“E para onde vamos agora, Rafa?” “Temos que ir para um lugar bem difícil, vamos deixar as viagens mais fáceis para quando a gente estiver velhinho…Vamos para o Himalaia”.

A Rafa está certa em sua filosofia de vida. A região de Ladakh em meio ao Tibete indiano é um dos lugares que sempre desejei voltar, pela beleza, exotismo, aventura e também por que o inverno não me deixou fazer tudo o que gostaria. Em 16 de junho de 2013 voltarei para uma região da Índia considerada como o “pequeno Tibete”, visto que está no mesmo platô e que esconde as estradas mais altas do mundo.

Na edição 24 (janeiro/2013) da Revista Bicicleta falei de minha aventura na Índia, agora gostaria de compartilhar nosso diário de preparação para esta nova viagem, começando pela escolha da bicicleta.

Para me ajudar na escolha, fui falar com um velho amigo, Caio Salerno, um grande atleta, tricampeão brasileiro e vice-campeão pan-americano de Downhill, bicampeão de Bike Trial. Hoje ele tem sua própria fábrica de bicicletas e para minha felicidade ele me diz: “Será um prazer se vocês utilizarem nossas bicicletas. Qual bike vocês querem? Entra em nosso site e me diga”.

Confesso que ficamos muito felizes em ouvir isto, afinal nosso projeto nunca recebeu um apoio assim tão sincero. Nosso problema, assim como o de muitos, foi como escolher uma bicicleta diante de tantos modelos. O Caio, que me conhece bem, já adverte: “Vocês ainda estão usando só o V-brake? Pois hoje em dia nossas bicicletas, na maioria, têm freios a disco, só a mais básica que não”.

Mais uma vez tive que enfrentar o dilema da tecnologia e suas trapaças. No universo de modelos que nos apresentam, o que é realmente relevante para uma aventura de bicicleta?

Em outra matéria já falamos sobre materiais e ergonometria de quadros. Tendo em vista que na região de Ladakh enfrentaremos muitas estradas de terra, pedra e cascalho, acredito que seria melhor uma bicicleta de montanha adaptada para cicloturismo, daí já eliminamos alguns modelos. O que é mais difícil de encontrar no Brasil são quadros com pontos de fixação de bagageiro.

Se analisarmos os grandes fabricantes de componentes veremos que lançam todo o ano uma série de modelos, por exemplo: tem o X, o XZ e o XZ-Plus, o último é mais caro, pois tem um novo sistema que deixa ele umas gramas mais leve ou um pouco mais eficiente. No próximo ano eles lançam o XZ-Plus- Master, que também tem seu novo sistema com grandes promessas de melhora de rendimentos. Daí as melhorias do XZ-Plus passam para toda a linha XZ e o X para de ser fabricado. No próximo ano acontece um novo lançamento e agora o melhor modelo é XZ-Plus-Master-Pro, e assim por diante.

Quando comecei a volta ao mundo houve um lançamento de um tipo de coroa oval que prometia revolucionar o mundo das bicicletas. Muita gente comprou e se decepcionou, a ideia não foi para frente. Não penso que sou ortodoxo, afinal, fui um dos primeiros a fazer uma volta ao mundo com bicicleta de montanha. Na época (1993), os que faziam uma viagem assim utilizavam bicicletas específicas para cicloturismo. Acredito que apostei em um modelo que pegou, pois em qualquer lugar consegui encontrar peças de reposição.

Entretanto, nos últimos anos tenho sentido que os novos modelos estão traindo minha confiança. Na viagem para o Peru, em três meses, o movimento central da bicicleta da Rafa ficou moído. O bem cotado Shimano LX feito para ser mais leve e rígido não tem os rolamentos selados e após atravessarmos alguns rios já estava sujo. Para a manutenção são necessárias ferramentas especiais específicas para este modelo. A partir desta experiência comecei a buscar um movimento central selado.

Agora vamos para os freios: quase todos os modelos de bicicletas de qualidade já vêm com freios a disco, alguns são até hidráulicos. Esta inovação surgiu da prática de Downhill, mas não me parece muito útil em uma grande viagem, mesmo com a bicicleta pesada nunca senti a necessidade de mais potência de freios, pois não podemos deixar a bicicleta ganhar velocidade, existe risco de danificar o equipamento dentro dos alforjes com muitos sacolejos. Por outro lado, o sistema hidráulico te obriga a carregar óleo para manutenção e torna tudo muito delicado, até para retirar a roda tem que tomar cuidado.

Os discos acionados mecanicamente com cabos são mais simples, entretanto, terá muita dificuldade de encontrar pastilhas para reposição em uma viagem, mesmo por que existe uma grande gama de modelos, ou seja, qualquer vantagem de eficiência é sufocada pela desvantagem na hora de fazer a manutenção.

Mas vamos nos manter em nosso caso específico. Em Ladakh não existem bicicletarias, teremos que carregar nossas próprias peças de reposição.

Em uma viagem de três meses que fiz pelas montanhas Atlas no Marrocos, vi as sapatas dos meus V-brakes consumirem-se em um único dia de chuva em meio à lama. Quando cheguei a uma cidade chamada Fes (sim, aquela cidade que aparecia na novela onde as pessoas tratam e tingem couro a céu aberto), tive que me valer de sapatas de freio ferradura para continuar viagem, ou seja, um sistema trisavô do meu V-brake: em sua evolução, os V-brakes utilizaram dois tipos de sapata, antes destas haviam as sapatas dos Cantilever e mais atrás no tempo, bem perto dos Flintstones, vem os freios ferradura. Seguramente não poderemos fazer adaptações como estas com os discos; em tese, talvez seja possível arrancar uma lasca de uma lona de freio automotivo e colar na parte de metal da pastilha gasta, mas isto seria difícil até mesmo para o MacGyver em pessoa.

Não creio que seja uma boa ideia trocar os V-brakes de sua bicicleta por disco, mas será que existe alguma vantagem considerável no disco? Algo que me fizesse abraçar esta tecnologia em minha nova bicicleta? Talvez sim.

Aro quebrado na nossa cicloviagem pela Patagônia. © Antônio Olinto
Aro quebrado. © Antônio Olinto

A potência me parece a qualidade mais irrelevante, entretanto, gostei da facilidade com que as pastilhas podem ser trocadas e reguladas (a partir dos discos, passa a ser obrigatório carregar um alicate fino consigo a fim de fazer a troca de pastilhas). Também me alegro com o fato de que, se quebrar um raio, não terei que me preocupar muito em centrar o aro. Entretanto, a característica que me fez optar por aceitar o disco foi outra.

Na volta ao mundo nunca troquei os aros de minha bicicleta, entretanto, com o aumento da potência dos freios V-brakes e a diminuição da qualidade dos aros, perdi vários aros em viagens de três meses, dois enquanto fazia os Passos Patagônicos e outro indo para a Terra do Fogo.

O atrito para frear a bicicleta acontece entre a sapata de borracha e o aro, ocasionalmente entra alguma sujeira, aumentando a abrasão do aro que é de alumínio. A fina parede dupla não suporta este desgaste e a própria pressão dos pneus ajuda a romper o aro. Alguns fabricantes colocam uma marca no aro para mostrar o desgaste máximo suportável. Se o seu aro não possui esta marca, passe a mão no aro no ponto onde encostam as sapatas e acompanhe seu desgaste, quando apresentar concavidade acentuada é melhor trocar antes de uma grande viagem.

Com o disco acredito que irei expulsar o fantasma do aro quebrado.

Agora partimos para as alterações pessoais: primeiro, selim com gel de dupla resistência, mesa maior e mais alta, pedaleira, descanso e o mais estranho… Em nossa última viagem (Peru) utilizamos suspensão com uma trava no próprio guidão. Pareceu-me uma grande sacada, pois todos sabem que os amortecedores roubam potência nas pedaladas morro acima. Enfrentamos grandes altitudes no Peru e ao começar as subidas simplesmente apertávamos a trava e pronto.

Bem, o fato é que ao final da subida sempre vem uma descida e a gente geralmente esquecia-se de destravar a suspensão. Uma vez após a outra acabamos percebendo que ela fazia pouca diferença, tanto é que esquecíamos.

Em nossas novas bicicletas não tivemos dúvidas, retiramos as suspensões e colocamos garfos rígidos. Só nesta troca conseguimos retirar dois quilos de peso da bike.

“Mas Olinto, como vocês vão enfrentar todas aquelas estradas de terra sem suspensão? Não dá”. Espero que dê sim, afinal fiz a volta ao mundo sem suspensão. Por que não daria? Sei que uma bicicleta sem suspensão é algo inimaginável nos dias de hoje, entretanto, para nós não é importante melhor performance em uma descida veloz, o que precisamos é carregar muita comida para vários dias sem abastecimento. Com essa alteração já abrimos espaço para dois quilos de alimento em cada bicicleta.

Já percorremos quase 1.000 km em nossas Soul SL200 e acreditamos que fizemos o correto. Agora vamos para frente em nossa preparação.

Estive em Ladakh em 1994. Eu tinha um máquina fotográfica Pentax P-30 que precisava de um pequena pilha. Durava a vida toda, pois só era utilizada para o fotômetro, no mais tudo funcionava de forma mecânica. Carregava um toca-fitas a pilha e uma lanterna com lâmpada de filamento, utilizada somente em emergências de tanta pilha que gastava, durante as longas noites de inverno ficava à luz de velas em plena barraca, nunca nem me preocupei em saber se uma cidade tinha eletricidade ou não, mas agora… Que vou fazer com todos os gadgets!?!?

Fui logo falar com meu amigo Fábio Zander que costuma levar grupos pela região e ver como está o suprimento de eletricidade. “Olinto, acho que você só encontra eletricidade em Manali, Sarchu e Leh, cerca de três horas por dia, quando tudo funciona bem”.

E agora? Compro um monte de baterias, ou instalo um dínamo na bicicleta, ou aposto na energia solar?

Em uma outra hora conversamos sobre isso!

Bicicleta nova pronta, veja que a espiga (parte do garfo que se une ao quadro através dos rolamentos) do garfo rígido vem de fábrica bem alta para adaptar-se a qualquer exigência de quadro. Nós colocamos anéis para compensar a altura perdida ao retirar a suspensão. © Antônio Olinto