“São 21 h 20 min e finalmente a minha bicicleta está no mala-bike, todos os alforjes e apetrechos devidamente acondicionados e prontos. Às 2 h 30 min pegaremos o transfer de Nova Friburgo – RJ para o Aeroporto do Galeão, rumo a Palmas e depois Ponte Alta do Tocantins, a porta de entrada do Jalapão”. Eu, Rafael Basalo, 42 anos, e meu amigo Fábio de Toledo, 52 anos, estávamos começando nossa Expedição Jalabike: 13 dias e 400 km percorridos em uma das regiões mais selvagens e despovoadas do Brasil, sem nenhum tipo de apoio.

A noite anterior ao início da expedição foi tensa. A ansiedade tomava conta e eu estava quase neurótico, revisando tudo umas quatro vezes. O primeiro dia de pedal começaria às 6 h com destino a Rio Vermelho, 61 km de pedal, mas uma chuva pesada só nos permitiu sair às 10 h e com isso o destino final estava comprometido.

Fomos conhecer o Cânion Sussuapara, que além de muito bonito, nos abasteceu com água potável. Em função da ameaça de chuva e da noite que se aproximava, resolvemos acampar na Cachoeira do Lajeado, após 34 km percorridos, pegando um caminho de areia de 2,5 km que saía da estrada principal. Claro que empurramos todo o trecho e para piorar, o meu pneu furou no início do acesso à cachoeira. Chegamos lá às 18 h, ou seja, com mais uma hora de luz para montarmos o acampamento.

© Rafael Basalo

Acordamos um pouco tarde e demoramos a levantar acampamento. Uma das coisas que uma expedição de bike exige é paciência. São tantos itens a serem guardados e verificados, que exige uma atitude de monge tibetano do biker. Após o café e um banho revigorante na Cachoeira do Lajeado, partirmos.

O calor estava forte e a estrada com costelas e trechos de areia não ajudava. A água acabava muito rápido, e a que restava estava ótima para fazer um chá. Conseguimos água gelada na Fazenda Santim, em que a família do Sr. Neuzi nos recebeu de forma muito carinhosa e acolhedora, nos presenteando com a marca registrada do povo dessa região, a hospitalidade. A fazenda é o único ponto de apoio disponível até o Rio Vermelho e fica a pouco mais de 10 km da entrada da Cachoeira do Lajeado.

© Rafael Basalo

Durante o trecho final de 8 km, São Pedro brincava de tiro ao alvo com a gente, com nuvens de tempestades passando ora pela frente e ora por trás. Chegamos ao Rio Vermelho e lá encontramos um grupo de ciclistas de São Paulo que viajava com carro de apoio e que nos ofereceu um prato de macarrão com atum. Comemos como se fosse a última refeição de um prisioneiro. Dei boas gargalhadas com o meu companheiro Fábio, dizendo que da próxima vez faria o Jalapão com carro de apoio, mas sem a bike. Após o almoço, tomamos um ótimo banho nas águas do Rio Vermelho e foi aí que tive o descuido de beber água não tratada com cloro. Sempre ao abastecer as garrafas, colocava uma pastilha de cloro e aguardava 30 min. Mas a sede era tanta que não resisti e tomei alguns goles encorajado por um morador local. Mais tarde pagaria caro por isso. Tratamos de montar acampamento e descansar. No dia seguinte teríamos uns 50 km até a Cachoeira da Velha. Nesse trecho é importante ser autossuficiente em água. Simplesmente não há água até o destino final. Parece exagero, mas o ideal é carregar de quatro a cinco litros de água. Passamos pela Serra da Muriçoca após uns 10 km, local frequentado por onças pretas e pardas e desaconselhável para acampamento por razões óbvias.

© Rafael Basalo

No trecho final de 30 km, não há sombra. Apenas arbustos e vegetação rasteira. E foi nesse cenário que o meu bagageiro dianteiro quebrou, quase causando uma queda ao travar a minha roda, o que somente não aconteceu devido ao excesso de peso no bagageiro traseiro. Como cuidado paliativo passei a barraca e o saco de dormir para trás, passando a levar a mochila nas costas, que anteriormente estava no bagageiro traseiro.

Ao chegarmos no posto de fiscalização, fomos recebidos pelo guarda parque Guilherme e sua família, que prontamente nos ofereceu um almoço composto por arroz, feijão manteiga e “paçoca”. Fiquei fã dessa última, uma espécie de farofa com carne de sol. Mais uma vez encontrávamos gente disposta a ajudar. Essa era a mágica produzida pela bike em uma viagem.

© Rafael Basalo

Montamos as barracas abrigados em uma construção onde antes funcionava um hotel. Na verdade estávamos onde outrora foi a fazenda do famoso traficante Pablo Escobar. Passamos a noite conversando com um casal do Rio de Janeiro que fazia o Jalapão em um 4×4 alugado, Maurício e Luciana. Teríamos outros dois reencontros com o animado casal. Resolvemos passar um dia inteiro lá e partimos no dia seguinte com as bikes, sem alforjes, é claro, para conhecermos a Cachoeira da Velha e a belíssima praia do Rio da Velha. A praia de rio era incrível e foi difícil sair de lá.

Resolvemos preparar o nosso almoço por lá mesmo. Um grupo grande de turistas acabava de chegar e nós éramos a atração. Diversas perguntas e questionamentos foram feitos. Alguns deles comuns a todo cicloturista: “Mas porque não viajam de carro ou moto?”, ou “Vocês são loucos!”. Essa última me fez lembrar de uma situação ocorrida com um amigo que viajava sozinho de moto. Ao parar em uma casa para pedir informações, o rapaz que o atendia da janela disse: “Mas o senhor é louco”. E o meu amigo respondeu: “Louco é o senhor, a ficar o dia na janela vendo a vida passar”!

© Rafael Basalo

Definitivamente não há janela melhor para o mundo do que uma bike! Uma janela móvel e que não filtra nada. Sente-se tudo e todos. A ideia de passar o dia por lá foi providencial, pois no dia seguinte teríamos a etapa mais longa e dura da viagem, 86 km até as Dunas do Jalapão. Saímos às 4 h da manhã e em completa escuridão, em uma região habitada por onças. O silêncio era completo e fazia um enorme barulho em minha mente. O início do trecho após a bifurcação Rio Vermelho-Dunas apresentava uma prévia do dia: areia, costelas e pedras. É um trecho que requer cuidado, pois algumas pedras são pontiagudas e podem cortar um pneu facilmente. Além disso, só encontramos água após 50 km, no Rio Frito Gordo. Uma dica importante na região é ficar de olho em Buritis e na vegetação mais alta, que são indicadores de água. Claro que colocávamos cloro na água por precaução.

Chegamos em um bar perto do Rio Novo, o primeiro bar após quatro dias de expedição. Tínhamos percorrido 70 km e tratamos de comer uma “paçoca”, e beber algo que não fosse água morna com refresco em pó, além de relaxarmos um pouco nas águas do Rio Novo. O trecho final de 13 km até o bar da Benita, local do próximo acampamento, era pura areia. Fui testado ao limite, empurrando a pesada bike em quase 50 cm de areia. Foi um martírio. Mas claro, não há bônus sem ônus. O bar da dona Benita é o único ponto de apoio na região das dunas e ela conta com uma área de camping nos fundos, com chuveiro e redes. Tudo muito simples, mas suficiente.

© Rafael Basalo

O Jalapão é bruto!

No dia seguinte partimos para o trekking rumo ao topo da Serra do Espírito Santo. São 8 km de bike até o início da trilha. Deixamos as bikes presas a uma placa informativa e subimos. É uma trilha curta até o topo, mas exigente fisicamente. A vista lá de cima é indescritível. A imensidão do Jalapão se descortinava ante nossos olhos! No topo do platô há uma trilha de 3 km que leva a um ponto onde se tem uma vista das dunas, criadas pela erosão da própria serra. O visual é de tirar o fôlego.

Voltamos para a Benita e visitamos as dunas. São 5 km a partir do camping. Pegamos carona com um amigo que fizemos lá, o Robson. Sem o seu Jeep seria impossível ir, a não ser a pé. O local é lindíssimo, com pequenos riachos de água cristalina por entre as dunas. A estrada de acesso é um areal sem fim. Ficamos lá até de noite e foi interessante ver pegadas de onça na areia iluminada por nossas headlamp´s. No dia seguinte, ao levantar acampamento rumo a cidade de Mateiros, distante 45 km, vi que o pneu da minha bike estava furado. Após o conserto, partimos rumo a Mateiros. E qual não foi a surpresa ao constatar novo furo após 1,5 km. Tive um ataque de riso e lembrei da frase em um adesivo que vi em Ponte Alta: “O Jalapão é bruto!”. E é mesmo! O pneu furado era o menor dos problemas agora. A cadela “Tramela” da dona Benita nos seguia a uns 10 km e estávamos preocupados, pois era uma região sem água. Encontramos o guarda parque voltando para as Dunas de Jeep e ele deu uma carona para a Tramela. O pedal até Mateiros foi tranquilo e existem dois pontos com água.

Mateiros é uma cidade sem muita estrutura e com poucas opções para alimentação, sendo conhecida como a capital do Jalapão, já que localiza-se no centro dessa região, ponto de partida para os diversos atrativos. Optamos por ficar em um hotel, para repor as energias e ter um pouco de conforto. Passamos o dia seguinte conhecendo a comunidade quilombola de Mumbuca, responsável pela colheita e pelos artesanatos com o famoso capim dourado.

O grande atrativo do local são as pessoas. Poder conversar com representantes de diversas gerações de Mumbuca não tem preço. Partimos para o famoso Fervedouro do Ceiça. Trata-se de um afloramento de água sob pressão em que é impossível afundar. É uma experiência bem estranha e desconcertante. Tão interessante quanto o próprio fervedouro, é escutar as estórias e lendas do Ceiça sobre caçadas e onças. Imperdível. Passamos a tarde na Cachoeira do Formiga, local de extrema beleza com águas cristalinas. Fizemos os passeios de carona no Jeep do nosso amigo Róbson, uma vez que esse trecho seria refeito no dia seguinte com as bikes carregadas. Para quem vai de bike, a Cachoeira do Formiga é um ponto interessante para acampar, e serve como ponto de partida para Mumbuca e o fervedouro… Os proprietários tem um bar bastante sortido e preparam refeições. Esses locais ficam a mais ou menos 35 km de Mateiros. Digo mais ou menos, pois Mumbuca e o fervedouro do Ceiça ficam na mesma estrada, a 10 km e 1,5 km da estrada principal, respectivamente. Para a Cachoeira da Formiga, basta seguir um pouco à frente na principal e pegar uma estrada à direita de areia. O que dá uns 4,5 km até lá. Nesse caso, aconselho ficar por lá uns dois dias, deixando os alforjes no camping do Formiga. Mas devido aos atrasos em nossa programação, optamos por deixar as bikes em Mateiros e seguir de carro. Às 17 h resolvemos voltar para Mateiros, porém, o carro não funcionava. Era algum problema no motor de arranque e para nosso azar éramos o último veículo no Formiga.

© Rafael Basalo

A noite cai rapidamente e enquanto o Róbson e o Fábio desmontam o motor de arranque para consertá-lo, eu tinha febre, calafrios e fraqueza. Estava deitado no banco do carro coberto por uma toalha. A água do Rio Vermelho cobrava o seu preço. Dormimos por lá mesmo, instalados em redes. Voltamos para o nosso hotel em Mateiros e arrumamos tudo para o nosso próximo destino, o camping do Arnor, distante uns 45 km. Após 10 km percorridos, a bike do Fábio tem o pneu traseiro furado. Ao consertá-lo uma terrível constatação, o pneu estava rasgando na região em contato com o aro e não tínhamos pneu reserva. É, o Jalapão é mesmo bruto. O camping do Arnor é interessante, pois além de refeições e área coberta, possui um fervedouro e um rio limpíssimo para banho.

Acordei de madrugada com forte diarreia e vômitos, não conseguindo mais dormir. Estava tão fraco que não conseguia sequer desmontar a barraca e teríamos pela frente 45 km de pedal duro até São Félix do Tocantins, uma pequena cidade já no final do Jalapão. A situação era bastante complicada, pois além do meu péssimo estado de saúde e do pneu rasgado do Fábio, o nosso prazo para chegar a Palmas e pegar o voo de volta estava se esgotando. Fábio resolveu passar o pneu rasgado para a dianteira da bike, o que amenizou a situação. No meu caso, uma boa dose de coragem e insanidade me colocaram novamente em cima da bike. O Sr. Arnor nos aconselhou a ficar mais um dia e pegarmos um ônibus que passaria por lá na outra manhã com destino a São Félix. Mas eu ainda tinha forças para lutar e seguir. Após 15 km comecei a ficar muito fraco. Foi quando encontramos um bar e foi a salvação. Tomei alguns refrigerantes para repor o açúcar e comi algo. Foi uma parada interessante. Haviam umas 10 pessoas sentadas em roda e conversando. De vez em quando alguém saia e alguém chegava, e o ritual era o mesmo. Cumprimentar um por um com um aperto de mão e um sorriso sincero.

Os mais novos sempre pediam benção aos mais velhos. Não havia Wi-Fi e a conexão e compartilhamentos eram feitos ao vivo. Ninguém tinha smartphones com suas incríveis telas touch screen. O touch era direto, em meio a abraços e gargalhadas. Ficamos um tempo contando a nossa viagem para eles. Foi um momento inesquecível da viagem, perceber que a vida para ser plena, basta ser simples. Eles nos informaram que haveria um outro bar 16 km à frente. E tinha mesmo, mas infelizmente estava fechado.

© Rafael Basalo

Nesse momento, após 30 km, eu estava completamente esgotado. Mal conseguia ficar em pé. Me instalei em uma cadeira e fiquei em repouso por algum tempo. Sabia que o trecho final era de areia e sabia também que teríamos, no dia seguinte, mais uns 85 km até o camping do Camilo na Serra do Gorgulho, último atrativo do Jalapão. De lá teríamos mais 74 km até a cidade de Novo Acordo. Recuperei um pouco da minha energia e seguimos. Mas após 4 km parei de vez. Não tinha mais energia e estava esgotado. Paramos em uma casa para pedir água e aguardar um milagre. E ele veio na forma de uma caminhonete de turistas gaúchos que nos deram uma carona no trecho final de 15 km até São Félix. A Expedição Jalabike terminava ali…

Procurei uma farmácia para comprar medicamentos e a moça me disse que outras pessoas também chegaram a São Félix com o mesmo quadro que o meu, ou seja, contaminação por bactéria. O meu quadro se agravou durante o pedal devido não apenas ao esforço, mas à desidratação. Nos instalamos em um hotel simples e pegamos o ônibus no dia seguinte para Palmas. A viagem de ônibus foi uma aventura à parte. Estava completamente lotado e nós seguíamos em pé. De vez em quando os passageiros desciam para o ônibus atravessar um trecho de areia. A viagem durou 8 h até Palmas.

Durante a viagem pude perceber que a condição da estrada era bem ruim, com muitos trechos de areia e seria impossível percorrê-lo no estado em que me encontrava. O trecho final da viagem até o camping do Camilo na Serra do Gorgulho era bastante monótono e, na verdade, os grandes atrativos do Jalapão ficavam localizados até o camping do Arnor. Tínhamos programado um percurso que foi alterado em seu cronograma e roteiro devido aos percalços da viagem. O caminho se faz ao caminhar, e vivenciamos isso na pele durante a Expedição Jalabike. Foi tudo como tinha de ser. Os encontros, desencontros e os atrasos.

© Rafael Basalo

Considerações finais

No Jalapão é importante ter jogo de cintura para se adaptar às diversas situações que vão surgindo. Requer preparo físico e emocional, bem como um planejamento apurado. É necessário autossuficiência em água e alimentos. Podemos dividir a viagem em duas partes. A primeira, mais selvagem e sem muitos pontos de apoio, que vai de Ponte Alta do Tocantins até as Dunas, passando pela Cachoeira da Velha. A segunda parte, das Dunas até São Félix do Tocantins, com maior densidade demográfica, mais pontos de água e de apoio. A orientação e navegação no Jalapão são simplificados, uma vez que basta permanecer na estrada principal, saindo da mesma em alguns trechos, como por exemplo, para conhecer a Cachoeira da Velha ou a comunidade de Mumbuca. A logística requer organização apurada, em função das distâncias a serem vencidas e dos pontos de água. É importante organizar os pernoites sempre perto de rios e córregos. As partes de areia perfazem algo em torno de 15% do trajeto, apresentando-se como trechos de 200 m a 500 m. Embora no trecho final do camping da Benita, vindo do Rio Novo, seja praticamente 10 km de areia ininterruptas.

Mas como disse Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O melhor do Jalapão é a sua gente, sempre disposta a ajudar e acolher. Foi uma viagem dura, um desafio que nos testou e ensinou. Ensinou um pouco mais a respeito de nós mesmos e desse país continental.

“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. O melhor do Jalapão é a sua gente, sempre disposta a ajudar e acolher. Foi uma viagem dura, um desafio que nos testou e ensinou.