerta, Estella, Villamayor de Monjardin, Torres Del Rio e Vianna. Quando você chega em Logroño, cidade grande com todos os serviços e a Iglesia Santiago el Real, tem uma certa estranheza uma vez que algo lhe parece diferente, como carros e muita gente. Enfim, vale uma volta na cidade e um bom descanso para partir no dia seguinte, dessa vez, rumo a Santo Domingo de La Calzada.

Dia 8 – Logroño > Grañon – 73 km

Acordei tão empolgado que errei o caminho. Quando notei já estava longe de Logroño e acabei dando a maior volta para alcançar Santo Domingo. Apesar de ter sofrido bastante nos 20 km de subida, acabei me descobrindo numa rota de vinhos e passei por uma cidade muito charmosa chamada San Vicente de La Sonsierra. Nesse trecho, além de parar várias vezes para comer uva na estrada, tive o prazer de visitar a Iglesia de Santa Maria la Mayor junto com as ruínas do Castillo de San Vicente e Ermita de La Vera Cruz. Todo esse conjunto arquitetônico do século XVI está na parte alta da cidade. Passando por uma ponte medieval sobre o Rio Ébro e muitas bodegas, fui pedalando em direção a Rodezno e Bañares por uma estrada plana até finalmente alcançar Santo Domingo. Decidi dormir em Grañon, vila pequena e única, do jeito que gosto, com gente acolhedora e um albergue “La casa de Las Sonrisas” em que com um donativo você dorme e janta muito bem.

Dia 9 – Grañon > Rabé de Las Calzadas – 85 km

Depois de uma noite maravilhosa em Grañon segui caminho rumo Burgos passando pela charmosíssima San Juan de Ortega e depois Agés. Relevo puxado nos primeiros 35 km chegando a 1.100 m após San Juan. Após San Juan, passei por Atapuerca, Villalval e Orbaneja Riotopico até finalmente cruzar a Autovia Norte chegando a Burgos. Burgos, cidade grande com todos os serviços e com uma das catedrais mais lindas que já vi na minha vida. Preferi seguir viagem, 10 km depois, um vilarejo me chamou a atenção, Rabé de Las Calzadas e foi lá que passei a noite num albergue extremamente simpático com direito a jantar.

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Dia 10 – Rabé de Las Calzadas > Carrión de Los Condes – 74 km

Segui caminho em direção a Hornillos Del Camino, um relevo um pouco acidentado no começo, mas que depois começou a ficar plano. Passei por Castrojeris, Castrillo Matajudíos, até cruzar o lindo Rio Pisuerga. Seguindo em frente pela carreteira se chega a Boadilla Del Camino, Frómista, Villalcázar de Sirga até Carrión de Los Condes. Em Carrión acabei ficando no Albergue Santa Clara, muito bom e perto de um mercado para os que desejarem fazer compras e jantar. Carrión, já na província de Palência, é uma cidade simpática e gostosa de caminhar. Aqui estava a 450 km de Santiago e foi quando me deu o primeiro frio na barriga.

Dia 11 – Carríon de Los Condes > Leon – 102 km

Em uma rota praticamente plana, também iniciei a minha jornada logo cedo junto com os peregrinos, passando por Calzadilla de La Cueza, Sahagún, Masilla de las Mulas e finalmente Leon. Leon impressiona pela catedral e a Casa Botines de Gaudí. Fiquei no albergue de Santa Maria de Carbajal, enorme com todos os serviços.

Dia 12 – Leon dia de descanso

Era hora de descansar. Meus joelhos já me pediam isso há alguns dias e tinha que me preparar para talvez a etapa mais dura que estava para vir nos próximos dias, a temida subida da Cruz de Ferro e de “O Cebreiro”. Aproveitei esse dia para passear mesmo, conversar com muitas pessoas e conhecer Leon, seus parques, a catedral por dentro, jantar com calma e descansar bastante.

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Dia 13 – Leon > Molinaseca – 101 km

Saí de Leon logo cedo e tive a certeza que estava na Galícia. O tempo mudava muito rápido assim como a paisagem que começou a ser mais verde musgo deixando a aridez dos primeiros quilômetros de lado. Saí de Leon à noite embaixo de uma tempestade que me obrigou a parar num posto de gasolina. Muito frio, mas tinha que continuar e alcançar minha primeira parada, Astorga. Em Astorga, também cidade grande com todos os serviços, novamente parei para admirar mais uma obra de Gaudí, dessa vez, o Palácio Episcopal de Astorga ao lado da linda Catedral de Santa Maria de Astorga. Pausa para lanche e pedal na estrada em direção a Rabanal Del Camino onde o relevo começou a se complicar. Sabia que teria que subir a 1.500 m e estava a 860 m para alcançar Foncebadon, a cidade da Cruz de Ferro. Trecho duro, suado, subida interminável, mas alcancei a Cruz de Ferro, um lugar emblemático entre o céu e a terra. Tomei desvio em direção a Ponferrada mas não resisti em parar e dormir numa cidade no meio do caminho, Molinaseca.

Dia 14 – Molinaseca > O Cebreiro – 62 km

Saí cedo sentido Ponferrada, passando por Cacabelos e Villafranca Del Bierzo. Depois, embaixo de chuva, margeando o Rio Valcarce os temidos quilômetros finais estavam chegando, porém, a subida começou no quilômetro 30 quando em Veja de Valcarce a coisa começou a piorar. A dica aqui é para não se tentar subir pelos caminhos dos peregrinos, trecho totalmente de pedra, ou seja, vá pela carreteira. Alcancei a muito custo Pedrafita do Cebreiro e quando achava que estava lá, fui avisado que ainda faltavam 5 km para o Cebreiro. Valeu a pena, imperdível conhecer e dormir no Cebreiro, mas como a vila é muito pequena, chegue cedo ou reserve antes, senão não rola.

© Nestor Freire

Dia 15 – O Cebreiro > Gonzar – 76 km

Minha viagem estava no fim e minhas energias também. Achando que fosse tudo só uma descida ainda subi mais um pouco antes de começar uma sequência de montanhas passando por Trícastela, Montán e Sarria até Ponferrada. Ponferrada não me agradou muito, queria ficar numa cidade pequena e segui viagem tentando chegar em Palas Del Rei. Entretanto, já com oito horas de estrada e extremamente esgotado acabei parando em Gonzar onde achei um albergue à beira da estrada. Por lá fiquei, dormindo minha última noite antes de Santiago de Compostela.

Dia 16 – Gonzar > Santiago de Compostela – 87 km

Acordei cedo mas tive que aguardar passar um pouco da tempestade. Não sabia se estava feliz ou triste por esse dia, mas tinha que viver a emoção do Caminho. Assim, fui em direção a Santiago passando por Melide e Arzua. Às vezes, diminuía o ritmo, parecia que não queria chegar, mas ao mesmo tempo queria muito me encontrar com a Catedral de Santiago. O último dia não foi fácil, relevo extremamente acidentado e meus últimos 8 km foram de grande expectativa. Minha última parada foi no Monte do Gozo. A essa altura a palavra final era “buen fin de camino”. Sim, o caminho estava chegando ao fim. Nos últimos quilômetros, já dentro de Santiago, avistava a cúpula da Catedral. Essa imagem me marcou e juntamente com um italiano que encontrei na estrada, alcancei a Catedral de Santiago às 16 h 47 min de 17 de setembro de 2014. Feliz, muitas histórias pra contar, muitos amigos pelo caminho, mais confiante em mim e mais próximo de Deus! Realmente, ganhei mais do que eu imaginava ter.