Quando comentamos que moramos em um motor home, logo começam as perguntas: Onde param? Como fazem com a água? Mas não é perigoso? Como fazem para receber visitas?

Pois é… Receber visitas em um motor home pode ser um problema, mas também uma grande vantagem para os amigos que gostam de viajar. A campeã de visitas ao nosso motor home é a Bruna. Éramos colegas no escritório de arquitetura, na época em que eu morava em São Paulo. Foi a partir de seu convite e incentivo que passei a treinar diariamente, deixando definitivamente o sedentarismo de lado. Sempre que pode, ela viaja até onde estamos para pedalar com a gente.

Calçada Roma. © Rafaela Asprino

Em uma dessas visitas ela estava um pouco triste, com alguns problemas pessoais… Conversamos bastante, ela disse que estaria de férias, mas não sabia muito bem para onde ir. Uns amigos a convidaram para ir a Las Vegas, ou quem sabe a um cruzeiro pelo Caribe, mas ela não parecia muito animada com essas opções. Conversa vai, conversa vem, e de repente o Olinto comenta:

Seguindo em direção a Manzanares El Real com a Serra de Guadarrama ao fundo. © Rafaela Asprino

“Realmente esse tipo de viagem, só de entretenimento, transforma-se em algo pouco representativo, por que vocês duas não vão fazer uma viagem de bicicleta? Já que a Bruna não tem muita experiência com cicloturismo, poderiam tentar algum caminho pré-estabelecido, como o Caminho de Santiago, o que acham?”

Auto retrato com Giovanni, que se auto intitula o “peregrino feliz”. Aos 63 anos, depois de passar por cirurgias graves na coluna e na garganta, ele segue agradecido e a cada ano percorre um “Caminho de Santiago” diferente. E é claro, caminha muito bem e fala bastante, como um bom italiano! © Rafaela Asprino

A Bruna abriu um sorriso. Nós nos entreolhamos e não demorou muito já estávamos planejando a viagem. Para mim seria uma ótima oportunidade de conhecer esse caminho famoso e, ao mesmo tempo, acompanhar a Bruna em sua primeira viagem de bicicleta. O Olinto, por outro lado, não deve ter calculado muito bem o peso de suas palavras. Ele teve que ficar no Brasil, dando sequência ao nosso Projeto de Cicloturismo, enquanto eu me divertia na Europa.

O Caminho de Santiago é uma rota de peregrinação que tem suas origens no século IX, quando supostamente o túmulo do apóstolo São Tiago foi descoberto no norte da Espanha. A partir de então, fiéis de toda a Europa passaram progressivamente a peregrinar em direção ao túmulo do santo. Cada fiel seguia, de forma mais ou menos direta, até a “cidade sagrada”. Pelas características físicas da Europa, naturalmente formou-se uma espécie de funil no ponto de travessia dos Pireneus. Esse caminho, que ficou conhecido como Caminho Francês, transformou-se no mais popular e frequentado pelos peregrinos. Modernamente, o trajeto tradicional tornou-se um roteiro de cerca de 800 km, bem sinalizado e com bastante estrutura turística, sendo uma opção perfeita para quem deseja fazer sua primeira viagem de bicicleta.

Carretera de La República, em direção ao Puerto de la Fuenfría. © Rafaela Asprino

Entretanto, alguém que parte do Brasil para percorrer o Caminho Francês enfrentará alguns problemas logísticos. Ao chegar de avião em Madri, o viajante deverá seguir com ônibus, trem ou outro avião até Pamplona; outro ônibus até Roncesvalles e, então, atravessar os Pireneus em um táxi até a cidade francesa de St Jean Pied du Port, uma verdadeira peregrinação antes mesmo de começar a pedalar, ainda mais considerando que vamos carregar a bicicleta a tiracolo. Essa ideia não me agradou muito, definitivamente não queria gastar meus dias, minha energia e nem meus euros transportando a bicicleta.

Baseada no princípio de que tradicionalmente cada peregrino saía de sua casa em direção a Santiago de Compostela pensei: por que não fazer o mesmo?

A “Rota Francesa” é a mais conhecida, mas eu sabia que existem vários “Caminhos” sinalizados com as famosas setas amarelas, e passei a pesquisá-los. O Caminho de Madri logo despontou como favorito.

Aqueduto de Segóvia. © Rafaela Asprino

A Bruna tinha 20 dias de férias e queríamos viajar devagar. Mesmo com o sol de verão se pondo perto das 21 h, nosso desejo era ter tempo para apreciar os lugares, conviver com as pessoas, comer bem e, com o dia ainda claro, encontrar um bom lugar para dormir. Em outras palavras, queríamos desfrutar a viagem. Nossa proposta era pedalar no máximo cinco horas por dia, sendo o horário limite de parada às 17 h. Prevendo uma média baixa de 10 km/h (contando com subidas e terrenos adversos), chegamos à média diária de 50 km pedalados (a rigor, pretendíamos pedalar mais de 50 km por dia, para compensar dias difíceis ou paradas de descanso). Em 20 dias poderíamos cobrir 1.000 km.

Castillo de Coca. © Rafaela Asprino

O caminho entre Madri e Santiago de Compostela tem cerca de 780 km. Sobravam ainda 220 km. Nessa hora o Caminho Português saltou aos nossos olhos. Ele tem início em Lisboa, passa por Porto e vai até Santiago. O trajeto de Santiago até Porto tem exatamente a quilometragem pretendida e, em Porto, poderíamos tomar o avião de volta para o Brasil. Estava decidido! Chegando a Santiago, continuaríamos pelo Caminho Português, só que ao contrário, “ora pois”!

Bosque de pinares. © Rafaela Asprino

Normalmente, um caminho sinalizado em uma única direção é muito difícil de ser seguido na direção oposta. No entanto, descobrimos que o Caminho Português tem sinalização reversa, com setas azuis que indicam o percurso entre as cidades de Santiago e Fátima, em Portugal. Assim ficou perfeito! Pedalaríamos 1.000 km entre os aeroportos das cidades de Madri e Porto através dos “Caminhos de Santiago”.

Compartilhando o jantar no albergue de Puente Duero. © Rafaela Asprino

Em frente à Igreja de Santiago, no centro de Madri, está o marco zero do Caminho de Madri, que segue para noroeste. Nós montamos as bicicletas no aeroporto, ao norte da cidade, e cortamos caminho, pedalando até a saída do Parque Regional Cuenca Alta del Manzanares, onde encontramos a primeira seta amarela. Graças à praticidade da bicicleta, em poucos quilômetros estávamos fora da área urbana, evitando os transtornos de atravessar uma grande metrópole.

Ao contrário do que se imagina, utilizar apenas um alforje interfere pouco no equilíbrio ao pedalar. © Rafaela Asprino

Pouco conhecido e frequentado, a estrutura turística do Caminho de Madri ainda está se desenvolvendo. Já no primeiro dia de pedalada tivemos dificuldade de encontrar um local para dormir em Manzanares El Real. O albergue municipal estava desativado; para piorar a situação, chegamos num domingo à tarde, final de emenda de feriado, e os poucos hotéis da cidade estavam fechados. Depois de muito procurar, com o sol já se pondo, encontramos o único hotel que estava funcionando. Essa foi nossa hospedagem mais cara, 57 euros para duas pessoas (da mesma forma, as hospedagens mais econômicas foram no Caminho de Madri – os albergues de Añe e Puente Duero são gratuitos, coisa rara de se encontrar no Caminho Francês). Imaginávamos que, se não encontrássemos lugar, poderíamos procurar o padre e pedir abrigo na igreja, conforme nos foi sugerido, ou então seguir pedalando até a próxima localidade.

Peregrinos voluntários fazem a manutenção da sinalização do Caminho de Madri. © Rafaela Asprino

Nessa hora senti muita falta de minha barraca e fogareiro. Com eles na bagagem não teria esse tipo de problema. Durante nosso planejamento decidimos viajar o mais leve possível e, ao mesmo tempo, compartilhar a experiência de despojamento dos peregrinos de Santiago, que tradicionalmente pernoitam em espaços coletivos (em Leon, por exemplo, dormimos no albergue do Convento das Irmãs Beneditinas, em um quarto enorme com mais de 70 mulheres!). Por isso esses equipamentos ficaram em casa.

Trilha e estrada seguem em paralelo Santa Catalina de Somoza, no Caminho Francês. © Rafaela Asprino

Desde Madri já avistamos ao longe a Serra de Guadarrama, que separa as comunidades autônomas de Madri e Castilla y León. Em Manzanares, a 900 m de altitude, começa a travessia do Puerto de la Fuenfría, a 1.796 m de altitude. Boa parte do trajeto discorre sobre uma antiga calçada romana e, para quem vai de bicicleta, serpenteia a montanha pela Carretera de La Republica, uma via antiga que não foi asfaltada. Estes dois Caminhos sobem lado a lado e se cruzam algumas vezes. Assim como esse, outros trajetos dos “Caminhos de Santiago” passam por percursos exclusivamente peatonais, com uma opção paralela para os peregrinos em bicicleta.

Pausa para o lanche. © Rafaela Asprino

Continuamos rumo noroeste e, na cidade de Sahagún, encontramos o Caminho Francês. Até aqui, a maior dificuldade ficou por conta das vias entre os chamados “pinares”. Apesar da planura e sombra constante dos pinheiros, transitar pelo solo arenoso era difícil até mesmo para os caminhantes. Por várias vezes tivemos que seguir empurrando a bicicleta. Percebemos que nosso cálculo de 10 km/h estava muito bem feito! Mesmo que durante o treinamento conseguíssemos impor médias superiores, nada se compara à realidade e aos imprevistos do dia a dia da viagem.

Ótima sinalização por todo o Caminho. © Rafaela Asprino

Foi nítida a transformação do Caminho ao chegarmos em Sahagún. Durante todo o dia cruzávamos com dezenas de peregrinos, que disputavam espaço nas trilhas e nos pequenos vilarejos. Não havia a necessidade de placas nem avisos, definitivamente havíamos chegado no Caminho Francês. Ficamos felizes e por vezes emocionadas ao visitar as localidades descritas nos tantos relatos que havíamos lido a respeito do Caminho: Leon, Astorga, a Cruz de Ferro, o Alto de San Roque e o Cebreiro, porta de acesso para a Galícia, com sua topografia ondulada e cultura original.

As pessoas com quem nos relacionamos é que são a verdadeira “alma do Caminho”. © Rafaela Asprino

Chegando a Santiago, fomos logo retirar os nossos “certificados”, a Compostela, como é conhecida, e no outro dia já rumamos para o sul, perseguindo o Caminho Português. Em meio a belas paisagens bucólicas a Bruna atravessou pela primeira vez, de bicicleta, uma fronteira internacional. Os dois últimos dias de pedalada não foram fáceis. Chuva, pneus furados e até um corte em um deles. A sorte é que eu tinha um remendo de pneu (isso mesmo, de pneu!) que havia ganhado do nosso amigo alemão Frank, então, resolvemos tudo sozinhas. De certa forma fiquei satisfeita com essa situação, no meu ponto de vista, mesmo sendo difícil pedalar e consertar a bicicleta na chuva, vivenciar essas situações tornou a experiência de viagem da Bruna mais completa.

Compartilhando o espaço com os caminhantes. © Rafaela Asprino

Ao alcançar nosso ponto de chegada, a cidade de Porto, preferimos nos instalar no albergue de peregrinos, nas imediações do aeroporto, e visitar o centro com o trem. Mais uma vez evitamos pedalar em uma cidade grande, com a vantagem de experimentar um modal diferente, utilizado pela população local em seu dia a dia.

Desde o planejamento da viagem sabíamos que qualquer que fosse o caminho escolhido, não iríamos nos decepcionar, pois a Península Ibérica como um todo transpira história e belas paisagens. Nos surpreendemos com a pequena vila de Coca (ES) e seu castelo medieval, com o imenso aqueduto de Segóvia (ES), com a cidade fortificada de Valença do Minho (PT), com os espaços pitorescos de Ponte de Lima (PT) – pessoas, construções, esculturas e música na praça – tudo em tão perfeito equilíbrio que até parecia estarmos dentro de um filme. Isso sem falar nas belezas da Serra de Guadarrama, dos bosques de “pinares”, dos caminhos pelos antigos canais de Castilla e dos campos portugueses. De qualquer forma, em todo o percurso percebemos um carinho especial e zelo por aqueles que vão em direção a Santiago. Nessa hora presenciamos lições de humildade e amor que elevam o espírito; as pessoas com quem nos relacionamos é que são a verdadeira “alma do Caminho”.

Durante os sete dias em que pedalamos pelo Caminho de Madri encontramos apenas dois cicloturistas autônomos, um grupo de cinco cicloturistas com carro de apoio e umas duas dezenas de peregrinos a pé. Ao chegarmos no Caminho Francês já foi bem diferente. Peregrinos e turistas de vários lugares do mundo, uns carregando a própria bagagem, outros em excursões de um dia, transformavam o Caminho em uma via bastante movimentada. Também pudera… Em 2013, dos 215.880 peregrinos que chegaram a Santiago, 70% percorreram o Caminho Francês e 13,6% percorreram o Caminho Português. O Caminho de Madri aparece na estatística junto com “outros caminhos”, com 0,22% dos peregrinos, segundo a oficina de acolhida ao peregrino da Catedral de Santiago de Compostela (peregrinossantiago.es).

Mapa da rede de Caminhos
Mapa do nosso caminho

Se por um lado o grande fluxo de peregrinos melhora a quantidade e qualidade de serviços oferecidos ao turista, o tumulto e as facilidades podem abafar o verdadeiro “espírito do Caminho”: a introspecção, o desapego e o encontro com si mesmo.

Apesar da saudade e da falta que senti de compartilhar o caminho com o Olinto, viajar com a Bruna foi para mim uma experiência fortalecedora, reforçamos nossa amizade, aprendemos uma com a outra e, é claro, vivenciamos o caminho e nos divertimos bastante. Mesmo dentro de um roteiro pré-determinado, criamos a nossa própria história, o nosso caminho pessoal, construído com base em nossos próprios parâmetros. Esse foi o “nosso Caminho de Santiago”.

Cruz de Ferro. © Rafaela Asprino

O que carregamos

  • Documentos: passaporte/ passagens/ RG/ dinheiro (euros e alguns reais)/ credencial do peregrino/ cartões de crédito e débito/
  • Roupas: 1 calça para pedalar/ 1 calça que vira bermuda/ 1 calça para dormir/ 1 blusa segunda pele/ 3 camisetas de manga curta/ 1 manguito/ 1 camiseta de manga longa quente/ 1 blusa de frio com capuz/ 1 capa de chuva/ 1 lenço de cabeça/ 1 luva de dedo longo/ 1 bota/ 1 chinelo (croks)/ 1 polaina (proteção de calçado para chuva)/ 2 tops/ 4 calcinhas / 2 meias comuns/ 1 meia grossa – Lavar a roupa todos os dias garantiu que, mesmo com poucas peças, nos mantivéssemos limpas durante todo o percurso.
  • Higiene e primeiros socorros: escova e pasta de dentes/ fio dental/ toalha de secagem rápida/ desodorante/ sabonete e saboneteira/ shampoo/ cotonete/ papel higiênico/ líquido antisséptico/ fita microporosa/ protetor solar/ kit para ciclo menstrual/ protetor auricular/
  • Equipamentos: saco de dormir (temperatura de conforto +5 graus)/ canivete suíço/ agulha e linha/ máquina fotográfica + carregador/ mini tripé/ pen drive/ diário/ guia do caminho e mapas/ caneta/ lanterna de cabeça/ cadeado para bicicleta/ cadeado para armário/ óculos de sol fotossensível/ odômetro/ smartphone + carregador. O saco de dormir é um equipamento importante para quem pretende pernoitar em albergues. Mesmo no verão em algumas localidades pode fazer muito frio e na maioria dos albergues não há mantas nem cobertores.
  • Ferramentas: com facilidade de encontrar bicicletarias pelo caminho, essencialmente carregamos as ferramentas necessárias e suficientes para desmontar e montar as bicicletas, efetuar manutenções que temos prática e alguns itens para eventuais “gambiarras” emergenciais: bomba/ kit de remendo de câmara de ar/ 1 câmara de ar reserva/ chave de corrente/ remendo de pneu/ kit de chaves para bicicleta/ parafusos reserva/ algumas abraçadeiras de nylon/ pedaço de fita silver tape/
  • Bolsas e suportes: bolsa de guidão impermeável/ 1 alforje impermeável de 36L/ bolsa de quadro impermeável para ferramentas/ bagageiro traseiro/ suporte para garrafa de 2L/ bolsa de cintura para máquina fotográfica/ bolsa de cintura para documentos e dinheiro/ espelho retrovisor/ suporte para bicicleta (pezinho). A interferência no equilíbrio e desempenho da pedalada ao utilizar apenas um alforje é irrelevante. Ao contrário, nos trechos onde tivemos que empurrar a bicicleta, ficou muito mais fácil sem o alforje do lado esquerdo.

Cálculo do peso:
Bicicleta + suportes: 13,9 kg
Alforjes + bolsas com todo equipamento (incluindo a roupa do corpo) e ferramentas: 8 kg
Bolsa de cintura com equipamento fotográfico: 1,3 kg

Chegada a Santiago de Compostela. © Rafaela Asprino

Hospedagem, comida e dinheiro:

Há uma regra geral nos Caminhos a Santiago que dá prioridade de hospedagem aos peregrinos a pé nos albergues municipais até às 17 h. Após esse horário os ciclistas passam a ser aceitos. No Caminho Português, devido ao progressivo aumento do fluxo de peregrinos, o horário foi alterado para as 20 h, tornando-se quase impossível hospedar-se nesses locais quando se viaja em bicicleta na alta temporada. No Caminho de Madri não tivemos problemas e nos hospedamos em albergues praticamente todos os dias. No Caminho Francês existem muitas opções de hospedagem privada com as mesmas características dos albergues municipais, portanto, não há dificuldade em encontrar pouso econômico. No Caminho Português conseguimos lugar em albergue municipal apenas um dia. Nos outros nos hospedamos em hotel ou Guest House.

De forma geral, tomávamos o café da manhã e jantávamos em restaurantes. Quando o albergue oferecia estrutura, nós mesmas preparávamos essas refeições. Durante o dia nos alimentamos com frutas e pequenos lanches que comprávamos nas vendas e mercadinhos. O chamado “menu peregrino” foi uma forma econômica e deliciosa de se alimentar, sempre com opções de comidas típicas acompanhadas de um bom vinho regional.

Total gasto por pessoa, com exceção da passagem aérea: cerca de 500 euros, dos quais 265 euros se referem à hospedagem.

Cidade fortificada de Valença do Minho. © Rafaela Asprino