Uma história do cicloturismo

Pense num tempo em que não havia automóveis. Os trens eram caros e raros. Cavalos davam muito trabalho para se manterem alimentados durante uma longa viagem e eram desconfortáveis. Se você fosse um aristocrata europeu no século XIX e tivesse tempo sobrando para uma viagem, qual seria seu meio de transporte? A bicicleta, claro!

No final do Século XIX e início do Século XX, não era raro grupos saírem pelas aprazíveis primaveras, geralmente de uma vila para outra, causando espanto pelo caminho. As crianças rodeavam as bicicletas, tocavam-nas espantadas e corriam junto dos cicloturistas até perderem o fôlego. Aventureiros mais entusiasmados passaram a ampliar suas fronteiras para outros países, buscando cada vez maiores distâncias apesar das dificuldades da época. O jornalista Thomas Stevens, do San Francisco Chronicle, por exemplo, deu a volta ao mundo entre 1884 e 1886, num velocípede Columbia, com rodas de 50 polegadas, para escrever seus textos. Não foi despreparado: levou consigo uma guaiaca, duas camisetas, uma capa de chuva e um… revólver, para qualquer eventualidade!

A mania invadiu a França e sobretudo a Inglaterra, país que viu nascer o primeiro clube de cicloturismo, em 1878 (Cyclists´ Touring Club – CTC), não por acaso o clube de turismo mais antigo do mundo.

Com a chegada dos automóveis, as classes mais altas abandonaram o ciclismo como opção de turismo. Mas a mobilidade criada pela bicicleta já tinha deixado suas marcas no mundo e ainda era capaz de muito mais. Viajar de bicicleta passou a ser considerado um símbolo de liberdade, de aventura, de fuga de uma sociedade até então machista e patrimonialista

Nas décadas de 1970 e 1980 o cicloturismo voltou à cena nos Estados Unidos e em diversos outros países europeus, acompanhando a revolução do ciclismo pelo mundo. Aventureiros como Alastair Humphreys, Mark Beaumont e Rob Lilwall enriqueceram com as vendas de seus livros-relato. Beaumont, aliás, enriqueceu como o autor de ciclismo mais vendido (best seller) no Reino Unido em 2010 e 2011.

Travessia Laguna de Rocha. © Aline Tecchio borsoi

Felizmente também importamos coisas boas por aqui. O Brasil vive um boom no ciclismo, ainda que com uma acanhada produção nacional, e um passeio de fim de semana por qualquer cidade – pequena ou grande – revela que o ciclismo é o esporte da vez. E se no começo andar de bicicleta pelas estradas era coisa de meninos, hoje as mulheres não ficam para trás. O ciclismo, como belo esporte que é, casou-se bem com a beleza feminina.

Graças a este desenvolvimento surgiu o Pedal do Blush, um grupo de ciclismo formado há cinco anos em Chapecó, cidade de 200 mil habitantes no Oeste de Santa Catarina. Além das pedaladas esportivas, as gurias se reúnem para jantares, festas e aventuras. Mas nem as fundadoras mais animadas esperavam que o grupo se desenvolvesse tanto a ponto alcançarem o feito inédito que vou contar a seguir.

Chegada em Montevidéu. © Aline Tecchio borsoi

Era uma noite comum. Depois da pedalada, um jantar, assuntos correndo pela mesa, cerveja, risadas, receitas diferentes. Mas de uma hora para outra, uma proposta surge e é seguida por silêncio e aquele gelo na barriga. A funcionária pública Cândida, 35, sugeriu algo até então impensável: “Meninas, e se fôssemos de Chuí a Montevidéu de bicicleta no carnaval”?

Cândida, uma morena de olhar meigo e traços delicados, já tinha no ciclismo um amor antigo. A infância e a adolescência foram em cima de uma bicicleta, para todos os lados da cidade. Era seu veículo, parte de seu corpo. Mas aos 18 anos, com o primeiro carro, a ciclista ficou adormecida em seu coração até que, sentindo falta de uma atividade ao ar livre, uma síncope estalou no peito ao ouvir novamente o barulho da catraca girando com a corrente. Os anos haviam passado, mas a moleca ainda estava lá!

Hostel Viejo Lobo, Cabo Polonio, onde as cicloturistas ficaram hospedadas. © Aline Tecchio borsoi

A solidez da amizade fez a decisão sair da mesa naquele mesmo instante e em segundos a “viagem da nossa vida”, como lembram, não era mais projeto, e sim um plano a ser executado.

A adesão foi imediata para Carina, 37, a servidora pública aventureira, dona de um sorriso contagiante e de uma serenidade impressionante, que se revelaram importantíssimas na viagem, principalmente pelo domínio da mecânica das bikes, que passariam por sol, chuva, praia e mar atravessando o Uruguai. Aline, 26, a simpática nutricionista, caçula do grupo, que descobriu a bicicleta e se redescobriu na liberdade do pedalar, não titubeou nem por um segundo. Depois foi a vez de Márcia, 37, a advogada brincalhona que, tamanho seu espírito viajante, nem guarda as malas no armário de casa: estão sempre prontas para novas aventuras. E por fim, Katia, 39, entrou na empolgação. A elegantíssima advogada teria que deixar os compromissos processuais e familiares por alguns dias. Mas isso não seria problema. O fascínio pelo ciclismo, esporte que já a levava pelos caminhos da liberdade há cinco anos, daria o combustível necessário para a aventura. O lado materno não ficou para trás, e Katia se revelou a mãezona da equipe durante a viagem. Estava feito. E não tinha volta!

Detalhes da praia de Cabo Polonio. © Aline Tecchio borsoi

Perto do que vinha pela frente, tomar a decisão foi o passo mais fácil. Logo de cara, o volume de ciclismo tinha que aumentar. Os passeios se tornaram treinos, cada vez mais longos, até que chegaram os alforjes encomendados. E então passaram a simular a carga que levariam na bicicleta durante tanto tempo.

No dia 15 de fevereiro de 2015, depois de meses de ansiedade, de preparação, de análise de mapas, rotas, relatos, as cinco amigas partiram de Chuí, no Rio Grande do Sul, divisa com o Uruguai, em direção a Punta del Diablo. O Uruguai é repleto de planícies, com estradas impecáveis e incontáveis retas de perder de vista. A primeira parada para lanche foi no Parque Nacional de Santa Teresa, com direito a camping, praia, restaurantes e belas paisagens. Ao chegarem em Punta Del Diablo, o cansaço bateu, mas não dava para parar. Jantar, comprar lanches e organizar tudo novamente para o dia seguinte era a rotina.

Saída de Atlantida. © Aline Tecchio borsoi

No segundo dia, os 68 km do percurso foram debaixo de chuva. Nada que assustasse as cinco guerreiras, todas preparadas com as roupas especiais. Ao chegarem ao parque, foram recepcionadas por caminhões com tração 4X4 para rumarem a Cabo Polônio, local da hospedaria El Viejo Lobo. O hostel foge de qualquer padrão: música ao vivo, redes, fogueira, colchões para curtir a luz das estrelas e até uma pequena horta. A cidadezinha de interior que o abriga vive despreocupadamente deslocada no tempo em pleno Século XXI, servindo de paradouro para leões marinhos, talvez guiados pelo farol ou pela culinária dos restaurantes locais. Nossas cinco ciclistas não resistiram e emborcaram algumas Heinekens além da conta, fascinadas com o que todas concordaram ter sido o céu “mais bonito do mundo”. De fato, o cicloturista é diferente do ciclista esportivo. O objetivo é curtir a paisagem, a vida, a amizade; a pressa é mais do que nunca inimiga da perfeição.

Cabo Polônio ficou para trás e no terceiro amanhecer os guidões rumaram para La Pedrera, local que pedia descanso maior, mesmo com pouca quilometragem (57 km), já que o dia seguinte seria o mais puxado de todos. Sanduíches, alimentação e sono cedo. E uma bruta ansiedade. Se as condições climáticas estivessem boas, conseguiriam atravessar a Laguna de Rocha. Caso contrário, o pedal se estenderia por 140 longos quilômetros pela areia da praia.

Vista do Farol de Cabo Polonio. © Aline Tecchio borsoi

Mas veio o quarto dia e palavras ainda precisariam ser inventadas para descrever a beleza do lugar. Com 30 km de viagem alcançaram a Laguna de Rocha, uma lagoa formada às margens do mar, onde encontraram dona Olga, a simpática pescadora de camarões já conhecida dos cicloviajantes. Dona de um olhar que transborda carinho, Olga está sempre disponível a ajudar os aventureiros a atravessar a Laguna de Rocha em caso de maré alta. Mas desta vez seus préstimos foram necessários apenas para orientar a direção a seguir: por sorte de nossas ciclistas, a maré estava baixa e foi possível atravessar tudo empurrando as bicicletas, já que pedalar com o peso dos alforjes estava fora de cogitação. Em compensação, as mais lindas paisagens da viagem foram servidas como um banquete: a pureza da areia branca contrastava com o azul profundo do mar, num lugar intocado pela civilização. O silêncio só era quebrado pelo grasnado das gaivotas. Energia elétrica não havia, uma desnecessidade – só se pesca de dia. O quarto dia ainda seguiu por Laguna del Garzon, palco do merecido banho de lagoa e de mais um lanche para repor a energia gasta até ali. Um carro da década de cinquenta, aparentando ainda a cor original vermelho-madeira e amarelo, quebrou o silêncio. Não faz mal, aquele antigo Ford já estava integrado à paisagem. O mais belo pôr do sol da viagem fez companhia e sentou-se à mesa com as viajantes para o jantar no destino, em Punta del Este.

© Aline Tecchio borsoi

Atlântida foi o rumo do quinto dia, num pedal de 107 km, o mais longo da viagem, embora integralmente pelo asfalto. Nem as diversas subidas que antecederam Piriápolis, nem a chuva e o frio que as chacoalhava e molhava suas almas, e que exigiu um café forte para aquecer, nada foi capaz de baixar o ânimo do grupo. Os alforjes tinham só o essencial. Essencial feminino, claro, que inclui batom, rímel e muito blush, para honrar o nome do grupo. O momento era de introspecção. Alguns pensamentos soltos se conectando com outros, a lembrança dos amigos, dos filhos, do que estava por vir, da viagem dos sonhos que estava para acabar no dia seguinte. O albergue em Atlântida foi igualmente receptivo e o jantar reconfortou as ensopadas aventureiras.

Como um urso, as camas seguraram as nossas cicloviajantes um pouco mais longe na manhã deste sexto e último dia. Um descanso merecido. Eram, afinal, apenas 55 km até Montevidéu. Mas no meio do caminho, uma Kombi com bandeira de Chapecó e do Brasil chamou a atenção. Quatro outros aventureiros coincidentemente da Capital do Oeste Catarinense pararam para cumprimentá-las. A bandeira do Brasil vibrava pela chegada das vitoriosas ciclistas a Montevidéu. O último jantar foi de despedida, de saudades. Era hora de voltar.

Nada ficou para trás. Vieram na bagagem oito dias de amizade, de paisagens, de asado uruguaio, de cervejas locais deliciosas. Nos alforjes, fragmentos de histórias, de pessoas, de lugares. Nas retinas, os elementos da natureza, as nuances de um lindo país e de uma fabulosa amizade, que jamais se perderá. No coração, a essência do cicloturismo e a vontade de recomeçar tudo de novo.