Para aproveitar o período de férias e verão, Marcello Ruivo, Professor Arnaldo (blogger do Nóis na Fita a TV), e eu (Claudia Franco) resolvemos embarcar em mais uma cicloviagem de três dias pelo litoral sul do estado de São Paulo, no Vale do Ribeira, partindo de Iguape para percorrer parte do Circuito Lagamar.

Iguape

Em sua época áurea, o município de Iguape viveu da extração de ouro, indústria da navegação e plantação de arroz. Até meados do século XIX, Iguape sempre havia sido uma espécie de península, com o Rio Ribeira de Iguape serpenteando até quase três quilômetros do mar e depois retornando para o interior, só encontrando sua foz muitos quilômetros adiante. Nesta época foi construído um canal que ligava o rio ao mar, permitindo assim o transporte direto do arroz até as embarcações de grande porte. O canal foi construído por escravos por mais de duas décadas e começou a ser utilizado em 1852.

Por volta de 1900, com a contenção das margens, controlou-se o fluxo de água no canal, mas o Mar Pequeno ficou assoreado, o que acabou impedindo a entrada de navios grandes no porto. O porto da cidade já não podia ser utilizado por embarcações de maior calado, impedindo assim a saída do arroz e levando à decadência da cultura de arroz da cidade. O declínio da cultura de arroz e os problemas políticos levaram à decadência do município no final do século XIX. De referência como centro agroexportador, a cidade foi aos poucos perdendo importância. A partir da década de 1930, Iguape conseguiu iniciar um processo de recuperação, com o desenvolvimento da cultura de banana e da pesca, mas a falta de planejamento, associada aos problemas políticos locais que persistem há quase dois séculos, impediram que ela conseguisse retornar à opulência que um dia teve. Hoje a cidade tem um índice de desenvolvimento humano abaixo da média brasileira e vive da pesca e do turismo. Seu centro histórico é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como patrimônio nacional desde 2009.

Iguape tem inúmeras atrações para o turista, pontos históricos e muita natureza para ser reverenciada, como diversas trilhas ecológicas, o Mar Pequeno, praias do Leste e da Juréia. Iguape é parte do Complexo Estuarino-Lagunar do Mar Pequeno, também conhecido como Lagamar, que engloba os municípios de Iguape, Ilha Comprida, Cananéia e Pariquera-Açu, no estado de São Paulo, e Paranaguá, no Paraná. É uma área muito rica em manguezais, que serve de berçário para várias espécies marinhas e por isso é considerada um dos cinco maiores criadouros marinhos do mundo. Suas lagunas à beira-mar com vegetação de restingas e Mata Atlântica possuem uma deslumbrante fauna e flora, entre eles estão guarás, biguás, garças, golfinhos, dezenas de espécies de aves marinhas, e animais exóticos, como o papagaio-de-cara-roxa, uma das aves que está sob risco de extinção no planeta. Em toda a sua extensão, existem também inúmeros sítios arqueológicos, onde estão os Sambaquis, deixados por populações nômades e indígenas que habitavam o local há mais de 5 mil anos.

© Claudia Franco

Ilha Comprida

Saindo de Iguape fomos em direção a Ilha Comprida. O acesso se deu pela Ponte Prefeito Laércio Ribeiro, sobre o Mar Pequeno.

A história de Ilha Comprida confunde-se com as origens dos povoados de Iguape e Cananéia que, ainda no período pré-colonial do Brasil, foram ocupados por degredados europeus aliados aos povos indígenas da região. No início do século XX começa a se desenvolver a Vila de Pedrinhas, tradicional povoado de pescadores, um dos pontos de referência para quem pedala pela praia.

O nome Ilha Comprida se deve à característica peculiar de seu território que tem a extensão muito maior que a largura, 4 km de largura em alguns pontos e 74 km de praias. Áreas de mangues, sítios arqueológicos, matas, dunas e espécies raras de aves, a Ilha Comprida é uma das últimas áreas remanescentes da Mata Atlântica e um dos últimos ecossistemas não poluídos do litoral brasileiro. Constitui um dos maiores viveiros de peixe e crustáceos do Atlântico Sul. Por possuir importância ambiental, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a incluiu como Reserva da Biosfera do Planeta. O município, que tem 100% de seu território – 252 km² – incluído em Área de Proteção Ambiental, desenvolve ações estruturais para se transformar em Cidade Modelo do Turismo Sustentável.

Percorremos 70 dos 74 km de praia até Cananéia. O pedal pela praia é extremamente prazeroso, mas é necessário ter preparo físico, pois além do calor, dependendo do período do ano, a distância em si não é pequena, o vento e a areia podem dificultar o deslocamento. Depois de passar pela orla do centro da cidade a praia fica praticamente deserta. De um lado o mar, do outro dunas e vegetação, pássaros são presença constante, tanto no solo, alimentando-se de peixe, quanto nos céus em formação de lindas linhas. Como ficará em média quatro horas pedalando, para quem gosta de nadar no mar, mergulhos intercalados são sensacionais. Atente-se para manter o foco à tamanha amplitude de horizonte e tome cuidado com o tráfego de carros que passam educadamente vez por outra.

Após rodar os 70 km, saímos da praia e pedalamos mais 2 km até a balsa que faz a travessia de Ilha Comprida para Cananéia. A travessia de balsa é relativamente lenta e é um excelente momento para apreciar a linda paisagem, sentindo o vento te acariciando.

© Claudia Franco

Cananéia

Cananéia é por alguns considerada a cidade mais antiga do Brasil (cinco meses antes da fundação de São Vicente) mas por falta de documentação oficial que comprove tal fato, São Vicente é oficialmente a cidade mais antiga do Brasil. Atualmente, o Centro Histórico de Cananéia ainda preserva os estilos arquitetônicos adotados pelas primeiras casas desde o período colonial até o final do século XIX. Hoje, muitos desses prédios viraram patrimônio histórico da cidade e muitas de suas praças e igrejas também conservam o estilo barroco da época do desbravamento da região. Cananéia tem no turismo e na pesca suas principais atividades econômicas.

As praias também atraem milhares de pessoas na alta temporada. Fazendo a travessia para a Ilha do Cardoso há várias trilhas, cachoeiras e sítios arqueológicos a serem visitados. As festas, a culinária e o artesanato também são atrativos à parte da cidade.

De Cananéia, fizemos o passeio até a Ilha do Cardoso. Em Cananéia pegamos uma “voadeira”, barco rápido de alumínio, colocamos as bikes e depois de uma hora e meia chegamos à ilha. Durante o percurso, sente-se a grandiosidade das serras imponentes ao longe, enquanto “voamos” relativamente perto da vegetação circundante. Ficar em pé, abrir os braços, sentindo a dinâmica da superfície aquática é um ótimo exercício de alinhamento da percepção.

Quanto ao preço, fique atento para não ser enganado. O passeio de voadora custa R$ 50,00 por pessoa, mas o dono da pousada onde ficamos hospedados em Cananéia nos fez pagar R$ 150,00. Embutiu R$ 100,00 por cabeça. Lamentável, pois a pessoa parecia ser de confiança.

© Claudia Franco

Parque Estadual da Ilha do Cardoso

O Parque Estadual da Ilha do Cardoso foi criado em 1962, abrange uma área de 15.100 ha e possui grande diversidade florestal de Mata Atlântica costeira como restinga, florestas costeiras e manguezais.

A Ilha do Cardoso faz divisa com o estado do Paraná. É um destino ainda bem pouco explorado, muito preservado (pelo menos 90% da Ilha é Mata Atlântica nativa) e cheio de lugares lindos pra visitar, com praias desertas, cachoeiras, trilhas e piscinas naturais. Na ilha não tem energia elétrica, alguns lugares têm geradores que são desligados após as 23 horas, outros usam energia solar. É uma grande oportunidade de se desconectar do mundo. Telefones celulares não funcionam, o local é praticamente um oásis de sossego.

As hospedarias são rústicas e muito simples, dando-se nas casas dos caiçaras. As atividades turísticas se concentram nas comunidades de Perequê e Marujá. Contudo, as localidades de Itacuruçá, Praia do Pereirinha, Enseada da Baleia, Pontal do Leste, Foles, Cambriú e Praia do Ipanema apresentam também infraestrutura para recebimento de visitantes. O controle da visitação se dá pelo monitoramento do número de leitos e da infraestrutura sanitária de cada comunidade. A Comunidade do Marujá é a mais organizada para receber os turistas. Eles possuem um site da comunidade com informações sobre hospedagem e passeios: www.maruja.org.br. A ilha oferece várias opções de camping também, uma boa alternativa para gastar pouco. Outra opção é alugar um quarto de um morador.

A comida na Ilha do Cardoso é boa e tem preço justo. Ao chegar por escuna ou voadeira, encomende sua refeição em um dos pontos para não ficar sem alimento. Vá curtir a praia e volte no horário agendado e você encontrará um belo prato de comida caseira a sua espera.

Para quem gosta, à noite sempre rola um bom forró, no arrasta pé a diversão é garantida, ainda mais se estiver sob o efeito do whisky caiçara, a Cataia, que é a bebida tradicional da região. A Cataia é uma cachaça envelhecida com folhas de Cataia, que só nasce no Ariri, e dão um sabor e cor especial à bebida. Se você não é muito chegado a balada, uma opção de atividade noturna é pegar uma lanterna e caminhar pela ilha curtindo o céu estrelado.

Um dos nossos objetivos foi realizar um pedal pela Praia do Marujá, que tem 18 km de extensão de areia clara, totalmente plana, não possui lugares com sombras e é deserta. Seu final é delimitado por um costão ao norte. Para chegar nessa praia fizemos um pedal de cinco minutos por uma trilha linda. O pedal nessa praia é muito profundo, pois é raro o encontro com pessoas por largos minutos e com isso a presença da natureza se mostra maior. Chegamos no limite circundados por uma vastidão de água onde só barcos passam. Em um mergulho nessas águas calmas, certos ciclistas podem dançar com os Elementos.

Um momento incrível durante a travessia de Cananéia para a Ilha do Cardoso foi a passagem pela Baía de Trapandé onde tivemos a oportunidade de encontrar golfinhos. Ao mergulhar, ficar boiando para escutar suas vozes é, às vezes, mais gostoso do que tentar nadar ao seu encontro.

Não passamos a noite na ilha, pois tínhamos que voltar para Cananéia. A bordo da voadeira, o piloto nos levou até a Cachoeira Grande. Para chegar até essa cachoeira é preciso 15 minutos de voadeira e mais 20 minutos de trilha a pé, mas tudo é compensado pela beleza do lugar, pois mesclar águas doces de cachoeira com o mar, integra a visão do Elemento água, num mesmo dia. Sua queda e poço oferecem um bom mergulho.

Passamos também pela “cidade fantasma” São José do Ararapira, que foi uma das 21 vilas fundadas pela coroa portuguesa na Capitania de São Paulo no século XVIII. Ararapira cresceu e prosperou com o comércio marítimo da região até meados do século XIX, quando Iguape era um porto mais importante e com mais movimento do que Santos. No século XX, as estradas pelo interior absorveram todo o tráfego entre São Paulo e Curitiba, a cidade minguou e acabou abandonada. As marés continuaram roubando terreno da antiga cidade e as casas da vila foram desmoronando no canal. São José do Ararapira é hoje uma vila abandonada, da qual só resta a antiga igreja e poucas casas, mas seu cemitério continua sendo usado pelas comunidades da região. Fomos recepcionados por um zelador e seu cachorro. Interessante observar a bela solidão visitada daquele homem que fica bom tempo por lá. Brincamos com ele com nossos comentários ufológicos sobre a cidade dele.

© Claudia Franco

Itapitangui e Mandira

No último dia de viagem tínhamos como objetivo fazer um pedal até a comunidade quilombola de Mandira. Saímos de Cananéia em direção à balsa, apenas 1,2 km. A balsa sai de hora em hora (sempre nas horas cheias das 6 h até às 24 h). Durante a travessia apreciamos a beleza do Mar de Cubatão. Depois de atravessar com a balsa seguimos pela estrada do Itapitangui/Ariri, também conhecida como Estrada do Mandira. Seguimos pela estrada até o trevo que dá acesso ao bairro rural de Itapitangui, são aproximadamente 6 km de percurso. De lá pedalamos em direção à Mandira. São 11 km de belas paisagens, um pedal plano por estradões de asfalto de terra bons para aumentar a média de quilometragem. Na volta ao hotel em Cananéia chegamos eletrizados com tanta fluidez do percurso.

E o que é uma comunidade quilombola? É uma comunidade negra rural habitada por descendentes de africanos escravizados, com laços de parentesco, que vivem da agricultura de subsistência, em terra doada, comprada ou secularmente ocupada por seus antepassados, os quais mantêm suas tradições culturais e as vivenciam no presente, como suas histórias e seu código de ética, que são transmitidos oralmente de geração a geração.

A história da comunidade quilombola de Mandira começa em 1866, quando ainda era uma fazenda de arroz escravagista. O dono teve com uma negra um filho bastardo, que herdou um pedaço de terra, passado de geração em geração até chegar ao Sr. Francisco de Sales Coutinho, líder da comunidade e presidente da Associação Reserva Extrativista do Bairro Mandira. Atualmente vivem na comunidade aproximadamente 110 pessoas, todos parentes entre si, em diferentes graus, e a maioria com sobrenome Mandira, herdado da própria terra.

Com a impossibilidade de fazer roça e criar animais para a subsistência, devido a restrições ambientais, a principal fonte de renda dentro da comunidade é o manejo de ostra. Uma vez agendado é possível fazer um passeio de canoa pelo mangue até chegar à área de cultivo de ostras. Quem visita o local pode levá-las ou prová-las no almoço servido pelas mulheres da comunidade, que inclui as ostras in natura, gratinadas, torta de ostra ou farofa de ostra, mais peixe, pirão, salada, arroz e feijão. Outras atividades importantes são: apicultura, artesanato de cipó, bijuteria com sementes nativas, confecção de bolsas, camisetas, macacões para apicultura, chaveiros, bonecas e enfeites de pano.

© Claudia Franco

Considerações finais

Os custos da cicloviagem são relativamente acessíveis. Necessário pesquisar muito antes de fazer reservas em pousadas ou hotel, pois os valores variam muito, principalmente no período da alta estação. O custo com alimentação também é bem variado, mas na nossa avaliação, um pouco alto.

Se pretender ficar hospedado na Ilha do Cardoso, faça contato prévio com a comunidade para as reservas. Tenha paciência, pois eles dispõem apenas de um único telefone comunitário. Acesse o site e veja as opções e formas de reserva. Na alta temporada e feriados é recomendado reservar a pousada e os passeios com antecedência, pois existe o controle do número de visitantes na ilha.

Esta é uma cicloviagem ótima para quem é iniciante na prática do cicloturismo, os percursos são tecnicamente fáceis, paisagem deslumbrante, fácil acesso à alimentação e hidratação ao longo dos percursos. Se for visitar cachoeiras, use muito repelente contra insetos.

O complexo Estuarino-Lagunar do Mar Pequeno é incrível, cheio de belezas naturais e histórias, tudo preservado sem a destruição que normalmente encontramos em diversos paraísos deste país. Há muita informação nos sites das prefeituras, das comunidades, de hotéis e operadoras de turismo.