Portugal me encanta…Já havia percorrido o país de ponta a ponta de carro – nada muito difícil de fazer; considerando que Portugal é um país pequeno (do tamanho do estado de Pernambuco). Desta vez resolvi percorrer alguns trechos de bicicleta. A primeira rota escolhida foi a Rota Vicentina – uma rede de percursos no sudoeste do país, totalizando 450 km para caminhar e pedalar, ao longo de uma das mais belas e bem preservadas zonas costeiras do sul da Europa.

Deste percurso 110 km são de costa selvagem e cerca de 80 mil hectares de área protegida, inseridos no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

É formada pelo Caminho Histórico, Trilha dos Pescadores e vários Circulares. Os percursos proporcionam uma vivência entre uma cultura rural viva e autêntica e uma costa surpreendentemente selvagem (http://pt.rotavicentina.com/regiao.html).

O percurso está integralmente sinalizado e pode ser percorrido nos dois sentidos, em total autonomia e segurança, preferencialmente entre os meses de setembro e junho – nós escolhemos o mês de junho.

© Vera Marques

O CAMINHO HISTÓRICO – está sinalizado de vermelho e branco.

NA TRILHA DOS PESCADORES – a sinalização é em verde e azul.

O Caminho Histórico é possível percorrer de bike sem problemas – constituído em sua maioria por caminhos rurais, trata-se de uma clássica Grande Rota (GR), com serra, vales, rios e ribeiras, numa viagem pelo tempo, pela cultura local e pelos trilhos da natureza. Já na Trilha dos Pescadores, alguns trechos são inviáveis para pedalar – beira de penhascos e trilha estreita, sempre junto ao mar, seguindo os caminhos usados pelos locais para acesso às praias e pesqueiros.

Fomos desaconselhados a seguir totalmente por ele. O que fizemos foi revezar entre o Caminho Histórico e a Trilha dos Pescadores – o que tornou alguns trechos mais longos.

Há também vários Percursos Circulares – são curtos com início e final no mesmo local, para que seja ainda mais fácil descobrir o prazer de pedalar no sudoeste de Portugal, sem transferes, sem complicações e com a duração de apenas meio dia ou menos.

A Rota Vicentina inicia-se em Santiago do Cacém (145 km de Lisboa), mas decidimos iniciar em Sines.

Para chegar até o sudoeste do país a melhor opção é um voo até Lisboa. De lá seguimos de ônibus até Sines (163 km), e a viagem durou pouco mais de 3 horas e foi bem tranquila (https://www.rede-expressos.pt/).

As bikes

Nós optamos em alugar pela comodidade que isso proporciona. Eu descobri viajando por aí que alugar uma tem muitas vantagens: economiza o trabalho e o custo com o transporte; diminui o peso e facilita muito o deslocamento até o local do pedal e às vezes há a possibilidade de você pedalar em uma bike melhor que a sua e ajustada para você. Esqueça a ideia de que alugar uma é igual a bike enferrujada e rangendo a cada pedalada – não! Hoje existem empresas especializadas e muito preparadas para receber o ciclista. Conhecer pessoas do local que entendem do serviço é também um grande ganho – esse vínculo é fundamental para quem viaja por conta própria. Em Portugal optamos pela empresa Gocycling (www.gocyclingportugal.com), e quem nos recebeu foi o Pedro, uma pessoa incrível que deu dicas muito importantes sobre o percurso. Combinamos o local de recolha das bicicletas (o custo adicional desse serviço de recolha/pick-up é de 30EUR por bicicleta). O valor do aluguel de cada uma foi de 25EUR por dia. Mas é claro que tudo é uma questão de “negociar”, dependendo do número de dias é possível um bom desconto. Nossas bikes foram da Scott e cumpriram muito bem a função dela.

© Vera Marques

Nosso ponto de partida – Sines

O centro da cidade ainda conserva a sua estrutura medieval, com ruas paralelas ao mar cruzadas por travessas perpendiculares e a sua praça central. Nele destaca-se o Castelo, que desde o século XIV manteve à distância os visitantes indesejáveis: principalmente piratas e corsários, interessados em empilhar as riquezas da terra. Hoje é palco de Festivais de Música do Mundo, onde se celebra a diversidade cultural que Vasco da Gama e os outros descobridores portugueses revelaram ao mundo.

© Vera Marques

Vasco da Gama viveu a sua infância no Castelo em Sines e certamente ouviu os relatos das façanhas dos velhos pescadores, cujos descendentes ainda hoje se reúnem nos largos abertos sobre o mar para adivinhar a aproximação dos temporais.

© Vera Marques

O Castelo onde ele viveu na infância foi afetado pelo terremoto de 1755, mas conservaram-se as paredes e estrutura medievais, destacando-se o paço medieval e a Torre de Menagem, que desde 2008 abrigam o núcleo sede do Museu de Sines e a Casa de Vasco da Gama.

© Vera Marques

Em Sines também está a “Casa de Vasco da Gama” não visitável – é uma casa particular. Apesar de a placa colocada na fachada em 1898 assinalá-lo como local do nascimento do navegador, os moradores com quem conversamos disseram que o local é onde Vasco da Gama começou a erguer sua residência, após o regresso da Índia, mas que, ao nunca ser terminado, entrou em ruína e foi demolido em finais do século XIX.

© Vera Marques

Escultura de autoria de António Luís Branco de Paiva (1926-1987) ao lado do castelo em homenagem aos 500 anos do nascimento do navegador. Estórias e histórias são o que não faltam por ali.

© Vera Marques

1˚ dia de pedal: Sines / Cercal – 61,1 km

Sair da cidade pedalando não foi problema, nosso objetivo do dia era chegar em Cercal. Pelo mapa seriam 40 km (claro que pedalaríamos mais – considerando erros e acertos, entradas e saídas). Saímos cedo e sem nenhuma pressa.

Seguimos pedalando em direção ao sul de Sines e logo entramos no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, com as suas pequenas praias envolvidas por despenhadeiros. É a parte do litoral europeu melhor conservada, com várias espécies de fauna e flora únicas.

A primeira praia dessa costa, S. Torpes, é a mais pertinho de Sines, conhecida por ter a água do mar mais quente de Portugal. Mais precisamente: elas atingem cerca de 30ºC; enquanto o resto do país trinca de frio com águas congelantes do mar mesmo em pleno verão. Isso porque nos fundos da praia está plantada uma termoelétrica que é a causa do “fenômeno”. Ela usa as águas do Atlântico para arrefecer a usina e, quando elas voltam à praia, estão morninhas. É assim há décadas, dia e noite.

Depois de S. Torpes, é uma sucessão de praias lindíssimas, de água límpida de um azul caribenho. As falésias são muito variadas e de grande beleza. Muitas rochas e ilhas isoladas completam o cenário belo e singular desta etapa.

Chegamos em Porto Corvo, uma pequena vila encantadora de pouco mais de mil habitantes. O cenário é arrebatador de um lado, com casinhas caiadas de branco, de portas e janelas coloridas, poucas ruas e praças cheias de charme; do outro, uma sequência de praias cercadas de falésias e acessíveis por trilhas ou escadinhas, que levam até lá embaixo.

De Porto Corvo, seguimos na direção de Cercal, até Herdade da Matinha, uma casa rural onde ficaríamos hospedados.

Herdade da Matinha (http://www.herdadedamatinha.com/) é um lugar lindo, de bom gosto, com vastos hectares de colinas e pastagens formando um cenário naturalmente perfeito. Fomos recebidos com muita simpatia pelo Alfredo e a Monica.

A pequena cozinha onde as refeições são preparadas com produtos frescos da fazenda.

2˚ dia de pedal: Cercal / Zambujeira – 75,8 km

Logo pela manhã deixamos a Herdade da Matinha. Confesso que ficaria ali – a tranquilidade e beleza do lugar me encantaram. Mas, deveríamos seguir. Saímos da fazenda por uma trilha, nos afastamos um pouco da linha do mar e adentramos para o interior da Serra do Cercal para apreciar a paisagem dos campos alentejanos.

Nesse trecho cometemos nosso primeiro erro; ao pegar a trilha deveríamos sair no sentido de Cercal para São Luiz, mas voltamos e seguimos a sinalização de um percurso circular. Erramos! Mas foi ótimo porque ao voltar tivemos a oportunidade de conhecer a Ilha do Pessegueiro, que no dia anterior havíamos deixado para trás. Seguimos pela direção da Ribeira da Azenha e finalmente chegamos ao Forte do Pesqueiro. Um lugar lindo!

Da Praia da Ilha retomamos a sinalização do Caminho Histórico, continuamos pedalando até voltarmos em direção ao mar para conhecermos o primeiro cabo desta região, o Cabo Sardão, um local privilegiado para sentir a força das ondas e a imensidão do oceano. Talvez aqui seja o único lugar do mundo em que as cegonhas nidificam no topo das falésias negras que, com seus recortes pontiagudos, proporcionam uma paisagem ímpar.

Faro do Cabo Sardão: este farol tem uma característica única: está construído ao contrário de todos os outros, ou seja, com a porta de entrada virada para o mar e o farol voltado para a terra! Conta-se que o construtor interpretou mal a implantação da construção, rodando em 180º. Fato que mostra a dificuldade de comunicação entre o construtor e os engenheiros da Marinha; mas não deixaria também de estar relacionado com a distância e a solidão desta costa, longe das inspeções dos responsáveis.

Seguimos por uma trilha belíssima! São aproximadamente 8 km contornando falésias sempre junto ao mar até chegarmos à outra vila de pescadores, a Zambujeira do Mar! A Zambujeira é uma vila de veraneio, lugar encantador, casas simples, pintadas coloridas, ruas limpas e uma praia lindíssima.

Ficamos hospedados no Hotel Rosa dos Ventos, com um atendimento fantástico e ao lado da praia, onde terminamos o dia apreciando um lindo por do sol.

3˚ dia de pedal: Zambujeira do Mar / Aljezur – 60,8 km

Mais uma despedida difícil, já que cada canto desse percurso a vontade era ficar dias e dias, mas tínhamos de seguir pedalando. O que nos confortava era a certeza de que o caminho continuaria a nos proporcionar vistas incríveis e encontros ainda mais.

Nesta etapa encontramos muitas pessoas fazendo a Trilha dos Pescadores caminhando – principalmente os ingleses, e não é por acaso – o jornal britânico Independent considera a trilha uma das melhores da Europa. Ela recebeu, recentemente, a certificação Leading Quality Trails – Best of Europe. Só posso concordar! O cenário é lindo. Infelizmente alguns trechos da trilha são terminantemente desaconselháveis para bikes (informações no site: http://pt.rotavicentina.com/regiao.html). Confesso que quando vi alguns caminhantes em lugares que não alcançaria com minha bike, sentia um pouquinho de inveja e ficava com a sensação de estar perdendo algo. Bom, não se pode ter tudo…. Acho que vou ter que voltar para percorrer o caminho a pé.

Seguimos pedalando – agora para Aljezur, nossa próxima parada. Durante o nosso percurso passamos pela Praia de Alteirinhos, a bela praia do Carvalhal, e pela famosa praia da Amália que, como o nome indica, era o refúgio preferido da diva portuguesa. As praias estavam tranquilas e muitas vezes isoladas, mas, segundo os moradores com quem conversávamos, no Festival do Sudoeste e em meses de verão eles recebem muitos turistas e o sossego desaparece!

Um pouco mais ao sul, chegamos à aldeia de Azenha do Mar. Ali, vimos novamente a sinalização da Trilha dos Pescadores, não resistimos e mais uma vez exploramos o lugar. Deixei minha bike com o Zé Marques, que ficou em um barzinho e fui sozinha caminhar um pouco por onde a minha bike não alcançava (segurança é tudo em uma viagem).

Depois de satisfeita por subir em alguns penhascos caminhando, voltamos à procura da sinalização vermelha e branca que nos levaria de volta para a trilha do Caminho Histórico. Mas nesse trecho cometemos nosso segundo erro. Saindo de Azenha do Mar entramos em uma grande propriedade rural, exploramos um estradão e depois outro e nada da sinalização. Foi ali que encontramos a primeira ciclista no percurso e ela estava tão perdida quanto nós. Juntamo-nos pela busca do percurso certo.

Caminhamos por um trecho muito arenoso – pedalar era impossível, a solução foi empurrar bike! Até chegarmos a uma pequena estrada, onde encontramos um senhor que nos indicou o sentido correto. Mas não demorou muito e o que encontramos novamente foi a sinalização verde e branca (Trilha dos Pescadores) que nos levou direto para a praia Odeceixe.

A estrada para a praia serpenteia durante 3 km ao longo de um vale verdejante, acompanhando a Ribeira de Seixe e campos agrícolas. Nas encostas do vale observam-se bosques de sobreiro (árvores de cortiças) que dão lugar, mais perto da praia, a matos litorais. A praia é uma ampla língua de areia entre o mar e a ribeira que deságua no extremo norte, onde se formam várias lagoas de águas baixas.

A chegada em Odeceixe marca a fronteira entre o Alentejo e o Algarve.
Na praia de Odeceixe há vários serviços de apoio, incluindo bons acessos para a praia, bares, restaurantes, lojas e estacionamento. Aproveitamos e fomos até um mercadinho. Abastecidos, fizemos um belo piquenique, apreciando o movimento. Deixamos a praia e seguimos até a estrada N120 para Aljezur, nosso destino final do dia.

Aljezur é uma vila pequena e tranquila, dominada por um castelo mouro do século X. Quando os árabes construíram o castelo, várias ribeiras percorriam a área e a que corria em redor do monte era tão larga que permitia aos barcos subirem até Aljezur. Mas as águas ficaram infestadas com mosquitos que espalharam a malária e a população teve de se mudar, criando assim outro centro. Por isso, a vila está dividida em duas partes: a Vila Velha e a Igreja Nova.

Ficamos hospedados no Guest House Ladeira na parte da Igreja Nova.

O Castelo erguido pelos árabes no século X e tomado pelos mouros no séc. XIII foi um dos últimos castelos a serem conquistados no Algarve. Embora em mau estado de conservação, mantém a sua cerca de muralhas (séc. XIV) e duas torres. A vista do alto é magnífica!

Aljezur é o maior produtor de batata doce de Portugal, por isso este legume está presente na gastronomia local. Nós, claro, não poderíamos deixar de provar!

4˚ dia de pedal: Aljezur / Sagres – 67,3 km

Logo pela manhã, deixamos Aljezur, e não foi difícil encontrar a sinalização pela cidade.

Mas, depois de percorrer alguns quilômetros, a falta de sinalização fez com que nos questionássemos sobre o caminho. A estrada estava em péssimas condições com muitas pedras soltas e muitas subidas. O que tornava o percurso agradável apesar das condições eram os imensos sobreiros – árvore especial que tem na casca seu principal produto (cortiça). Os portugueses chamam de montado um bosque desse tipo de carvalho, tanto em plantação formada quanto nativo. A cada nove anos, a árvore perde a casca, fica com cor de ferrugem e aí vai ter outros nove anos para se regenerar e ter outra casca para ser cortada. Assim, nesse ciclo de nove em nove anos, o sobreiro, a árvore da cortiça, vive um século, dois séculos, até mais.

Quando finalmente encontramos a sinalização, seguimos tranquilos. Paramos para um descanso e seguimos para Sagres. No caminho passamos por Arrifana e do topo da falésia tivemos uma visão privilegiada da praia – considerada como uma das melhores para a prática do surfe. Do alto constatamos o fato – um monte de pontinhos pretos na água.

A próxima praia no caminho foi a Praia da Bordeira – apesar de a praia ficar mais perto da aldeia da Carrapateira do que da aldeia da Bordeira, seu nome está relacionado ao fato de a Ribeira da Bordeira desaguar nela. Belíssima e tranquila, tem uma longa extensão de areia – e é famosa pelas suas belas dunas.

Da aldeia da Carrapateira seguimos para Vila do Bispo e finamente chegamos em Sagres – nossa meta do dia.

A história de Sagres foi definida pela sua localização geográfica e pelos magníficos promontórios de Sagres e do Cabo de S. Vicente. A ideia de que a terra termina aqui nestes promontórios com 50 metros de altura que se precipitam dramaticamente no mar foi uma fonte constante de mistério e atração para os sucessivos colonizadores da região. A figura mais influente da história de Sagres foi o Infante D. Henrique, que aí se inspirou para embarcar nas suas viagens de descoberta, trazendo fama à região e levando à fundação da Vila do Infante.

Chegamos em Sagres em tempo de apreciar um belo por do sol. Seguimos para o Hotel Casa Azul onde nos hospedamos.

5˚ dia de pedal: Sagres / Lagos – 59,0 km

Sagres exibe algumas das mais impressionantes paisagens do Algarve. Não foi fácil nos despedirmos da cidade. Mas antes de seguirmos para o nosso destino final – Lagos, decidimos visitar o Cabo de São Vicente, cujo farol continua a guiar hoje em dia todos os navios que deixam a Europa para cruzar o Atlântico. Este pequeno canto tem uma linda paisagem que ainda permanece selvagem, varrida pelo vento e batida pelo sol, uma costa escarpada sobre um mar bravo ao alcance da mão.

Deixamos o Forte e seguimos para Lagos. Parte do percurso seguiu a Estrada Nacional 125. A ecovia é sinalizada através de um ciclista branco ou linha azul pintada no pavimento. Em algumas etapas a sinalização é quase perfeita, em outras é escassa ou inexistente. Mas quando menos se espera, eis que surgem algumas placas com informação de quilometragem e do conselho responsável pela próxima etapa da ecovia.

De repente, a ecovia transforma-se num caminho rural, passando por Salema e Burgau, duas vilas, até chegar em Lagos, uma cidadezinha litorânea de grande importância histórica. No século 15, Lagos foi capital do Algarve e foi dali que D. Henrique partiu para conquistar o norte da África.

© Vera Marques

Em Lagos terminamos nosso pedal! Foram cinco dias e 324 Km (entre erros e acertos) pedalando lado a lado das mais ricas e interessantes geologias, floras e faunas da Europa.