O que dizer de cicloturistas? Além de aventureiros são curiosos, destemidos, simpáticos, livres de vários convencionalismos, buenas personas… Assim como Aquiles Toschi Jr. e Áurea Wawzeniak, ele cuiabano, delegado de polícia aposentado recentemente, experiente em cicloviagens como Transoceânica (do Acre ao Oceano Pacífico), Estrada Real, Mercosul e outras aventuras; ela, catarinense de São Bento do Sul, professora, com experiência em quatro cicloviagens nacionais. Em seu primeiro pedal juntos, percorreram cerca de 600 km entre Palmares do Sul – RS e Chuy – Uruguai, na região turística Costa Doce, localizada ao sul do Brasil no litoral do estado do Rio Grande do Sul.

O que dizer de bicicletas? Parceiríssimas para todo e qualquer lugar, todo e qualquer tempo. Exigentes nas subidas, sapecas nas descidas, pacientes nas planícies, pampas e altiplanos. E o mundo? Belíssimo de extremo a extremo. Na sua riqueza de flora, fauna, culturas, histórias, paisagens naturais ou modificadas.

Férias? Tempo de aproveitar tudo acima. E foi o que fizemos. Resolvemos realizar uma cicloviagem saindo de Palmares do Sul – RS ao Chuy – Uruguai, região conhecida como Costa Doce. Algo em torno de 600 km de pura planície, vento minuano, diversas flores e frutos silvestres, extensas plantações, ora de arroz ora de pinus e/ou eucaliptos.

Chegamos em Palmares do Sul em 29 de dezembro de 2015 para iniciar o pedal do primeiro dia, aproximadamente 40 km, em sua maioria, entre extensas plantações de arroz. Este dia foi só para “quebrar o gelo”. O destino foi a Lagoa de Bacopari – RS, com belas dunas e água calma para os banhistas. Fiquei preocupada com o relevo plano, pois como estou acostumada com morros constantes imaginei que teria problemas na coluna, uma vez que fica difícil a mudança de posição ao pedalar. Senti medo, por já ter tido experiência negativa no Circuito Vale Europeu, onde pedalei por volta de 30 km com chuva e em superfície semelhante. Mas foi só pedalar os primeiros dois dias que percebi que este medo não me tiraria do objetivo.

Aquiles já conhecia a região, pois já havia pedalado pelas terras gaúchas em agosto e setembro de 2010, em pleno inverno, ao realizar sua estreia como cicloturista na companhia de seu irmão Paulo Toschi Netto.

Existem várias pousadas e pessoas dispostas a colaborar com os cicloturistas.

No segundo dia, seguimos em direção à cidade de Mostardas – RS, distante aproximadamente 80 km. A rodovia BR-101, neste trecho, está necessitando de reparos urgentes. O principal aliado foi o tempo, que colaborou com sol e ventos a favor. Mostardas mostrou-se uma adorável cidade com forte arquitetura açoriana. Nota-se o empenho da comunidade em preservar tradições, usos e costumes. A noite mostardense oferece pizzarias, lancherias, ruas e praças bem iluminadas, nas quais pode-se relaxar e repor as energias para o dia seguinte. Existem várias pousadas e pessoas dispostas a colaborar com os cicloturistas. “Hospedam” inclusive as bikes em locais seguros, limpos e próximos de seus donos, quando não no próprio quarto, o que facilita muito a organização e manutenção das magrelas. A maioria dos locais oferece café da manhã.

Tudo transcorria em perfeita harmonia, tudo do jeitinho que os cicloturistas adoram. Mas, como tudo que é bom termina logo, no terceiro dia de pedal, saindo de Mostardas em direção à localidade de Bojuru – RS, tudo o que estava a favor ficou contra. Fomos surpreendidos com o famoso vento minuano, que estava totalmente desfavorável a todo e qualquer sonho de manter o rendimento dos dias anteriores. Foram aproximadamente 40 km de vento forte e ameaçador, por várias vezes nos colocando em risco de tombos e de ter as bikes deterioradas.

© Aquiles Toschi Jr. e Áurea Wawzeniak

A 27 km de Mostardas está a cidade de Tavares, onde almoçamos no Restaurante Flamingo, alimentação saudável, wi-fi, TV, enfim, um local onde você pode se atualizar e descansar. A cidade é pequena e acolhedora, tem alguns locais para repor o estoque de líquidos e alimentos de sobrevivência. Nos próximos 53 km, o cicloturista passará por diversas plantações de pinus, madeira largamente utilizada para a construção de casas, pontos de ônibus, galpões e móveis. Da resina desta árvore também é extraído o breu e a terebentina. Percebe-se este procedimento por diversos quilômetros seguidos. Infelizmente também existe o descaso de humanos que depositam ali seus lixos domésticos e até móveis e utensílios que já estão obsoletos. A beleza do local torna-se comprometida.

Saímos de Tavares por volta das 15 h 30 min com mais 50 km para percorrer até Bojuru, e o vento ainda forte. A pedalada exigiu maior esforço e foi desafiadora. Escureceu e ainda faltavam mais de 15 km. Foi a única vez que precisamos recorrer às lanternas, que foram muito úteis e proporcionaram nossa chegada de maneira segura por volta das 22 h.

Quando todos já estavam preparados para a festa da virada do ano, nós, super cansados, buscávamos uma pousada, janta e um banho merecido. Para a nossa “festa da virada”, conseguimos apenas três cervejas: a alimentação era o que tínhamos nos alforjes. E foi assim que Aquiles e eu preparamos uma mesa improvisada, contendo salada de atum, pão amanhecido e amassado pelos alforjes, alguns chocolates, água e as três cervejas que conseguimos comprar em um bar onde havia uma festa familiar. Mortos de fome, nem percebemos que o ano já não era o mesmo, já estávamos em 2016 a mais de 10 minutos. Após brindes e desejos de que o ano fosse recheado de cicloviagens e de muita parceria, adormecemos rapidamente, mesmo com o início de um baile a menos de duas quadras.
No primeiro dia de 2016 levantamos cedo e, como era feriado nacional, não encontramos local para café da manhã. Tivemos que nos contentar com a compra de pães, queijos e presuntos e fazer o desjejum à sombra de eucaliptos. Neste momento fomos surpreendidos pela visita de uma cobra totalmente verde que imitava as folhas do eucalipto. Parecia dócil e passiva, mas ninguém quis certificar-se disso ou ficar na sua companhia. O que menos um cicloturista necessita são ferimentos ou picadas de qualquer animal.

Neste dia, a proposta era pedalar cerca de 80 km até São José do Norte, atravessar a Lagoa Mirim de balsa e hospedar-se em Rio Grande – RS. O dia foi perfeito, tudo na maior paz, pedalar constante, tranquilo diante da natureza silenciosa, calor agradável, conversas interessantíssimas, cebolas encontradas pelo caminho, fotos aqui e ali… Aquiles prestando atenção em todo tipo de fruta silvestre, parando, coletando, comendo e dando verdadeiras palestras a respeito da existência e sobrevivência de algumas espécies como o butiá, que só consegue crescer às margens da rodovia, onde não é degustado pelo gado ou podado pelas roçadeiras.

© Aquiles Toschi Jr. e Áurea Wawzeniak

Quando a fome bateu, adentramos na localidade de Estreito em busca de uma lancheria ou restaurante. Obviamente, considerando a simplicidade do local e por ser o primeiro dia do ano, não havia nenhum tipo de comércio aberto. Só tínhamos uma opção: juntar a cebola encontrada às latas de salada de atum e pão espremido. Enquanto eu punha a “mesa do primeiro almoço do ano”, Aquiles seguiu até uma residência pedir água e informações. Ganhou muito mais do que queria: voltou com três tipos de carne assada, dois litros de refrigerante e quatro meninos superinteressados nas bikes e na cicloviagem.

Chegamos em São José do Norte com o sol dando o ar da graça, apresentando as dunas e dourando as águas dos lagos à beira da estrada. Depois de um dia de descanso para nos recuperar de uma alergia e um pequeno tour pela cidade, no qual conhecemos os Molhes da Barra e os estaleiros, seguimos em direção a Capilla, uma vila de pescadores estrategicamente localizada às margens da Lagoa Mirim, linda praia de água doce, abençoada pela igreja (Capilla) da época colonial que está em plena restauração. Os locais dão uma verdadeira aula da colonização espanhola e portuguesa da vila. Aproveitando o passeio, nos dirigimos ao cemitério onde estão mortos de vários conflitos ali ocorridos. Há pousadas e algumas casas para alugar a turistas por preços convidativos, assim como lancherias e pessoas bem-humoradas para realizar o atendimento. Pessoas como o Seu Cardozinho e esposa, da Pousada Cardozinho, onde pernoitamos. Pelos entornos da localidade de Capilla iniciam-se os Campos Neutrais, que se estendem por vários quilômetros além da fronteira do Brasil com o Uruguai.

© Aquiles Toschi Jr. e Áurea Wawzeniak

No quarto dia do ano, partimos em direção ao Chuí. A empolgação aumentava, já que faltava pouco mais de 150 km. Passamos pela Estação Ecológica do Taim, com uma extensão de mais de 30 mil hectares de rica flora e fauna que exibe capivaras, tartarugas, lontras, ratão do banhado, aves como o tachã, martim-pescador, biguá, cabeça-seca, marrecas, entre outras que podem ser facilmente observadas durante a travessia. Mesmo com cuidados intensivos, os atropelamentos de capivaras e outros animais é constante, levando à reflexão de que muito ainda precisa ser feito para melhorar a realidade do local. Após vários registros no Taim, seguimos em direção ao objetivo. Pedalamos em torno de 80 km entre uma vegetação diferenciada, com pequenos arbustos como o maracujá silvestre e o butiá, ao longo da maioria do percurso. Finalizando o contato com a luz solar, decidimos procurar um local para armar barraca, já que naquela região conhecida como Espenilho não havia relato de pousadas ou hotéis. Solicitando informações com os moradores, descobrimos que havia uma lanchonete que algumas vezes acolhia também hóspedes. Era de uma senhora conhecida por Polaca; esta nos recebeu receosa, mas no decorrer da conversa se convenceu de que os cicloturistas são realmente “buenas personas”.

Higienizou os aposentos com entusiasmo; preparou uma deliciosa pizza para a janta, assim como reforçou o café da manhã com um mega sanduíche com queijo, presunto e ovos. Depois de trocas de endereços eletrônicos, entrega de adesivos e fotos com a Polaca, colocamos o pé na estrada, já com uma chuva fina que, ao longo do sexto dia de pedal, tornou-se forte e companheira pelos próximos 60 km que nos separavam de Santa Vitória do Palmar – RS, cidade que resolvemos conhecer devido a seu grande valor histórico na região. Chuí ficou para o dia seguinte, a menos de 30 km. Com a chuva intensa e perseverante, houve muito trabalho para pendurar e secar roupas e utensílios. Depois de um banho quentinho, fomos ainda na companhia de chuva fraca conhecer a noite na cidade, assim como buscar um local para jantar. Surpreendemo-nos com a beleza noturna, com calçadas largas e bem iluminadas, que valorizavam a sua bela arquitetura eclética. Degustamos uma pizza assada em forno a lenha, música e iluminação aconchegantes e relaxantes. Enfim, a noite salvou o dia! Em seguida descanso merecido, já que o dia exigiu esforço físico, muita paciência e atenção ao dividir a pista com automóveis devido a precariedade de grande parte do acostamento, que se tornava perigoso devido a grandes poças de água da chuva e de areia.

© Aquiles Toschi Jr. e Áurea Wawzeniak

O dia seguinte, dia 6 de janeiro, amanheceu nublado e com pouca possibilidade de chuva, o que favoreceu o tour no Porto de Santa Vitória, importante via de locomoção e transporte de mercadorias pela Lagoa Mirim, que fazia e ainda faz a ligação entre Pelotas, Lagoa dos Patos e Porto Alegre. Visitamos o Museu e Biblioteca Municipal que abriga toda a história da região, no cemitério conhecemos o jazigo do guerrilheiro pampeano, um dos chefes maragatos da Revolução Federalista: Gumercindo Saraiva, o degolador e degolado, sendo que somente seu corpo permanece enterrado ali mesmo, sua cabeça, não existe confirmação do local para onde foi levada. Estes conflitos foram causados pela fixação dos homens na região.

Saciada a curiosidade, seguimos em direção ao grande objetivo: Chuí e Chuy. Foram 20 km de vento leve, reaparecimento do sol e visualização constante das Usinas Eólicas, gigantes fontes de energia limpa instaladas na região e que também influenciaram algumas mudanças na população local. Ao chegar à aduana brasileira fomos recebidos cordialmente pelos responsáveis.

Resultado desta cicloviagem? Bem, o saldo foi totalmente positivo.

Às 15 h 45 min, Chuí recebia uma dupla de cicloturistas feliz, realizada e ainda muito curiosa, energizada ao extremo, que logo correu ao encontro do hotel para deixar as bikes livres dos equipamentos e seguir avidamente em direção ao Fuerte San Miguel, no país vizinho, Uruguai.

Apenas 8 km separavam a cidade do forte e do Museu San Miguel. O pedal foi rápido, ansioso e muito bem aproveitado. No caminho observa-se as demarcações constantes que dividem os dois países. Diverti-me muito no forte, admirei, sonhei, entristeci-me com o campo santo, contextualizei-me com os acontecimentos ali vividos, com Aquiles atento aos detalhes, observando o todo e sanando as curiosidades minhas e dele próprio.

Algo que chama a atenção no local é a recuperação e utilização de automóveis e utilitários muito antigos circulando naturalmente nas ruas a pleno vapor, todos atuando com vigor e muito procurados pelos moradores e turistas.

© Aquiles Toschi Jr. e Áurea Wawzeniak

A noite chegou e fomos comemorar a finalização do pedal em terras uruguaias, onde experimentamos algumas de suas cervejas e as famosas carnes. No raiar do dia seguinte, saímos em direção à Praia da Barra do Chuí, distante cerca de 15 km da cidade. O acostamento deixa a desejar, é estreito demais, mas nada que impedisse de nos encantar com o encontro do Arroio Chuí e o Oceano Atlântico, sendo a marcação das divisas dos países Brasil e Uruguai. Mesmo com o vento frio que insistia em permanecer na praia, é admirável a disposição dos banhistas e a procedência dos mesmos: Argentina e Uruguai, fato que motivou os comerciantes locais a se preocuparem com placas, letreiros e propagandas em idioma compreensível ao maior público visitante da região. Aproveitamos para conhecer a Ponte Internacional e coletar informações sobre as rutas que poderemos seguir no fim deste ano, já que pretendemos continuar a aventura saindo de Santana do Livramento – RS até Montevidéu, capital do Uruguai.

Resultado desta cicloviagem? Bem, o saldo foi totalmente positivo, em nenhum momento houve desentendimentos ou frustrações, o que seria normal, uma vez que nunca havíamos pedalado juntos. Cada decisão foi refletida, dialogada e colocada em ação, sempre com um plano B à disposição. A trip só ajudou a amadurecer ideias e fortalecer a vontade de realizar novas cicloviagens.