Cresci no interior de São Paulo em uma pequena cidade chamada Ipaussu. Com dez mil habitantes, todos se conhecem e é normal que se cumprimentem. Quando passei a morar em uma capital, muito estranhava passar perto de tantas pessoas sem desejar pelo menos bom dia.

No filme “Patch Adams”, baseado em fatos reais, Robin Williams interpreta um médico que acredita que sempre que nos aproximamos de um ser humano trocamos energia de alguma forma e estabelecemos uma comunicação em vários níveis, mesmo que sem palavras. Em nossa última viagem por Ladakh encontramos cicloturistas de vários continentes, gostaria de apresentá-los e comentar um pouco de seus estilos de viagem a fim de que possamos aprender um pouco com cada um.

O inglês Jude e sua amiga Milly. No detalhe seu boneco de pelúcia e o bagageiro arrumado com um graveto amarrado com barbante. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Como uma injeção de ânimo, no começo da viagem encontramos um casal com uma história incrível. Jude é um inglês que saiu de sua casa e chegou pedalando até a Índia. Quando nos encontramos ele já contava 13 meses, 17.000 km e 18 países em seu roteiro. Perguntei por onde passou: Inglaterra, França, Bélgica, Luxemburgo… Neste momento interrompi seu discurso para não cansá-lo. Por favor, me diga somente os países da Ásia e ele completa: Turquia, Irã, Afeganistão, Tajiquistão, Quirguistão, China, Tibete, Nepal, Índia.

A corajosa australiana Kate. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Observando sua bicicleta não vemos nada de especial: sem amortecedores, sem clip ou pedaleira, Jude confia muito em sua velha bicicleta que mostra sua idade pela própria geometria. Após enfrentar violento inverno ele utiliza luvas grossas e óculos de esquiador, leva um pneu reserva e alguns souvenires próprios de quem está em uma grande viagem e nem se preocupa com algo a mais ou a menos de peso para carregar. Veja na próxima página o boneco de pelúcia pendurado na bolsa de guidão e o saco no topo do bagageiro dianteiro, ele está cheio de bandeiras de oração para ir pendurando nos passos.

Milly tem uma história não menos interessante. Amiga de Jude da época de colégio, ela decide juntar-se a ele no final da viagem. Treinou com o irmão na Inglaterra por 20 minutos e veio para a Índia pedalar a partir de Leh. Alugou uma bicicleta em Deli por um mês e já estavam juntos há duas semanas.

Em Deli, Jude retornaria à Inglaterra e Milly ainda iria visitar uma amiga em Hong Kong. Como é de se esperar em uma bicicleta alugada, tudo é muito simples, amortecedor vagabundo e pedal de nylon. Como alforjes utilizava sacolas feitas de sacos de arroz, reaproveitamento de material comum na Índia, tudo pendurado em um bagageiro que já estava quebrado e foi arrumado com um graveto amarrado com barbante.

Nada disso parecia incomodar a alegria do casal de amigos: Milly não se arrepende e disse que todos deveriam pelo menos tentar, pois vale a pena. Jude disse que estava apreciando a paisagem mais do que o normal, devido à baixa velocidade imposta por Milly, disse ainda que era como se estivesse tirando férias da viagem de bicicleta que costumava fazer.

Gary Gordon. No detalhe a mesa de guidão atada ao canote de selim para ajudar a carregar a bicicleta quando preciso. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Mais para frente encontramos Kate, uma australiana muito corajosa. Estava quase concluindo uma viagem solo de duas semanas entre Srinagar e Manali. Se isto não lhe parece muito, lembre-se que entre Srinagar e Kargil ela atravessou território muçulmano. Já estava melancólica, pois sua viagem terminaria em alguns dias, mas queria voltar logo para pedalar mais nesta região. Dizia que todos foram gentis com ela e não teve problemas.

Não tenho dúvidas em classificá-la como uma atleta, era fácil de ver em seu porte físico e pelo tempo que cumpriu o trajeto. Só carregava dois alforjes indicando que apostou em comer e hospedar-se em pousadas, ou nas tendas que encontrasse no caminho. Lembre-se de que se quiser fazer como ela tem que ser forte, pois terá que cumprir as etapas para não ser pego pela noite fria no meio da estrada. Utilizava uma bicicleta mais arrojada, aro 29, clips no pedal, freio a disco a cabo, mas também sem amortecedores.

O casal sueco Ǻsa e Björn. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Pavan Kumar, de Bangalore, sul da Índia, estava pedalando de Manali até o Kardung-la. Acostumado a utilizar a bicicleta somente na cidade para ir ao trabalho, ele estava fascinado com sua primeira viagem de bicicleta: “bicicleta é minha paixão”. Disse ainda que pedalar pelos Himalaias era algo muito especial, diferente de pedalar na cidade.

Como era de se esperar, apesar de haver muitos ricos na Índia, a maioria da população não tem muitos recursos. Pavan acampava todos os dias com sua barraca simples. Apesar de utilizar somente dois alforjes, presumi que estava pesado tendo em vista o tipo de equipamento e por viajar solo. Sua bicicleta era de marca famosa, mas com componentes simples, o selim tinha uma grossa camada de gel, pedais simples, com freio a disco a cabo e amortecedores.

Aditya Kulkanni e sua impressionante bagagem. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Ǻsa e Björn são um casal de suecos. Quando estivemos na Suécia e Noruega percebemos melhor o que é primeiro mundo… Nada se compara com estes países escandinavos. Nem Alemanha, USA ou Suíça conseguem chegar perto da qualidade de vida e do desenvolvimento que aqueles países tem.

Pedalando desde Dharamsala, residência oficial do Dalai Lama, o casal estava muito interessado em budismo e pretendiam terminar a viagem em Leh nos próximos dias. Subimos juntos o Taglang-la em um clima terrível. Como a subida não é fácil, tínhamos que seguir nossos próprios ritmos, mas nos encontramos várias vezes e pudemos conversar um bocado entre uma parada e outra.

© Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Com tudo de bom e do melhor a sua disposição, o casal utilizava belas bicicletas e apesar de ficarem nas barracas de luxo do caminho também carregavam todo equipamento de camping. Estranhamente Björn utilizava uma calibragem extremamente baixa, cheguei até a pensar que o pneu estava furado. Como consequência, acabou furando mesmo. Apesar de advertido por mim manteve seu sistema, afinal ele deve ter suas razões, já que são experientes.

Ǻsa não era muito acostumada a pedalar tanto, tinha equipamento não tão bom quanto o de Björn, amortecedor dianteiro, clip, disco hidráulico e alforje não impermeável. Björn costuma fazer ironman, ou seja, a discrepância entre os preparos físicos era grande. Para compensar, além de levar quase todo o peso ele utilizava um pedivela que nunca ouvi falar.

O japonês Ryo. O galão na traseira da bicicleta é para água. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Construído especialmente para o treinamento de atletas de ponta, o pedivela tem um tipo de roda livre que impede a absorção de qualquer esforço quando o ciclista levanta o pedal, mesmo que esteja “clipado”. Assim, Björn podia utilizar esta viagem pelos Himalaias como treino para os músculos que forçam o pedal para baixo e, de quebra, ainda diminuía a distância entre o casal.

Ficamos conversando com Aditya Kulkanni durante o almoço. Ele é montanhista, tem 19 anos e estava muito animado com sua primeira grande viagem de bicicleta. Comentou sobre vários lugares selvagens e interessantes da Índia. Saíra de Srinagar em direção a Manali e quando nos despedimos percebemos que seguramente tinha algo a aprender sobre cicloturismo. Nem vou falar sobre a bicicleta, mas é de impressionar a quantidade de bagagem e o fato de levar uma grande mochila nas costas. De toda forma temos que respeitar suas opções, pois mesmo com tudo isto concluiu seu trajeto com êxito.

Os russos Alex Brobov e Marina Sokolova. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

É uma pena ter encontrado Gary Gordon num dia em que eu estava muito fraco e desanimado por causa de uma forte diarreia. Tentarei resumir sua história. Com 54 anos de idade ele estava fazendo uma grande viagem pela Índia. Durante nove meses pedalou 105 dias, um total de 11.000 km. No primeiro dia que nos encontramos estava parcialmente carregado, pois estava subindo o Kardung-la. De Leh até o Kardung-la pedalou por oito horas; quando chegou à cidade de Diskit, do outro lado, totalizou 12 horas de pedal. No dia em que tiramos esta foto (009), demorou 18 horas para fazer o caminho inverso.

Já faz 30 anos que Gary costuma pedalar e diz que é isso que o mantem sempre jovem. Diz ainda que somente de bicicleta é que podemos encontrar e conversar com as pessoas, de outra forma só vemos lugares e voltamos para dentro destas maquininhas chamadas carros. Por coincidência nos reencontramos quando saía de Leh rumo a Deli, final da grande viagem pela Índia. Sua bicicleta estava com a carga normal de viagem, mesmo assim parecia muito ágil, com os pneus finos, V-breaks, sem clip, amortecedor de garfo e no canote de selim, sem bolsa de guidão e algo de diferente… Gary colocou uma mesa de guidão atada ao canote de selim para ajudar a carregar a bicicleta quando fosse preciso.

Este aí é o Eddy, um sexagenário belga viajando por Ladakh. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Eddy é um sexagenário belga viajando por Ladakh. Não está carregado, pois estava, como nós, procurando um táxi para levá-lo ao lago Pangog. Assim dá para ver sua bicicleta, que apesar de ser moderna, mantem o velho estilo clássico de cicloturismo. Mesmo com aro 26, o quadro é longo, com paralamas e câmbio interno Rohloff. Sempre alegre, Eddy conta suas façanhas e se imaginarmos sua idade não há como não se impressionar.

Moderninho, ele mostra seu smartphone e comenta que faz tudo com ele: fotografa, filma, ouve música, passa e-mails e em cerca de duas horas pedalando consegue carregá-lo através do dínamo da bicicleta. Não pense que esta foi “a viagem da vida” dele. Aposentado, depois de Ladakh ele fez uma viagem de bicicleta no Camboja, Laos e Tailândia com a esposa e agora, no verão europeu, está pedalando pela Alemanha.

Natalia e Alessandro. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Desta vez quantidade é qualidade. Ryo é um japonês que está viajando pelo mundo todo, mas em etapas. Já fez todas as Américas, África, Europa, Ásia Central e depois de nosso encontro em Lamayuru estava a caminho de casa. Não sabia que a Panasonic também fabricava bicicleta, mas no Japão tem de tudo. O galão na traseira é para água, costume que veio de grandes travessias na África e que ele parece manter como um souvenir.

Alex Brobov e Marina Sokolova. Estes russos se tornaram nossos heróis… Conforme pesquisávamos sobre o roteiro em Ladakh, nossa dúvida sempre foi o trekking de Padum até Darcha. Encontramos na net relatos de um grupo de rapazes e um casal inglês que fizeram o percurso carregando as bicicletas. O casal inglês já fez muitos altos passos por todo mundo e nesta travessia carregaram a bagagem em mochilas nas costas e foram empurrando as bicicletas, perfazendo a travessia em uma semana.

Estes russos fizeram em quatro dias sem mochilas… Como não são ingleses, pouca gente saberá deles ou de seus feitos, ainda mais por só escreverem em russo, nem com a ajuda da net será fácil encontrá-los. Isso mostrou para mim o quanto é ilusória a vida virtual, só um tolo pode acreditar que tem tudo na internet, o mundo real é sempre muito maior.

Anna e George. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

No caminho ainda encontramos mais dois casais de russos: Natalia e Alessandro, e Anna e George. Uma pequena análise destas seis bicicletas já nos mostra qual é o tipo de alforje mais vendido na Rússia… Todos levavam alforjes com uma bolsa extra acoplada que assenta no top do bagageiro traseiro.

Também podemos perceber que peso não é um problema para eles. Para ajudar a comprovar minhas suspeitas, encontramos um grupo de ucranianos que há tempo vivem sob a influência russa. Veja que utilizam o mesmo tipo de alforje e a bagagem… Mamma mia!!! Este mais forte em primeiro plano estava utilizando câmbio de 30 velocidades e já não podia mais emendar a corrente que de tão fina não suportava a força que fazia para subir tanto com tanta bagagem. Ele ficou muito feliz quando o presenteamos com nossa emenda de corrente reserva.

Falando em peso, não encontramos ninguém autônomo viajando mais leve que Mike. Veja na página 80 o detalhe do bagageiro traseiro, como é firme e simples, está preso somente no quadro e no selim. Quando calculou a distribuição do peso na bicicleta, Mike levou em conta seu próprio peso que fica sobre o eixo traseiro e colocou a maior parte do peso na frente e no meio do quadro. Sem economias nos equipamentos, mais uma vez vemos o câmbio Rohloff.

Grupo de ucranianos. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Ele conta que a bolsa traseira é da mesma marca utilizada por um famoso inglês que fez uma volta ao mundo de bicicleta. Eu nunca ouvi falar, mas pelo estilo parece que faz muito tempo. Realmente, estas bolsas da marca Carradice são fabricadas até hoje e foram utilizadas por Ian Hibell, um inglês considerado o primeiro a pedalar do Cabo Honr até o Alaska entre 1971 a 1973. Esta mistura de força muscular com uma bicicleta leve dava-lhe grande autonomia. Mike já terminou esta viagem e agora pedala pelos desertos da América do Sul.

Depois de vários quilômetros pedalados comecei a ter problemas com o revestimento interno que protege a câmara de ar contra o aro. A câmara começou a furar com frequência e não havia mais como consertar tantos furos. Eu consegui arrumar colocando silvertape na parte interna do aro, mas todas as minhas câmaras já estavam condenadas com remendos e vários pontos esgarçados.

Em meio a mais um conserto de câmara aparece o francês Julian. Alegre e jovial, ele carrega a bandeira da Bretanha atrás da bicicleta e o crânio de uma vaca na frente. Depois de fazer um trabalho social na Índia ele alugou uma bicicleta para fazer uma grande viagem por Ladakh e o Vale Spiti.

Não encontramos ninguém autônomo viajando mais leve que Mike. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

A bicicleta, assim como todo seu equipamento, eram de excelente qualidade, apesar de serem alugados. Felizmente, junto com o aluguel dos equipamentos, entregaram a ele um bom kit de ferramentas e peças de reposição. Julian era bem tranquilo e nem percebeu que estava ficando sem dinheiro e numa região destas não há muitas opções de sacar dinheiro. Foi o momento em que pude comprar dele uma câmara de ar novinha, ainda com a etiqueta do preço. Desta forma os dois seguiram viagem com seus problemas resolvidos. Eu com uma câmara nova e ele com uma graninha a mais para chegar até Manali.

Um grupo de seis eslovenos, três homes e três meninas, atravessaram em uma semana o trekking do Shingo-La. Eles estavam um pouco à nossa frente, apesar de irmos mais rápido que eles não nos encontramos no trekking, somente quando chegamos em Keylong. Pedalamos juntos alguns dias e percebemos que seu estilo é bem típico europeu, são mais acostumados com escaladas que com cicloturismo e carregavam excelentes equipamentos.

Além destes cicloturistas, encontramos muitos outros, não dá para contar todas as histórias, nem podemos nos aprofundar nos ensinamentos e exemplos que aprendemos com eles, descrevo somente o básico e simples que podemos ver até mesmo pelas fotos dos encontros em meio ao caminho.

O francês Julian. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Mas antes de terminar faço questão de deixar uma última história que foi também o último cicloturista que encontramos nesta viagem. O alemão Fabian Nawarath é jovem, mas tem um curriculum invejável, atravessou a África de sul a norte numa viagem de 12.000 km. Ele veio com sua irmã para a Índia escalar e fazer trekking no Himalaia. Depois que sua irmã voltou para casa ele pensava em ir escalar no Paquistão quando ficou sabendo que um grupo Talibã de paquistaneses simplesmente executaram nove escaladores e um guia como forma de vingar um líder abatido por um drone (pequeno avião teleguiado) americano.

Pego de surpresa, não sabia o que fazer. Daí um compatriota que conhecera numa pousada se propôs a emprestar seus alforjes para ele fazer uma viagem de bicicleta. Não lembro por que o compatriota não emprestou a bicicleta também, talvez já tivesse vendido para os indianos, pois além de não pagar pelo transporte de volta, ainda pode vender por um valor maior do que receberia se tentasse vender na Alemanha.

Fabian já tinha os alforjes e o equipamento de montanha, só faltava a bicicleta. Fácil! Ele foi ao mercado e comprou uma bicicleta simples… Quando digo simples deveria dizer ruim, tão ruim que, no Brasil, a gente só consegue comprar em supermercado ou num magazine, e lá foi ele fazer o circuito de Shimla a Manali.

O alemão Fabian Nawarath. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto

Não me pergunte como os pedais sem rolamento aguentaram nem como não quebrou a corrente ou o pedivela, ou mesmo por que não desmontou simplesmente. Só sei que ele chegou a seu destino.

Diante destas fotos poderíamos montar uma sessão de “certo e errado” como fazem as revistas de moda, mas minha conclusão é outra: não existe fórmula para cicloturismo, não há uma “Bíblia” que diga o que é certo ou errado em uma viagem de bicicleta. Muitas coisas tem a ver com o estilo de cada um. No fundo, os equipamentos refletem alguns traços da personalidade do próprio cicloturista, mais que uma necessidade premente. As vezes são seus anseios, seus medos, expectativas, até sua cultura é mostrada pelos equipamentos que carrega. Como dizer que uma cultura é melhor que outra.

Existem alguns princípios, algumas técnicas, mas não me diga que “não dá” ou “não posso” ou “é impossível”. Acredito que no fundo é só achar seu estilo, seu ritmo e seguir seu sonho de viagem de bicicleta.

Eslovenos. © Rafaela Asprino/ Antonio Olinto