Desafio Azul 2 – Estrada Real

Uma cicloviagem é muito mais que quilômetros e paisagens. Uma cicloviagem é capaz de alterar o  passo, a percepção com o mundo e o contato com o próximo e consigo mesmo.

Ela obrigatoriamente te conecta ao momento, toda sua energia e atenção voltadas para o presente, a conexão com o meio e pessoas é amplificada e as necessidades mais urgentes, seja, um pouco de água, uma sombra ou uma palavra de incentivo.

A Estrada Real, diferente de tantos outros roteiros de  cunho religioso, que impulsionam o peregrino pela força da fé, é um caminho que motiva o cicloviajante por todo o contexto histórico que cada quilômetro de trilha carrega, já que as estradas ora rústicas, ora pavimentadas cortam parte do sudeste do Brasil, contando sua história colonial.

© Desafio Azul

A Coroa portuguesa, em meados do século XVII, oficializou um caminho para trânsito de ouro, diamantes e tantas outras riquezas naturais, entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, tudo deveria passar pela estrada. Essa era a única forma para que esses minérios tivessem seus tributos devidamente recolhidos. Qualquer outra rota era considerada ilegal. Ao todo, são 1.600 quilômetros divididos em quatro Caminhos (Diamantes – Novo – Velho – Sabarabuçu). Nós escolhemos o Caminho  Velho, que liga Ouro Preto a Paraty.

O percurso passa por três estados. O primeiro é o de Minas Gerais, do ciclo glamouroso do ouro, onde as igrejas encontradas a cada esquina são revestidas com o brilho dourado do metal. Para transpormos as conhecidas montanhas mineiras, é preciso recorrer à força das pernas e lançar mão das marchas mais leves da bicicleta. A recompensa sempre aparece, entre a respiração ofegante, o coração disparado, o silêncio e a visão do alto.

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A bicicleta nos oferece um olhar mais atento pela velocidade menor e pela necessidade de prestarmos atenção ao caminho, dessa forma é possível olhar a imensidão verde e o impacto da passagem do homem e exploração dos bens naturais.

A divisa entre Minas e São Paulo foi terreno de batalhas, o túnel que é símbolo emblemático da Revolução de 32 está escondido um pouco abaixo da estrada. Uma grande placa metálica na entrada da passagem subterrânea nos proporciona um outro tipo de viagem, essa em nossas imaginações. A pouca luz, o som da água gotejando, o tilintar dos tacos das sapatilhas nos dormentes da linha férrea arremessam nossas mentes em direção às batalhas que tingiram as terras da Mantiqueira.

A chegada ao Rio de Janeiro é entre nuvens. A aguardada placa da divisa São Paulo/Rio de Janeiro é um símbolo de conquista, pois depois de tantas subidas, sabemos que daquele ponto até a Igreja de Paraty, com suas ruas de pedras e vai-e-vem de pessoas, serão 20 quilômetros de vento no rosto.

O primeiro desafio

Em 2018, um grupo de executivos da Azul, liderado pelo CIO Kleber Linhares, resolveu sair do comum e buscar um desafio real, que fosse relevante e realmente mexesse com o time. Depois de tantas metas profissionais alcançadas, era hora de ser capaz de ir além.

O que era um sonho distante para um grupo com rotinas de reuniões, viagens, entrega de projetos e que pouco tempo tinha para cuidar da saúde, foi ficando mais próximo. Durante os seis meses de treinos e adaptação, o tal  veículo chamado bicicleta, até então um estranho para a grande maioria, foi se tornando uma espécie de companheiro de aventuras.

Em setembro de 2018, parte desse grupo completou 245 km pelo Caminho da Fé, e o engajamento do time e impacto positivo interno foi tão relevante, que resolveram que em 2019 a distância e o número de integrantes seria outro, muito maior e com a presença de mulheres desta vez.

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Meta traçada: 540 Km pela Estrada Real – 30 integrantes

Organizar um percurso com 10 pessoas pelo parque já não é muito fácil; para 30 pessoas, por nove dias, equilibrando desafio e possibilidade de cumprimento das etapas em um grupo não tão homogêneo, custou algumas noites de sono, muitas discussões e – acredite em mim – algumas omissões de informações. Afinal, ninguém precisava saber sobre o downhill de pedras soltas antes da hora.

Entre treinos indoor, atividades outdoor e algumas conversas, chegou o dia do início da aventura, e esse grupo tem um compromisso sério com a entrega do que foi proposto. Era hora de partirmos.

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Dia 01:  Lagoa Dourada –Prados – Tiradentes – São João del-Rei

57 KM (Ganho de elevação 900 m)

O dia 1 da cicloviagem começou na madrugada quando chegamos na Pousada Vertentes da simpática e solícita Dona Aide, que nos recebeu e nos acomodou entre os quartos e inúmeros gatos. Um convidado especial – e que não agradou a boa parte do grupo – foram os sinos da igreja em frente à pousada, que por volta das 4h, soaram em um ritmo descompassado, avisando que era hora de partir.

Lagoa Dourada é famosa pelo rocambole, que não tivemos a chance de experimentar, mas tomamos um café a beira do fogão a lenha e partimos entre estradas de terra, fazendas, e a Serra de São José, até chegarmos nas ruas de pedras de Vitoriano Veloso, ou Bichinho. Na cidade, demonstrações artísticas estão nas calçadas das casas,  nos ateliês e lojas de artesanato. O ponto obrigatório de fotografia é a igreja com uma grande cruz toda decorada por itens inusitados, que homenageia o inconfidente Vitoriano Gonçalves Veloso e a Casa Torta.

Seguimos para a linda Tiradentes, de construções históricas e belas igrejas. Lá buscamos nosso passaporte e oficialmente batemos nosso primeiro carimbo.

No primeiro dia a ansiedade sempre toma conta, e é hora do grupo começar a entender o corpo, o trajeto e dosar as energias.

A próxima parada foi em São João del-Rei, ao lado da Igreja Matriz, onde dormimos no dia 6 de setembro, aguardando o Dia da Independência.

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Dia 02: São João del-Rei – Itutinga

60 km – (Ganho de elevação 990 m)

Acordamos com a banda marcial nos avisando que era dia de comemoração. Ao som de tambores e cornetas, estabelecemos o ritmo do pedal um pouco descompassado com a música, já que com 500 metros o grupo se desencontrou e cada parte foi para um lado da cidade histórica. Entre desfile, marchas e danças, nos reencontramos em uma ponte.

No trecho inicial, entramos por uma escondida porteira, um single com rochas, pedras e um belo lago barrento com lama e cocô de vaca nos receberam. Entre xingamentos, olhos arregalados e sapatilhas na mão, atravessamos os obstáculos até chegarmos ao local onde nasceu Nhá Chica.

Com um sol escaldante, um tapete de 20 km de asfalto se ofereceu a nós e uma longa linha de pontos azuis preencheu a estrada até a chegada a cidade. Hora de jogar água e relembrar as cores de cada uma das sapatilhas.

Esse foi o dia mais difícil do planejamento. A ideia inicial era seguir até Carrancas, mas atravessar 30 ciclistas pela Capela do Saco em uma balsa com horários específicos e subir a Serra na sequência fez com que mudássemos os planos. Resolvemos dormir em Itutinga.

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Dia 03: Itutinga – Carrancas

32 km – (Ganho de elevação 750 m)

Se havia o “monstrão” da primeira fase, o nome era Serra de Carrancas. Pelos relatos e pelas fotos que circulavam, decidimos dedicar um dia inteiro para saborear esse enfrentamento.

A Estrada Real serpenteia entre entradas e saídas, terra e asfalto, então é preciso atenção com as placas, que sempre estão localizadas nas esquinas a seguir.

Seguimos em ritmo controlado e confiantes até o pé da Serra, os veículos que passavam por nós encaravam as subidas e sumiam pelo asfalto, virando pequenas miragens no alto do morro. Não foi necessário mais nada para ir minando aos poucos aquela coragem toda.

Nos olhamos com um misto de empolgação e medo, batemos bravamente os dedos na marcha até encontrarmos a famosa vovozinha e fomos.

Quando menos esperávamos, chegamos ao topo da montanha, que não era tão assustadora assim; provavelmente o calçamento facilitou muito. Encontramos um monte de ciclistas que participavam de uma prova na cidade, comemoramos juntos no Mirante e descemos até a pousada com a sensação que podia ter mais um pouco de subidas. Viramos os ciclistas que temíamos. Estamos gostando das subidas!

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Dia 04: Carrancas – Cruzília

70 KM – (Ganho de elevação 1.200 m)

Deixamos a terra das cachoeiras e o destino seria a terra dos queijos, trajeto mais longo, quando começaram a aparecer os mata-burros invertidos, marca registrada do Caminho Velho. Mesmo após cruzarmos dezenas deles caminhando e discutindo a respeito, não achamos uma explicação racional para que o obstáculo fosse posicionado de forma longitudinal. Seja qual foi a lógica desses mata-burros, o cuidado tem que ser redobrado.

Um trajeto de sobe e desce constante. Paramos na Fazenda Traituba, uma linda fazenda, que dizem que ficou no aguardo de Dom Pedro que nunca apareceu por lá.

A chegada é uma longa descida de asfalto, com uma enorme loja de queijos do lado direito. Fritamos os discos, mas paramos para conhecer.

Os Queijos de Cruzília são conhecidos nacionalmente, e a turma que já estava no limite físico fez questão de encher os guidões com sacolas e carregar 4 quilos de queijo até a pousada.

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Dia 05: Cruzília – São Lourenço

54 KM – (Ganho de elevação 780 m)

Destino: terra das águas. São Lourenço é conhecida por seu Parque das Águas. Para chegar até a cidade, encontramos o maior trecho plano, que a essa altura também foi cansativo.

Passamos por Baependi e Caxambu e a chegada a São Lourenço é feita paralela a linha de trem por uma estrada de cascalho. Aliás, uma das características da Estrada Real é a mudança constante de tipos de terreno. Encontramos terra, cascalho, asfalto, pedra moleque, paralelepípedo e o que mais você puder imaginar.

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Dia 06: São Lourenço – Passa Quatro

69 km – (Ganho de elevação 900 m)

Passa Quatro leva esse nome pelo rio que corta a cidade quatro vezes. É possível chegar por dois trajetos, o do Caminho dos Anjos, um pouco mais curto ou o que fizemos, o oficial da Estrada Real, passando por Itamonte e Itanhandu.

Chegamos ao Circuito das Terras Altas da Mantiqueira, e o visual do vale e da Serra da Mantiqueira proporcionam um dos dias com paisagens mais bonitas. Encontramos também o Rio Verde, que tem ali sua nascente.

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Dia 07: Passa Quatro – Guaratinguetá

79 km – (Ganho de elevação 800 m)

Hora de entrar em terras paulistas, seguramente um dos dias mais cansativos. Foi quando o acumulado dos dias pedalados se tornou lastro nas pernas, costas, braços e cabeças do grupo. A altimetria aparente baixa não correspondia com o estado que chegamos na pousada.

Passamos pelo histórico Túnel da Revolução de 32 e paramos para conhecer o lugar. É possível atravessar até o outro lado por baixo e seguir, porém, optamos por dar a volta por cima.

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Enfrentamos a descida mais insana do percurso, uma trilha fechada entre o verde, muitas pedras e a terra que levantava e formava uma cortina de poeira que só se dissipava com os raios do sol. Nesse trecho não é possível ter o acompanhamento de carro de apoio, e valeu uma comemoração quando todos chegaram “vivos”. Nunca pensei que um dia comemoraríamos o fim de uma descida.

O trecho final, apesar de plano, é desgastante. As mineradoras passam com os caminhões carregados, levantando uma poeira misturada com o carregamento das caçambas que dificulta a respiração. O sol também nos castigou.

A chegada em Guaratinguetá beirou o caos. Depois de alguns dias entre montanhas e cidades pequenas, chegar a uma cidade paulista, relativamente grande, não é uma sensação das mais agradáveis.

Nos acomodamos mais uma vez em frente à Igreja Matriz, que vale a visita e um agradecimento.

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Dia 08: GUARATINGUETÁ – CUNHA

52 KM – (Ganho de elevação 1.100 m)

Durante todo o caminho, encontramos totens da Estrada Real, numerados, com os nomes das cidades e um ponteiro, sinalizando onde estávamos.

O ponteiro se aproximava de Paraty, nosso destino final. Faltando dois dias, a ansiedade começava a tomar conta do grupo, que por alguns momentos ficava mais quieto, digerindo aquela mistura de saudades de casa e tanta coisa vivida nesses dias.

Para chegar até a cidade de Cunha é preciso enfrentar muita subida, sim! Saímos de 550 m e chegamos a 1.100 m. Quando achávamos que terminaria o aclive, aparecia mais um, e nos restava respirar mais fundo e seguir.

A chegada é uma longa descida no asfalto até a rua principal, onde existem uma série de pousadas para se acomodar.

Cunha é muito charmosa e tem vários atrativos que valem a visita. Nós só conseguimos tomar um banho e descansar.

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Dia 09: Cunha- Paraty

59 KM – (Ganho de elevação 1.300 m)

Chegamos ao último dia, e todos os pneus resolveram furar na saída pela manhã, só para testar nosso controle emocional. Partimos um pouco mais tarde com o céu nublado, uma novidade para o grupo.

Provavelmente o trajeto mais desafiador e mais bonito da jornada; as subidas não deram trégua desde o início, variando entre terra e asfalto. O sol apareceu para emoldurar um lindo vale entre o verde das montanhas que nos receberam.

Fomos obrigados a nos esconder enquanto uma boiada rebelde resolveu tomar conta da estrada, fizemos um piquenique à beira da estrada e seguimos até a aguardada cachoeira, onde baixamos a temperatura e nos preparamos para subir até a divisa dos estados.

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A placa que sinaliza São Paulo/Rio de Janeiro é a conquista do dia. Em uma subida longa, a temperatura caiu repentinamente e sabíamos que dali para a frente teríamos 20 quilômetros de descida até Paraty.

A chuva veio pela primeira vez, lavando a alma e corpo. A cada curva, carregada da emoção, nos aproximávamos mais da Igreja Matriz e do dever cumprido.

A chegada é sempre uma festa de abraços, sorrisos e olhos nos olhos. A carga de energia de uma experiência dessa magnitude, com tantos envolvidos é única e passa a ser uma marca em cada participante, um entrelace de fios que ficará ligado para sempre na memória de todos.

Com os passaportes já devidamente carimbados e já dentro do ônibus, com meia luz, a pergunta que se ouvia era: “Para onde vamos em 2020?”

O Desafio Azul é um projeto humano, que leva as lições aprendidas em uma experiência real para o universo pessoal e corporativo, um olhar para dentro para expandir e estimular que cada participante evolua como pessoa, profissional e ciclista. Assim como toda grande ideia, o Desafio Azul só se tornou realidade graças ao envolvimento de todos os participantes, e também grandes parceiros envolvidos.

Esse é o espírito. Vida longa ao Desafio!