Florianópolis – SC a Gramado – RS

Havia acabado de chegar de uma viagem a trabalho e deveria estar na rodoviária em uma hora para seguir sentido Florianópolis e reencontrar meu amigo, Alex. Há quase um ano ele viajava o Brasil de bicicleta e minha ideia era apenas viajar durante alguns dias com ele e conhecer lugares incríveis. Mas, muito mais do que uma viagem, foi uma lição de vida para mim...

© Alex e Carla Rodrigues

Ainda no ritmo apressado de uma cidade grande, lá estava eu preparando minha bicicleta, colocando os alforjes, a barraca, o isolante térmico e as ferramentas que utilizaria durante a viagem. Nesse primeiro dia, não percorremos grande trecho, na verdade pela primeira vez não estava contando os quilômetros percorridos e estava aproveitando mais cada momento e cada lugar em que passávamos, sem pressa e sem necessidade de cumprir roteiros ou planilhas. Íamos para onde nos indicavam ser bom ou onde teria um lugar para dormir.

Chegamos a Guarda do Embaú, uma cidade litorânea de Santa Catarina com uma pequena praia e vila encantadora. Fomos conhecer um local que nos sugeriram; o acesso era por uma trilha impossível de pedalar, então, seguimos a pé e nos deparamos com uma praia maravilhosa de água cristalina que se complementava com um mirante de vista para o mar.

Ao seguir viagem, nosso próximo destino seria Garopaba, onde ficaríamos na casa de uma amiga que o Alex fez durante a viagem. Seguimos por asfalto e terra até chegarmos à cidade e sermos muito bem acolhidos por ela. Como pode alguém que nunca me viu antes, abrir a porta de sua casa e me oferecer comida e um quarto para dormir?

O pedal seguia tranquilo, por ser uma região plana e sem muito movimento de automóveis. Seguimos para Ibiraquera e eu já estava me preparando para minha primeira experiência de camping selvagem, mas como estávamos com uma sintonia incrível com os lugares e pessoas que encontrávamos no caminho, mais uma vez algo nos surpreendeu. Pedalávamos em busca de local para dormir quando um senhor conhecido como “Mago” nos chamou. Confesso que nem queria parar, pois achei que ele fosse perguntar sobre a viagem e eu queria mesmo era descansar. Parei mais à frente e o Alex foi conversar com ele. A conversa não durou mais que dois minutos: “Mago” apenas perguntou se tínhamos onde ficar e nos ofereceu seu restaurante, que estava fechado devido à baixa temporada. Eu simplesmente não acreditei. Não sabia se a bicicleta nos trazia sorte ou causava algum sentimento de empatia nas pessoas, ou se realmente algo mágico estava acontecendo. Passamos a noite no restaurante, com chuveiro e cozinha.

© Alex e Carla Rodrigues

Seguindo para a Comunidade de Bom Jesus, sugeri pegarmos a região montanhosa de Santa Catarina e passar pela Serra do Rio do Rastro. Ainda na parte plana, entre litoral e montanha, paramos em um restaurante para almoçar. Encontramos alguns rapazes da região que perguntaram sobre nossa viagem e destino. Depois de uma boa conversa, foram embora e quando fomos pagar nossa refeição, já haviam pagado. Será que a magia continuava no ar?

Essas experiências me fizeram acreditar mais no ser humano, porque até aquele momento, todos que nos acolheram fizeram de coração, sem interesse, sem pedir nada em troca. É muito difícil ter contato com situações como essa em nosso dia a dia. Andamos sempre ocupados e desconfiados de tudo e de todos.

Após enfrentar mais um dia de calor, pegamos uma estrada de terra com trechos de subida forte. Tive que empurrar a bike em alguns momentos, pois não aguentava o peso dos alforjes e as pedrinhas soltas no caminho. Não conseguimos chegar ao local pretendido e acampamos na varanda do Centro Comunitário de Bom Jesus, próximo a Imaruí. Quando fomos dormir, um cachorro resolveu aparecer por lá e ficou latindo para as barracas durante mais ou menos uma hora ininterruptamente.

Acordamos cedo para continuar viagem rumo a Lauro Müller, o início da Serra do Rio do Rastro. Ao chegar à cidade, já me preparava psicologicamente para a subida, pois devido à inclinação, é muito difícil. Seguimos até o balneário da região para nos abrigar. Estava fechado. A família morava ao lado, e a princípio ficou bem desconfiada de nós. Até pediram para ficar com nossos documentos, para nos devolver pela manhã. Coloquei-me no lugar deles e imaginei a situação de receber duas pessoas que dizem estar pedalando pelo Brasil, sujos, pedindo um lugar para ficar. Estranho. No dia seguinte, a família toda veio até nós para conversar e acabamos nos tornando amigos. Trouxeram doces e pão que eles mesmos fabricavam. Durante o restante dos dias em que pedalamos, eles nos ligavam para saber se estávamos bem, se precisávamos de algo.

Subir a Serra do Rio do Rastro era a nossa missão do dia. A estrada sinuosa tem cerca de 15 km. Logo no começo, a inclinação era tão sutil que fizemos tranquilamente, também parando bastante para nos refrescar e tirar fotos. A vantagem de fazer subidas de bike é que o visual vai se transformando. A serra foi ganhando novo formato e a cada minuto era uma nova surpresa. Se fizéssemos ao contrário, seria bonito também, mas já começaríamos com a grande surpresa, que é ver a serra inteira lá de cima. Nos últimos cinco quilômetros, a estrada realmente ganha inclinação e tínhamos que parar a cada curva para descansar e se hidratar. No final, mais um sonho realizado. Estava super cansada, mas muito feliz, até que me dei conta de que ao chegar ao topo, o clima também havia mudado: fazia muito frio, tinha uma névoa sobre o local e não conseguimos ver a serra. Além disso, tínhamos que pedalar mais 30 km até a próxima cidade para descansar.

© Alex e Carla Rodrigues
© Alex e Carla Rodrigues

O caminho continuava com algumas subidas e minhas pernas já não eram mais as mesmas. Chegamos em Bom Jardim da Serra e arrumamos um lugar perfeito para acampar, com chuveiro e banheiro. Decidimos ficar mais um dia e voltar ao topo da Serra do Rio do Rastro para curtir o visual, tirar fotos e visitar as eólicas que ficam em frente. Foi um dia muito interessante, com direito a um delicioso chocolate quente em um dos restaurantes da Serra.

Depois, seguimos para São Joaquim, um dos dias mais difíceis, pois estava muito frio e começou a chover. Eu não tinha muitas roupas de frio e ventava muito. Eu tremia dos pés à cabeça. Chegamos ao Snow Valley e pedimos por um quarto para banho quente e descanso. No dia seguinte, saímos cedo para tentar chegar à divisa dos estados.

© Alex e Carla Rodrigues
© Alex e Carla Rodrigues

Na saída de Santa Catarina, ainda em São Joaquim, fomos procurar por um gás para o fogareiro, quando um homem com um gravador nos parou e começou a fazer perguntas sobre a viagem. No final, agradeceu e foi embora. Nem perguntamos para qual veículo de comunicação seria a entrevista, nem ele pediu se poderia nos entrevistar. Durante o caminho, estava aproveitando o visual que agora se transformara em macieiras que perfumavam todo o caminho, quando ouvi um carro se aproximando pela estrada de terra e parou bruscamente em minha frente. Um senhor japonês desceu do carro e perguntou se éramos nós os dois ciclistas viajantes que ele ouviu mais cedo na rádio. Ele disse que assim que ouviu a entrevista, começou a rodar a cidade a nossa procura. Tirou de dentro do carro dois painéis com fotos e mapas da viagem que ele fez pela América de moto com um grupo de amigos e disse que queria nos ajudar no que precisássemos. Ele era dono de uma das fazendas de plantação de maçã e tinha contato em toda a região, caso fosse necessário. Não acreditamos que a entrevista tinha dado esse resultado.

© Alex e Carla Rodrigues
© Alex e Carla Rodrigues

Procurando um local para dormir, resolvemos entrar em uma vila chamada Vila Luizinho e ver se seria possível acampar por ali. Encontramos uma menina de oito anos sentada na porta de sua casa e perguntamos se era possível acampar atrás da igreja. Ela foi chamar sua avó para falar conosco: “vovó, os dois ciclistas que ouvimos hoje cedo na rádio estão aqui fora e querem acampar por aqui”. A avó nos disse que quando ouviu a rádio comentou: “mas bah, quem são esses loucos que estão pedalando por aí?”. E, de repente, lá estávamos nós, diante dela. Ela nos ofereceu local para acampar em sua oficina de costura e nos convidou para jantar com sua família e tomar banho em sua casa. No outro dia, a neta, Lala, ensinou-me a laçar um bezerro, e conhecemos as plantações de ameixas e o rio onde eles passam seus momentos de lazer. Parecia que havíamos nos tornado uma grande família.

Seguimos nossa viagem com algumas maçãs na bagagem e paramos em outra vila não muito distante, já no Rio Grande do Sul, a Vila Faxinal dos Pretos. Novamente, uma família nos ofereceu janta e banho. Era uma família muito simples, que tinha pouco e mesmo assim dividia conosco. Jamais me esquecerei disso.

No dia seguinte, quando paramos para almoçar, também chegaram ao restaurante mais dois ciclistas, irmãos, vindo do Paraná. Decidimos seguir juntos até São José dos Ausentes, e no outro dia, dali a Cambará do Sul para visitarmos os cânions do Parque Nacional Aparados da Serra, mas não conseguimos chegar ao destino. Fomos jantar em um restaurante e pela primeira vez em 15 dias, pude lavar minhas roupas. Após muitas fotos e longas conversas, fomos dormir em nossas barracas. Duas varetas da minha barraca quebraram e tive que remendar com tiras de câmera de bicicleta. Outro problema que aconteceu foi com o isolante térmico, que estava com microfuros e eu tinha que acordar a cada três horas para encher novamente.

Quanto mais nos aproximávamos do sul, mais frio fazia. Cambará do Sul é a porta de entrada para quem visita os cânions. Na primeira noite, fomos pedalar até o Cânion Itaimbezinho. Pegamos uma estrada de terra bastante acidentada e com muitas subidas, mas enfim chegamos ao Parque, que é mais turístico e bastante movimentado. No Cânion do Parque Nacional Aparados da Serra já não encontram-se muitas pessoas e a característica é mais selvagem.

© Alex e Carla Rodrigues

Despedimo-nos dos irmãos, Alemão e Geraldo, e seguimos para o segundo cânion com uma estrada melhor do que o dia anterior, com mais trechos de asfalto e terra não muito acidentada, mas com muita poeira no ar. Depois, partimos para São Francisco de Paula, onde os bombeiros nos acolheram e contaram diversas histórias divertidas que aconteceram na região, inclusive histórias de outros ciclistas que ali ficaram, como nós.

Em Três Coroas visitamos um templo budista no alto de uma montanha com um visual incrível. Finalmente, seguimos para Gramado em um dia que começou frio, mas logo veio o calor do sol e do asfalto. Isso, sem contar na subida que enfrentamos para chegar até a cidade. Achei bem pior do que a Serra do Rio do Rastro quanto à inclinação. Quando chegamos, tivemos uma sensação estranha, pois até o momento passamos apenas por cidades pequenas onde todas as pessoas se conheciam e dificilmente um visitante aparecia de bicicleta. Foi um choque ver tanta movimentação de veículos, pessoas apressadas e o turismo bastante em evidência.

© Alex e Carla Rodrigues

Ali terminava a viagem para mim, embora o Alex continuasse a viajar sozinho. Por isso, foi muito triste me despedir do meu amigo. Eu acabei me acostumando àquele tipo de viagem e descobri como é bom quando você não tem tempo definido, rota estabelecida, regras a cumprir ou preocupação sobre onde passará a próxima noite.

A bicicleta é um “aproximador” de pessoas. Onde parávamos, logo vinha alguém conversar, oferecer comida, banho e local para ficar, sem intenção de ganhar algo em troca. Indico essa experiência de viver o inesperado, de se permitir, ainda mais quando a bicicleta traz facilidades que qualquer outra atividade não traria.

© Alex e Carla Rodrigues