Cicloturismo Caminho do Peabiru

A história do Brasil começa muito antes da chegada dos europeus. Na era pré-colonial, o território brasileiro era habitado por povos indígenas, que se distribuíam em tribos, se comunicavam e faziam comércio entre si. E, inclusive, com outros povos da América do Sul. O Caminho do Peabiru é uma parte fascinante dessa história, que não é contada. Uma rota intercontinental, que funcionava como um canal de acesso entre esses povos. Agora, imagina realizar cicloturismo no Caminho do Peabiru.  

Ciclo Aventura no Caminho do Peabiru – Foto Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

Cidade de Cuzco no Peru

Com 3711 km de extensão, profundidade de 40 cm e 1,40 metro de largura, o Caminho do Peabiru conectava a cidade peruana de Cuzco, com o litoral de São Paulo. A origem exata dessa estrada milenar não é possível determinar mas, provavelmente, foi construída pelos Incas, talvez baseada em trechos de alguma outra trilha mais rústica aberta anteriormente pelos Guaranis ou por outro povo mais antigo. E liga, por via terrestre, os dois oceanos: Atlântico e Pacífico.

Mapeando o Caminho do Peabiru. Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

Qual o Significado?

Caminho do Peabiru significa “Caminho que leva ao Peru”, mas desse tronco principal também partiam, ou chegavam, inúmeras ramificações, formando uma rede que cruzava o país de norte a sul, traçando um complexo sistema de comunicação, muito bem elaborado. Esses ramais se apresentavam como um conjunto de estradas bastante estreitas, com artérias de escoamento no interior das matas, utilizadas não apenas como passagem de uma região para outra, mas também serviam como palco de um intenso comércio de troca de produtos, especialmente alimentos.

O caminho das Pedras

E como todas essas ramificações convergiam para o mesmo eixo, – e apresentavam as mesmas características estruturais e pavimentação em pedra, com um tipo específico de talhe e encaixe-,  concluiu-se que faziam parte de um mesmo projeto de engenharia e todo o conjunto ficou conhecido pela mesma denominação, apesar de os caminhos secundários seguirem diferentes direções.

A equipe do Lobi Ciclotur está mapeando trechos dessa rota para a prática do Cicloturismo no Caminho do Peabiru

Mapeando o Caminho do Peabiru em Quatro Barras/PR . Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

Primeira Obra de Engenharia

Essa surpreendente e complexa rede comunicante constitui a primeira malha de estradas, construída em solo brasileiro. Uma obra de engenharia rústica – e ao mesmo tempo sofisticada – que gera muito fascínio, por estar envolta em um grande mistério. Sobre essas construções não existe consenso. Nem sobre sua origem e objetivo, nem sobre qual dessas trilhas foi a primeira a ser aberta, ou por quem. 

Mas é possível avançar algumas hipóteses …

A mais provável aponta para os Incas. Achados arqueológicos indicam que eles teriam chegado ao território brasileiro por um acesso natural, navegando o Rio Amazonas, que nasce na Cordilheira dos Andes, em território peruano, até a Floresta Amazônica. A partir de então teriam dado início a prática do escambo com os índios das tribos locais, continuando a exploração da nova terra pelo interior da mata nativa.

Mapeando o Caminho do Peabiru. Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

Baseando-se pelas massas de ar, que circulam no sentido anti-horário, foram na direção das zonas mais frias. 

Qual o objetivo dessas expedições?

A resposta para essa pergunta é simples. Os Incas estavam em busca da única coisa que eles não tinham: Água.  

A Civilização Inca

Para compreender essa dinâmica, é preciso voltar no tempo. Os Incas são descendentes de antigos povos andinos, que habitavam a região das montanhas, mas sua origem exata é obscura. Assim como não é possível determinar por qual razão um pequeno grupo de pessoas se separou de sua tribo original e se instalou na região onde, posteriormente, foi erguida a cidade de Cuzco, formando inicialmente um pequeno povoado que se desenvolveu tanto, a ponto de se tornar um poderoso império.

Mapeando o Caminho do Peabiru. Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

O Povo Inca

Os primeiros registros dessa intrigante civilização surgiram no século XII, quando esse pequeno grupo de indígenas escolheu o alto das montanhas nevadas da Cordilheira dos Andes, a 3400 metros de altitude, em meio ao silêncio e ao vento que sopra, para viver.

Nessa altitude, o frio é congelante.
O ar é rarefeito.
A beleza é de tirar o fôlego.
A água plácida dos lagos, escavados nas rochas, reflete a cor do céu, em contraste com a neve branca que se acumula no cume da cordilheira.
O visual é espetacular. Mas não foi a beleza da paisagem que os seduziu. 

Caminho do Peabiru – Povo Inca – Fonte Google

Próximos às nascentes

Eles se instalaram no alto das montanhas para estar perto da nascente dos três rios da região – que atualmente fornecem água para 95 milhões de pessoas -, e assim se dedicar às atividades que eles conheciam e permitiria a sua sobrevivência: pastoreio e agricultura. Levando-se em conta que a região dos Andes Peruanos está localizada nas proximidades do Deserto do Atacama, o lugar mais seco de todo planeta, concentrar o povoado no entorno dos reservatórios de água faz bastante sentido, apesar das condições climáticas extremamente rigorosas que teriam que enfrentar. 

Escassez de Água

O clima do Peru é semi-árido e se apresenta dividido em duas estações, seca e chuvosa. Porém, a precipitação é abaixo da média necessária e, por esse motivo, a vegetação é bastante escassa, com predominância de gramíneas e arbustos, ocasionando uma fauna rara e pouco diversificada.

Nós do Lobi Ciclotur estamos mapeando o trechos dessa trilha para a prática do Cicloturismo no Caminho do Peabiru

Trecho do Caminho do Peabiru na Serra do Mar. Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

Determinação e talento

Mas apesar de todos os obstáculos, esse povo era dotado de grande determinação e talento. Inovadores, fizeram das inúmeras dificuldades uma alavanca para o sucesso: descobriram e aplicaram novas técnicas de cultivo da terra, inaugurando o plantio vertical, em degraus, utilizando as escarpas das montanhas, e para se aquecer passaram a confeccionar roupas com a lã da lhama, uma das poucas espécies animais nativas das cordilheiras. 

E, em pouco tempo, o povoado cresceu.

Com o crescimento da população, aumentou a demanda de alimentos. Mas como aumentar a produção se tinham uma longa estação seca que prejudicava o cultivo? Com profundo conhecimento da água e do solo, mais uma vez eles inovaram. E passaram a desviar o curso dos rios e córregos, criando canais de irrigação, que levava a água diretamente para a plantação. E, para preservar a terra, optaram pelo pastoreio rotativo, dando tempo ao solo para se refazer.

Habilidade para construir

Com essas ações, o problema foi parcialmente solucionado. E a pequena aldeia foi se transformando. Templos e moradias de pedra, estradas e pontes foram sendo construídas. Habilidosos, fabricavam tecidos, cerâmicas e jóias de ouro e prata. E com as próprias mãos ergueram a cidade de Cuzco, capital do império, e Machu Picchu, a cidade sagrada. Duas obras de arte que, pela beleza e complexidade do projeto arquitetônico, são consideradas Patrimônio da Humanidade.

Obras-de-arte erguidas em terrenos que também abrigavam vulcões ativos, e por essa mesma razão, as construções Incas eram tão bem estruturadas, com um perfeito sistema de encaixe entre as pedras    que formavam o piso e as paredes. Eram construções feitas para aguentar abalos sísmicos.

Agricultura

No entanto, apesar do esforço, habilidade e talento para inúmeras atividades, a base de tudo era a agricultura. E o solo da cordilheira, pobre em água e oxigênio, não era bom para o cultivo, e a crise hídrica ia se acentuando. O período de seca prolongado causava perdas e aflição. Como reter a água da chuva, para que durasse até estação seca? 

Povo Inca no Caminho do Peabiru. Imagem: Google

Amunas 

A solução para garantir água nos meses secos, foi a construção das amunas. Uma rede de canais que coletava a água derretida das geleiras, da chuva e desviada dos córregos, para os aquíferos subterrâneos. Com 60 cm de largura e alguns metros de profundidade, revestidos com pedra, esses canais serpenteavam as montanhas até desembocarem em regiões onde a água era sugada para as camadas mais profundas do solo, e ficava armazenada por meses, para reaparecer na superfície mais tarde, durante a seca. Essa técnica, chamada de “água lenta”, garantia a colheita da safra.

Expansão do território

Como tudo o que eles faziam, os canais de água funcionaram muito bem. Porém, dois séculos depois, a população tinha aumentado tanto que não havia outra opção que expandir o território e buscar novas terras cultiváveis. E assim foi feito. De forma pacífica, foram conquistando uma longa faixa territorial, que no auge do império chegou a 4 mil km. E a cada conquista, uma nova cidade era erguida e uma nova estrada era construída para interligar os novos domínios à capital

No entanto, a expansão do império não era um desejo de poder, mas uma necessidade. Visionários, eles compreendiam que na região onde estavam instalados, um dia faltaria água. Assim, montaram expedições em busca de um “espelho” de sua linda cordilheira, mas que apresentasse condições melhores de clima e relevo, capaz de suportar a agricultura em grande escala, e ao mesmo tempo se assemelhasse a paisagem natural que estavam habituados. 

Um planalto, de clima fresco, próximo de uma planície litorânea, com muita vegetação e muitas nascentes de água e montanhas no seu entorno.

Amazônia

Quatro Barras no planalto paranaense. Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

O encontro da Mata Atlântica, e toda aquela imensa quantidade de água doce, foi uma maravilhosa surpresa. Mas o clima excessivamente quente e abafado da Amazônia não era próprio para o cultivo e tampouco era suportável pra eles, acostumados com temperaturas geladas. Impactados e seduzidos por todo aquele verde e por tanta água, continuaram sua expedição de busca, se afastando da linha do equador.

O território que eles buscavam era característico das gélidas paisagens do sul do Brasil. Mais especificamente, do Planalto Curitibano. E observando a rota do Caminho do Peabiru e os caminhos secundários que cortam o Paraná de ponta a ponta, essa hipótese ganha força. Essas rotas passam pelas regiões onde estão concentrados os maiores reservatórios de água do planeta: Chaco Paraguaio, Cataratas do Iguaçú e Serra do Mar. Amazônia e o Pantanal Matogrossense também estão ligados ao eixo principal, por outros ramais.

Destruição da Cultura

Mesmo que não seja possível provar que esse domínio ocorreu, aceitar a escolha dessas rotas como aleatórias é subestimar a história desse povo. Porém, se não é possível provar é possível levantar a hipótese de que havia um projeto nesse sentido, talvez nunca executado, ou abandonado em razão da invasão dos espanhóis ao império inca, em 1532, que causou a aniquilação de sua cultura e o destruiu.

Mapeando o Caminho do Peabiru no Paraná. Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

Os Guaranis

Outras teses afirmam que os Guaranis seriam responsáveis pela construção do Caminho do Peabiru, mas não há nenhuma evidência nesse sentido. Eles não tinham infraestrutura pra fazer uma obra desse tamanho, tampouco a expertise para elaborar um projeto de engenharia com tamanha sofisticação. O único povo que alcançou esse grau de desenvolvimento, foram os Incas. E o mesmo padrão de canais em rede, pode ser observado por entre a cordilheira.

Porém, o rumo das coisas foi alterado com a invasão espanhola. Com os espanhóis chegou a  destruição de tudo o que eles construíram, com tanto esforço.

Mas, não totalmente.
A obra-prima que eles criaram e ofereceram ao mundo, ficou.
Assim como sua arte e sabedoria.
Sabedoria ao tirar do solo o alimento, mas sem destruí-lo.
Sabedoria em atuar em harmonia com a paisagem natural, sem tentar modificá-la.
Sabedoria ao identificar a água, como o bem mais precioso do planeta, e respeitar seus ciclos.
O império foi destruído. Os ensinamentos ficaram.

E uma parte preciosa dessa herança, é o Caminho do Peabiru. Grande desses canais está soterrado, escondido pela vegetação, ou destruído pela urbanização. Mas o caminho principal e alguns trechos dessa rede ainda podem ser percorridos. 

O Caminho do Peabiru e o cicloturismo

O Governo do Estado do Paraná lançou um projeto para restaurar e revitalizar essa rede de canais que corta o estado, e percorre 86 municípios paranaenses, como opção de turismo sustentável. E fazer cicloturismo no Caminho do Peabiru, é render homenagem a esse povo excepcional, que sem qualquer tipo de tecnologia para os auxiliar, diante de condições climáticas extremas, construiu o maior império das Américas e deixou lições de sustentabilidade inestimáveis para os dias de hoje.

Assim como os caminhos secundários, a rota principal também poderá ser percorrida. O cicloturismo no Caminho do Peabiru pode ser executado também no eixo principalem toda sua extensão. Com disposição e espírito de aventura, o viajante irá sair do verde da Mata Atlântica diretamente para a paisagem árida e colorida da Patagônia, até chegar nas montanhas nevadas. 

A pé, de bicicleta… carregando apenas uma mochila nas costas.

Ciclo aventura o Caminho do Peabiru. Foto: Ivan Mendes © Lobi Ciclotur

O cicloturismo no Caminho do Peabiru levará o cicloviajante até onde as rochas se encontram com o céu. Onde o condor, o pássaro gigante, faz seu voo solitário sobre a beleza plácida da paisagem que serviu de morada para uma civilização incrivelmente talentosa e misteriosa, que esculpiu nas montanhas da cordilheira, uma história. A história de um povo que desafiou todas os obstáculos e se tornou um império.

Produção: Ivan Mendes | Texto: Marisol F. © Lobi Ciclotur