Traçar os planos de uma nova viagem de bicicleta, no fundo, significa fazer a grande renúncia de não visitar tantos outros lugares. Por melhor que seja o mapa, ele não diz o que devemos fazer. Nossos sonhos de viagem apontam o destino que devemos seguir.

Ao visitar o Salar Grande (Argentina, 2000), fiquei encantado com a experiência e cultivei o sonho de pedalar pelo maior salar do mundo, o Uyuni (Bolívia). Como gostamos de montanhas, nosso circuito “perfeito” incluiria pedalar pelo Altiplano, conhecer a Cordilheira Real, a rota das Lagunas no sul de Lipez (Bolívia), o Atacama (Chile) e ao final visitar um amigo em Jujuy (Argentina). Nunca sentimos tão drasticamente as consequências de nossas decisões como nessa viagem.

A praticidade de pousar em La Paz e logo começar a descer nos persuadiu. Ao invés de pedalar em direção a grandes altitudes, o que ajuda o corpo a se acostumar com o ar rarefeito, começávamos num aeroporto a quatro mil metros sobre o nível do mar. Sentimo-nos como velhos asmáticos, mas vimos turistas recémchegados indo à enfermaria inalar oxigênio.

Do alto, La Paz parece uma grande favela que começa num buraco e se espalha pelos morros, depois percebemos que não é tão ruim assim. Caminhamos até o centro turístico sem temor, mesmo com os gritantes contrastes entre os modernos arranha-céus da aristocracia e as barraquinhas das “cholas”, que após a lei antirracismo podem finalmente caminhar livremente pela cidade.

© Rafaela Asprino

Mais impressionante que a parte histórica da cidade são as montanhas ao seu redor. Com relevo extremamente acidentado um metrô seria inviável, sendo assim, uma rede de teleféricos foi construída para desafogar o trânsito. Lenta e silenciosamente, subimos e descemos com o teleférico contemplando os picos nevados da Cordilheira Real, o Huayna Potosi ao norte, o Ilimani a leste e apreciando as melhores vistas da cidade.

Após o terceiro dia na capital, cansados de ver o tempo passar enquanto nos aclimatávamos, decidimos seguir e “descer” a Cordilheira Real. Nunca acredite se alguém disser que a estrada só desce. O centro de La Paz está a cerca de 3.800 m de altitude e o passo para descer fica a 4.526 m. Até lá tivemos que descer e subir duas vezes. Sob o efeito da altitude as pedaladas rendiam pouco. No primeiro dia atravessamos o passo de Las Animas (Almas) (4.200 m) e começamos a contornar o Ilimani em uma tranquila paisagem rural.

Ainda nos arrabaldes da capital, numa parada de descanso, um senhor veio conversar com a gente. Até aquele momento, nossas experiências eram as de um turista convencional: aeroporto, táxi, pousada, passeios pelo centro… Mas a bicicleta já iria começar a nos ajudar a conhecer outras realidades.

© Rafaela Asprino

A primeira coisa que percebi, além da roupa surrada, foi sua dificuldade em falar espanhol. Ele explica que está mais acostumado a falar Aimará (que eles pronunciam Aimára). Com educação e humildade me pergunta se tenho algum remendo para câmara de ar. No começo da viagem foi fácil entregar alguns para ele. Por último, ele me pergunta quanto eu cobraria.

Aquele homem foi como um símbolo do que estaria por vir. Espanhol é sua segunda ou terceira língua, mesmo sem ter tido acesso a educação formal. Ele pedia um remendo de câmara por que a bicicleta não é um veículo muito utilizado na Bolívia; num país sem indústrias tudo deve vir de fora, para piorar, sem acesso ao mar, às vezes pequenos bens específicos são raros.

Até aqui tudo que aprendi com ele poderia ser lido no google – procure por Guerra do Pacífico entre Chile, Peru e Bolívia ou leia o clássico livro “As veias abertas da América Latina” e encontrará estes dados. Mas existem coisas que só aprendemos visitando o país com um veículo que facilita o relacionamento com as pessoas. Por último ele me pergunta:

=Quanto lhe devo?

© Rafaela Asprino

Apesar de minhas roupas e estilo indicarem que sou um “gringo”, supostamente de um país mais rico, ele não estava me pedindo esmolas… O povo daqui se mostraria sofrido e pobre, mas muito honesto.

Antes do governo de Evo Morales, as mulheres vestidas com trajes típicos, chamadas carinhosamente de “cholas”, eram proibidas de andar pelo centro e áreas nobres de sua própria capital. A tradição das vestimentas já é uma imposição espanhola, mas o chapéu coco começou no início do século passado com a vinda da ferrovia.

© Rafaela Asprino

Depois do passo Pacuani (4.526 m) começamos a incrível descida de mais de três mil metros. A discrepância entre as paisagens aumenta por estarmos perto da linha do Equador (quase a mesma latitude de Porto Seguro – BA), e rapidamente passamos da aridez altiplânica para a exuberância da floresta amazônica.

No quinto dia de pedal encontramos um restaurante na hora do nosso almoço. Duas vans chegavam e decidimos experimentar a comida local junto com o pessoal. Só tinham “PF”, podia ser frango ou porco. Pedimos um de porco e tivemos mais uma aula de cultura. Entregaram-nos o prato cheio, mas não deram garfo ou faca. O uso de talheres, que vem da cultura europeia, pelo jeito até agora não influenciou as pessoas daquele local.

Começamos a perceber como é simples a culinária desse povo. No prato vinha uma porção de carne de porco tenra e saborosa, salada de alface, tomate e cebola, uma banana assada e três tipos de tubérculos cozidos (batatas), servidos com casca e tudo, sem tempero ou elaboração especial. Enquanto comíamos na parte externa do restaurante, o motorista descarregava mercadorias do teto da van. Num dado momento, ele puxou de dentro de um engradado plástico dois frangos depenados e “prontos para consumo”, com a cor da pele amarela alaranjada, como se tivesse recebido um banho de coloral para suportar aquela longa viagem desde La Paz com tanto sol e sem refrigeração. Fiquei pensando como foi bom não termos escolhido frango em nosso “PF”.

© Rafaela Asprino

Dos -5°C do alto passamos a enfrentar calor úmido e chuvas torrenciais diárias. Nos dois lados da estrada vimos surgir plantações de coca, que é legalmente produzida nessa região. Considerada uma das áreas mais ricas da Bolívia, os agricultores vão ao campo com seu próprio veículo importado do Japão. Plantar coca nos pareceu um bom negócio: um saco de suas folhas vale três vezes mais que uma lhama viva, com lã e tudo.

Mascar coca é uma tradição milenar em todos os países tocados pelo Altiplano Andino. Nos morros existem terraços da época dos incas que seguem produzindo coca. As folhas podem ser colhidas a cada três ou quatro meses, a planta deve ser podada a cada quatro anos e mantem-se produtiva por vinte anos, quando deverá ser substituída.

As folhas são secadas ao sol antes do consumo e vendidas a granel ou em pequenas bolsas plásticas. É comum tomar chá de coca, mas a maioria coloca um punhado de folhas na boca, masca um pouco, mantem as folhas no canto da boca por um tempo, e repete o processo até a folha perder o sabor e ser cuspida. Sim, sentimos uma certa euforia ao mascar coca, mas folha de coca não é cocaína, que agrega várias outras substâncias em sua composição e, de toda forma, são necessárias muitas folhas para fazer um único grama de cocaína.

© Rafaela Asprino

Permanecemos na faixa dos mil metros de altitude, a estrada subia e descia de forma íngreme sempre que tínhamos que atravessar um rio, até chegar a Coroíco.

A estrada de Coroíco à La Paz já foi considerada líder mundial de acidentes fatais, ganhado a alcunha de “Estrada da Morte”. Atualmente uma moderna rodovia com pista dupla utiliza boa parte do seu leito original, entretanto as partes mais íngremes e perigosas foram preservadas e se transformaram num parque que é um dos destinos turísticos mais concorridos da Bolívia.

Iríamos começar a subir a Estrada da Morte logo cedo, mas optamos por participar de uma festa especial. Na manhã do dia 21 de junho, solstício de inverno, antes de nascer o sol, nos juntamos a uma pequena multidão no alto do morro do Calvário para comemorar o ano novo amazônico. Como nossa cultura vem do hemisfério norte, costumamos contar os anos mais ou menos no final do inverno daquele hemisfério, quando tudo começa a se renovar preparando a primavera. Da mesma forma os Aimarás contam os anos no solstício de inverno do hemisfério sul, onde sempre viveram.

© Rafaela Asprino

Ficamos emocionados ao participar dos festejos junto com o povo, em volta de uma grande fogueira onde entoaram cânticos, dançaram e fizeram oferendas, numa tradição que não sucumbiu aos incas, aos espanhóis ou à sociedade de consumo e mantem-se viva há 5.523 anos.

Durante os próximos três dias só pedalamos morro acima. Cruzamos o passo La Cumbre (4.671 m) com forte nevoeiro e, muito desgastados, voltamos a sentir os efeitos da altitude. Dormimos em El Alto (região metropolitana de La Paz), seguimos para norte em direção à base do Huaina Potosi e acampamos a seus pés, sozinhos, na beira de um belo lago. À noite a temperatura baixou para -8°C e nos despedimos da Cordilheira Real, seguindo em direção oeste.

O asfalto nos levou rapidamente até as ruínas de Tiwanaku. Mais antigas que as ruínas incas, os enormes blocos de pedra pesando mais de 100 toneladas são considerados Patrimônio Mundial pela UNESCO e orgulho dos bolivianos. É fascinante ver esse legado de perto, analisar as formas e entalhes que se mantem perfeitos até hoje. Entretanto, foi na cidade de Tiwanaku, nos festejos de São Pedro, que tivemos as experiências mais marcantes, afinal, pessoas são mais que lugares.

© Rafaela Asprino

Continuando rumo oeste, chegamos às margens do Titicaca e viramos à esquerda, deixando o asfalto para entrar no rípio. A Rafa encasquetou de conhecer Tripartito, uma vila no encontro de três fronteiras: Chile, Peru e Bolívia. “Mas por que não foram para o Titicaca, a Ilha do Sol, Ilha da Lua, passeio de barco de junco e tal?” Temos percebido que com a atual exploração turística generalizada, às vezes o melhor circuito para uma aventura de bicicleta é seguir um caminho menos conhecido. Sem muita informação sobre esse trajeto, ao invés de nos sentir cumprindo um roteiro que persegue todas as famosas atrações turísticas existentes no país, tínhamos o sentimento de nos aventurar por um caminho onde tudo é novidade e nos impressionamos com o acervo arquitetônico das vilas por onde passamos.

O caminho de terra era ruim, mas como o relevo é plano, os poucos ciclistas da região conseguem impor uma rota alternativa em meio aos arbustos, o que chamamos de “ciclosendero”, quase uma ciclovia. Assim, avançávamos rápido e nos maravilhávamos com vastidões imensas e paisagens inusitadas que, se fossem dentro do território dos Estados Unidos, já teriam sido declaradas “Parque Nacional Mundo Lunar” ou algo assim. Mas no interior da Bolívia, uma formação rochosa como essa não tem nome e está lá esperando a visita de quem desejar conhecê-la.

© Rafaela Asprino

Além de um marco com o nome dos três países não há muito para ver em Tripartito. Acampamos em seus arredores numa depressão do terreno para nos proteger do vento, que começou a soprar forte. No meio da noite veio a neve e encobriu a barraca. Na manhã seguinte, sem muitas provisões, continuamos nossa viagem em um clima bem feio.

A cada noite registrávamos um novo recorde de temperatura negativa. Durante o dia era agradável pedalar; atravessar os rios congelados que cortam a estrada era nosso grande problema. Ao lado do Parque Nacional Sajama registramos a temperatura de –20,6°C, o novo limite de conforto para nosso equipamento (para saber mais leia nosso artigo “Mil e uma maneiras de passar frio” na edição número 59 – jan/fev. 2016).

Comprar comida também não era fácil. Muitas cidades estavam abandonadas e as pequenas vendas tinham pouco a oferecer. Em Charaña, cerca de 210 km de La Paz, mesmo o pão vinha por estrada de terra desde a capital no teto do ônibus, pois não existe eletricidade nem madeira para assar.

© Rafaela Asprino

Todos nós brasileiros já ouvimos falar sobre as enormes reservas de gás natural da Bolívia, dentro do país um botijão de gás custa a metade do valor que pagamos no Brasil, mas não quer dizer que as pessoas tenham acesso a essa facilidade. Nos “hotéis” dos povoados que passamos não há calefação a gás, quando tem chuveiro quente, é com aquecimento solar ou uma ducha elétrica importada do Brasil. Parece que o boliviano não se incomoda muito com o frio, e por enquanto poucas cidades contam com distribuição de gás encanado.

Quando comprava um produto em um país árabe, sempre tinha que pechinchar e negociar, mesmo que fosse só um tomate. A soma era feita de cabeça em uma velocidade incrível e tinha que ficar esperto, pois era comum eles colocarem algo a mais na soma. Na Bolívia era o contrário, sentíamos no povo uma inocência própria de uma nação índia, por vezes erravam a conta para baixo e tínhamos que os corrigir.

Nas pequenas vilas que passamos todos produzem os mesmos alimentos para subsistência, e a vendinha oferece somente artigos industrializados. Quando pedíamos para comprar batatas, que todos produzem, a intuição era doar algumas para nós, se tivessem sobrando, e demoravam a compreender que queríamos comprar algo que a rigor todos da vila têm.

A partir do Parque Nacional Sajama (montanha mais alta da Bolívia – 6.542 m), entraríamos no Chile para percorrer uma das regiões mais desoladas do país. Saímos de Tambo Quemado (Bolívia) carregados com comida para cinco dias, pedalando morro acima e contra forte vento, que geralmente sopra do Chile para o interior do continente.

© Rafaela Asprino

As dificuldades do relevo de um circuito são reconhecidas em um bom mapa, entretanto, a variante “vento” pode mudar tudo e um caminho de cinco dias pode facilmente se transformar em um caminho de dez dias. O vento forte causa muitos inconvenientes, por si só ele aumenta a sensação térmica em vários graus, aumentando o frio que já sentíamos. Mesmo com uma barraca estável e forte, as rajadas abruptas nos assustavam. No entardecer começávamos a buscar algum abrigo para garantir um sono mais tranquilo: uma depressão de terreno, um arbusto, casas, currais, celeiros, chegamos a usar até as dependências de um quartel de carabineiros de fronteira.

O vento forte não parou, mas a partir do meio do circuito começou a soprar mais ou menos pelas costas, o que também gera incômodo e dificuldades, mas é muito melhor que vento de frente.

Nestes poucos dias entramos e saímos de quatro parques nacionais: Lauca, Las Vicunhas, Salar de Surire e Vulcão Isluga. A área é tão remota que não há controle ou taxa de visita, só vulcões ativos e vicunhas passeando livremente.

© Rafaela Asprino

No meio da estrada vimos uma casinha com uma placa: “Termas de Churiguaya”. A porta meio destruída estava destrancada e dentro havia uma piscina de pedra com um cano saindo água quente. Imediatamente entupimos a saída da água e a piscina encheu até o ladrão (quase um metro de pura água aquecida pelo vulcão mais próximo). No último hotel que ficamos, na turística área do Parque Sajama, a temperatura no quarto chegou a 1°C e não havia água de manhã, pois o encanamento congelava durante a noite. Só depois de passar frio por tanto tempo é que podemos valorar um banho quente e explicar a euforia da Rafa, que parecia uma criança brincando na água.

Em direção ao salar de Surire o caminho melhorou, mas tínhamos que compartilhar a estrada com caminhões transportando sal. Apesar de ser um parque, há uma grande mineradora no salar e não é permitida a entrada. A partir daí o mapa dizia que entrávamos em região de campos minados, mas víamos caravanas com cinco ou mais carros bem cuidados, sem placas de licenciamento, passar a todo tempo. Descobrimos que eram veículos chilenos regulares que receberam baixa em seus registros e por isso não tinham placa. Eles seriam abandonados em um local específico da fronteira para serem resgatados por contrabandistas bolivianos, evitando os vultuosos impostos de importação cobrados no país. Não me pergunte como eles legalizam (se é que é preciso fazer isso), só conhecemos o milagre e não o santo.

Despedimo-nos do Chile com um banho em mais uma terma (Enquelga), dessa vez a céu aberto. Tudo foi difícil e tenso, mas o forte tempero da aventura deu um sabor especial a esta rápida incursão ao Chile. Isso sem falar na beleza da região que atingiu seu ponto mais alto quando atravessamos o Cânion do Parque Nacional Vulcão Isluga. Numa garganta estreita (Quebrada), o Arroyo Sencata fica semicongelado antes de desaguar no rio Isluga e atrai várias espécies de animais domésticos e selvagens.

Números da viagem

  • 2.710 km pedalados
  • 30.676 m de ascendentes acumulados
  • 30.229 m de descendentes acumulados
  • Maior altitude em acampamento: 4.860 msnm (Geiser Sol de Mañana – Bolívia)
  • Temperatura mínima: 22,4 graus negativos (Laguna Hedionda – Bolívia)
  • Temperatura máxima: 46 graus (Vila Jardim de Reyes – Jujuy – Argentina)
  • Altitude máxima: 4.944 m (Passo Sol de Mañana – Bolívia)
  • Altitude mínima: 1.086 m (Rio Tamampoya – Coripata – Bolívia)
  • Dias da viagem: 79 dias em bicicleta/ 2 dias de trekking/ 26 dias de descanso e visitas/ 4 dias entre ônibus e voos para acessar e sair da região.
  • Total: 111 dias de viagem
  • Partida: 06/06/2015
  • Retorno: 25/09/2015
© Rafaela Asprino

Atravessamos a fronteira em Psiga e já estávamos ao lado do Salar de Coipasa, o segundo maior salar da Bolívia, que só não está ligado ao grande Uyuni por causa da Serra Intersalar.

No verão, o salar é coberto por uma pequena lâmina de água que vai secando até que, no inverno, se torna duro a ponto de suportar o peso de um caminhão. Os veículos trafegam o máximo possível pelas margens, em terra firme, justamente onde a umidade permanece por mais tempo. Existem rotas mais ou menos predeterminadas no salar, mas nós queríamos pedalar livremente seguindo rumo sul. Parecia um sonho de suavidade. Os cristais brilhantes davam a impressão de pedalar sobre o mármore. Nas margens, a concentração de sal diminuía e a cristalização em polígonos nos brindava com desenhos incríveis. Logo descobrimos por que há caminhos tradicionais no salar.

Seguindo em linha reta, tivemos que enfrentar áreas alagadiças ou macias demais, onde o melhor era simplesmente empurrar a bicicleta. Foi muito mais difícil do que dar a volta pelo caminho tradicional, mas sentíamos que começávamos a viver nosso sonho.

A cidade de Llica está à beira do Salar de Uyuni e representa um bom ponto para descansar e reabastecer. Saímos carregados, pois a Isla Incahuasi, que está no meio do salar, poderia não ter muito a oferecer.

© Rafaela Asprino

Com vento moderado e terreno plano, três dias seriam suficientes para atravessar o Uyuni. Há quem atravesse o salar em um dia, pois são cerca de 120 km, mas nosso interesse era ficar a maior quantidade de tempo possível nesse local único.

Apesar de menos conhecido, consideramos o Salar de Coipasa mais belo. Com uma capa de sal mais fina, poucos veículos se aventuram por lá. Quando um pouco de terra aflora, as cores e os desenhos se diversificam e o cenário se torna dinâmico e imprevisível.

Mas o Uyuni é imaculado, é gigante! Não tenho palavras para descrever tanta beleza e a satisfação de realizar esse sonho antigo. Nas vastidões onde acampamos não havia cercas ou muros de propriedades, nos sentíamos livres para pedalar em qualquer direção naquelas planuras brancas e percebemos que a natureza não tem um único dono. Todo aquele que toma o tempo de apreciá-la se torna o proprietário dos fugazes momentos de extrema beleza que ela nos oferece com tanta generosidade.

Numa das poucas ilhas do caminho peguei uma pedra para bater as estacas da barraca. O sal é duro, mas à noite ele deixa passar o frio da umidade que está logo abaixo. Durante o dia, a superfície brilhante aquece ligeiramente o ar junto ao solo, causando o fenômeno da difração da luz que provoca “miragens”. Os longínquos morros às margens do lago de sal parecem estar flutuando no horizonte, mesmo sem ter mascado coca.

© Rafaela Asprino

Depois do Uyuni, paramos em San Juan del Rosário e vimos seus famosos hotéis feitos com blocos de sal. Seguimos até a estação Avaroa (onde até a água tem que vir de trem), na linha que escoa o minério boliviano para o porto chileno, e um pequeno quiosque era nossa última chance de abastecimento antes de entrar na rota das Lagunas. Calculamos que deveríamos levar comida para pelo menos dez dias e compramos tudo que tinham para oferecer. Mesmo assim, não foi suficiente e atravessamos a fronteira para comprar no Chile. A cinco quilômetros, em Ollagüe (Chile), encontramos outro mundo onde pudemos comprar de tudo e com qualidade, inclusive frutas e legumes. No meio daquele deserto, a moderna praça da cidade tem até Wi-Fi livre.

As bicicletas nunca ficaram tão pesadas, pois além da comida carregávamos oito litros de água cada um. Nessa hora fiquei feliz por ter retirado os amortecedores da bicicleta.

não há como voar sem tirar os pés do chão.

A região da Rota das Lagunas é um grande deserto onde somente ousados pastores se dignavam a levar seus animais para pastar durante o verão. Entretanto, suas belezas naturais a transformaram num roteiro “obrigatório” para todos que se deslocam entre o Uyuni e San Pedro de Atacama. O fluxo turístico criou a rota de cerca de 260 km que passa por várias atrações incríveis do Sul de Lipez: Laguna Cañapa, Laguna Hedionda, Laguna Chiar Kota, Laguna Honda, Árvore de Pedra, Laguna Colorada, Gêiser sol de Mañana, Termas de Polques, Deserto de Dalí, Laguna Blanca e Laguna Verde.

© Rafaela Asprino

Enfrentamos estradas ruins por toda a Bolívia, mas ali era diferente… As estradas eram muuuuiiiito ruins! Às vezes parecia que estávamos pedalando por um campo recém-arado. Conforme a estrada vai ficando impraticável os veículos 4×4 que levam os turistas abrem novos caminhos ao lado do principal, por vezes tínhamos a nossa frente uma dezena de vias para escolher, uma pior que a outra…

Na Laguna Hedionda registramos -22,4°C, a temperatura mais baixa da viagem. Acordamos tremendo de frio e só conseguimos nos aquecer quando surgiu o sol. Algumas vezes nessa viagem me descuidei e quando percebi estava com pre-hipotermia (comento mais sobre esse tema no artigo “Mil e uma maneiras de passar frio” na edição número 59 da Revista). Quando a temperatura corporal abaixa, as defesas de nosso organismo reagem de forma a preservar a vida, protegendo os órgãos vitais. Começamos a tremer forte e de forma compulsiva para gerar algum calor. Os vasos, principalmente os periféricos, se contraem a fim de manter mais sangue e calor nos órgãos internos. O sentimento é muito estranho e ruim, pois quase não dá para articular a boca e mesmo que dure somente umas dezenas de minutos, parece que não vai terminar nunca. Cobria-me com todos os agasalhos e ficava deitado até conseguir me aquecer e relaxar.
As mulheres geralmente sentem mais frio que os homens (pode chegar a 5°C de diferença). Para piorar, a Rafa ainda tem pouca circulação nos pés. Todas as noites sentia certa tensão, como se nunca fosse dormir, demorava até conseguir aquecer os pés gelados e relaxar. Muito parecido com o que senti nos minutos de pre-hipotermia.

O desgaste do forte vento contra impunha um ritmo tão lento que nossas médias diárias pareciam como as de um caminhante. Exaustos, depois de apenas 18 km, chegamos ao Hotel del Desierto para pedir água e acabamos nos hospedando por lá.

Alguns cicloturistas mais “casca grossa” que conhecemos elegem esse circuito como o mais duro que já realizaram… Nós concordamos com eles. É lindo e interessante, mas será que vale a pena? Ainda temos dúvidas, seguramente existem circuitos mais belos, desertos e interessantes sem serem tão duros como esse. Se o interesse do cicloturista é realizar algo muito difícil, sim, esse é o lugar.

© Rafaela Asprino

Todos nos tratavam muito bem, mesmo nos dois hotéis requintados em que passamos para pedir água, nos serviram graciosamente comida e bebida, nos vendo como uma espécie de heróis. Percebemos que esse é o tratamento standard para os cicloturistas. Os outros pontos de apoio do caminho são aglomerados habitacionais que só existem em função do turismo. Quando ficamos em um destes pontos tivemos que esperar os turistas terminarem o jantar para comprar o que sobrou (geralmente macarrão à bolonhesa com carne de lhama).

Nosso projeto inicial era fazer várias voltas pelo Sul de Lipez e sair da Bolívia descendo a Quebrada de Humahuaca (Argentina), mas percebemos que de tão cansados já não estávamos aproveitando nem desejando ficar mais tempo nessa região tão dura e fria. Não foi fácil alterar nosso roteiro, sentimos a dor da perda, pois as oportunidades nem sempre se renovam e de toda forma nem sempre têm o mesmo sabor, afinal, “cada vez que pulamos num rio nunca caímos na mesma água”.

Confesso que fiquei aliviado quando entramos no asfalto chileno descendo lisinho até San Pedro de Atacama, onde pudemos, pela primeira vez, descansar, nos aquecer e respirar melhor em seus 2.400 metros de altitude. Turistas de todos os lugares caminham por suas ruelas charmosas. O clima ameno, a calefação, a comida variada e água abundante nos fez relaxar e recuperar as energias. Em três dias, estávamos prontos para voltar à estrada. Refizemos nossos planos de viagem e decidimos entrar na Argentina pelo passo de Sico, que está um pouco mais ao sul do passo de Jama.

Outro grave problema quando mudamos o planejamento de um circuito é a sensação de que a aventura acabou e tudo ficou muito fácil, principalmente após as mordomias proporcionadas pelo polo turístico de San Pedro. Entretanto, o caminho logo mostraria o contrário.

nos leva a lugares que realmente nunca foram visitados, as profundezas de nosso próprio ser…

Conforme deixávamos o Salar de Atacama, ganhávamos altitude e entrávamos em regiões mais frias. O asfalto acaba pouco depois de Socaire, último ponto de abastecimento até Catua, a 150 km, já na Argentina. Carregados com água e comida para quatro dias, começamos uma travessia em que o passo fronteiriço chamado Sico não era o único ponto alto, nem o mais alto. Ficamos três dias sem cruzar com veículos ou pessoas, aí sim nos sentimos num deserto!

A altitude não era muito diferente do altiplano, mas estávamos cerca de 800 km ao sul de La Paz, isso faz muita diferença no inverno. O vento a favor ajudava na subida, mas o ar estava um pouco úmido e se transformava em uma neve fraca que ia e vinha. No entardecer tivemos dificuldades para encontrar um abrigo e decidimos acampar em uma área aberta ao lado da Laguna de Tuyajto.

Enquanto montávamos a barraca, uma picape cheia de carabineiros fortemente armados passou em ronda e parou para conversar. Apesar de gentis e educados, percebi que, como responsáveis pela área, não me deixariam acampar ali se não demonstrasse que estava preparado para isso.

Claro que não falei que utilizava um saco de dormir com capacidade para somente -2°C, mas que com o outro saco que tinha e mais todas as minhas roupas poderia resistir a até -20°C, isso pareceria amadorístico demais. Com voz firme e confiante, fui respondendo: Sim, claro, estamos muito bem preparados… Sem problemas, estamos acostumados… Sempre acampamos a -20°C (preferi omitir que esse era, na verdade, o limite de nosso equipamento).

© Rafaela Asprino

Entardecia e não queríamos empacotar todo o equipamento, mesmo que ganhássemos uma carona até os alojamentos de Mina Laco (a 17 km). Tanto fiz e falei que eles nos deixaram sozinhos naquela vastidão. Isso nos deu uma sensação de alívio, mas com tantas perguntas e comentários de situações extremas de frio, ficamos um pouco apreensivos também. Pela noite, o vento e a neve aumentaram e o ruído forte e abrupto impedia que tivéssemos um sono profundo.

Estranhamente a neve não caia em flocos. Sob condições climáticas específicas a neve cai em uma forma conhecida como “neve pó”, que se comporta como grãos de poeira levados pelo vento. Sendo assim, naquela noite, não ficou acumulada sobre a barraca, mas foi se depositando entre seu teto e sobre-teto. O teto da barraca é feito de tela mosquiteiro e deixava passar a neve, que caia sobre nós. Depois de um tempo a neve tampava os furos da tela e começava a se acumular. A tela não é preparada como o sobre-teto para receber peso e começava a vergar por cima de nós até o momento em que retirávamos o acúmulo, empurrando a tela com a mão, e o processo recomeçava…

Mais que o ruído assustador das rajadas de vento, as palavras dos carabineiros preenchiam minha mente com preocupações… Eles disseram que naquela região costuma fazer até -35°C e já resgataram um cicloturista francês que ficou com a barraca soterrada pela neve. Geralmente, quando neva, é por que há umidade no ar e isso significa que a temperatura não baixa muito. A temperatura chegou a -5°C, não passamos frio, mas pensávamos no que poderíamos fazer se a temperatura continuasse baixando. Seguramente não teríamos uma boa noite de sono, mas poderíamos utilizar a manta aluminizada de emergência (que mostrou-se eficiente na viagem pelo Peru) e ainda tínhamos bastante combustível para manter-nos aquecidos até o outro dia…

De manhã tudo à nossa volta estava coberto de neve. Assim que o sol tocou a barraca saímos para contemplar o amanhecer mais belo de toda viagem. Sentimo-nos felizes e recompensados por ter trocado o abrigo de um alojamento de trabalhadores da mina de ferro por uma noite tensa e fria dentro de uma barraca… Provavelmente nossa empolgação, alegria e entusiasmo estavam ligados não somente à beleza das luzes difusas do amanhecer, mas também ao alívio de finalmente sentir o calor da luz do sol e ver o céu azul contrastando com as montanhas nevadas daquele imenso planalto onde se assenta a lagoa Tuyajto.

© Rafaela Asprino

Do lado argentino o clima melhorou e a Rafa quis visitar alguns dos pontos emblemáticos da viagem pelos 7 Passos Andinos: Catua, a placa de “Campo Minado” do passo Huaytiquina, a Ponte La Polvorilla, San Antonio de Los Cobres, Salar Grande, Cuesta de Lipan… Emocionada e feliz, disse que se sentia dentro do filme desta aventura…

Após Purmamarca, seguimos para o norte pela Quebrada de Humahuaca, rota utilizada há cerca de 10 mil anos que foi o principal ponto de ligação entre o vice-reino do Peru (mais importante sede administrativa espanhola) e o vice-reino do Rio da Prata (atual território argentino). Por ela passou boa parte da prata de Potosí em direção à metrópole. Não é por outra razão que as últimas batalhas de independência argentina se deram ali. Os traços índios do povo argentino de Humahuaca surpreendem. Contudo, a região é internacionalmente conhecida pelo carnaval e pelas montanhas coloridas ao seu redor, sendo declarada patrimônio pela UNESCO.

Um asfalto bem cuidado nos levou pela Quebrada e a cada curva nos maravilhávamos com as fantásticas formações: Palheta do Pintor, Cerro Negro, Quebrada das Senhoritas, Vulcão de Yacoraite, Hornocal, Espinhaço do Diabo. As várias tonalidades das rochas sempre marcadas com camadas de vermelho vivo inconfundível contrastavam com o céu azul, os férteis verdes vales já anunciavam a primavera. Um passeio realmente belo, circuito perfeito para qualquer cicloturista.

Em Purmamarca está o famoso Cerro de los Siete Colores, mas queríamos conhecer o Cerro de los 14 Colores. De Humahuaca, começamos um dia que marcaria a maior ascendência acumulada da viagem: 1.394 m em 26 km. A inflação numérica para criar um nome com apelo turístico tem uma certa escala de valor. O Hornocal, verdadeiro nome do Cerro de los 14 Colores, é impressionante.

Chegamos muito cansados no mirante, que está a 4.344 m de altitude. Sentamos num solitário banquinho de madeira de cactos e ficamos apreciando as luzes do entardecer alterando as cores das rochas conforme movimentava a sombra nas fendas daquela obra de arte esculpida pela natureza.

© Rafaela Asprino

Depois de visitar as inscrições rupestres de Inca Cueva acampamos ao lado do Espinhaço do Diabo, o ponto mais ao norte da Argentina que chegamos. Quando desmontamos nosso equipamento de camping pela última vez, ficamos melancólicos pelo final de nossa viagem, mas também empolgados para visitar nosso amigo em Jujuy.

Conhecemos Gustavo quando fizemos nossa primeira viagem de aventura juntos em plena Patagônia Argentina (2009) e desde então mantivemos contato somente por internet. Na época ele estava no começo de sua grande viagem de bicicleta pela Argentina. Ex-velocista, tinha 26 anos, mas não sabia nem trocar os raios da bicicleta, tive que trocar alguns para ele. Hoje, com 32 anos, trabalha com bicicletas em sua casa e se transformou no mecânico mais caprichoso que já vi.

Ele conta os detalhes dessa transformação: “comecei com a ideia de conhecer a Argentina e suas paisagens. Embora tenha feito, creio que o melhor foi conhecer a mim mesmo, numa viagem não só através da Argentina, através de minha mente. Viajava sozinho e falava muito comigo mesmo. Isso me mudou muito, e me revelou a filosofia de que se necessita muito pouco para ser feliz. Antes eu trabalhava muito no escritório de uma importadora. Hoje vivo do ciclismo, esse jardim em meu quintal é meu escritório. Levo uma vida mais tranquila, valorizo mais o dia a dia. Percebi que viajar de bicicleta te dá isso, tranquilidade… muita paz… harmonia… É um equilíbrio com os demais e consigo mesmo. Percebi que a bicicleta, de uma ou de outra maneira, sempre me transforma em uma pessoa melhor.”

Nos três meses de sua grande viagem atravessando a Argentina, Gustavo aprendeu tanto sobre si e sobre o mundo que conseguiu transformar sua vida.

© Rafaela Asprino

Mais que se fixar em grandes feitos, acreditamos que quando viajamos de bicicleta conseguimos facilmente ultrapassar a linha de nossa zona de conforto e chegar ao desconhecido, onde mora a verdadeira aventura. O fato de não mais existirem roteiros originais em nosso planeta não impede que a bicicleta nos traga grandes descobrimentos, pois a cadência das pedaladas funciona como um mantra que nos induz a introspecção e nos leva a lugares que realmente nunca foram visitados, as profundezas de nosso próprio ser…

Mesmo estando fisicamente perto de nós, enfrentar lugares desconhecidos nos faz rever valores, que são chave para mudar o que somos e a forma de vermos o mundo.

É natural que mesmo aqueles que clamam por algo novo temam operar mudanças, pois sentem que vão perder o que são, a base onde apoiam sua personalidade e seu ser.

Como um inseto que troca seu exoesqueleto para poder crescer, é importante ter a coragem de deixar algo para trás a fim de receber o novo, mesmo que isso signifique tomar riscos, afinal não há como voar sem tirar os pés do chão.