Bike e Wine

Cesar Mincato (49 anos) e Tiago Fiamenghi (32 anos), ambos residentes em Caxias do Sul (RS), pedalaram 972 km de Porto Alegre rumo a Montevideo, no Uruguai, para dar vida ao projeto Bike & Wine. Os dois amigos, que não são atletas e redescobriram a bicicleta há pouco, foram em busca de diversão, bons vinhos, boas histórias, estâncias, bodegas... E inspirar outras pessoas a fazerem o mesmo! Na edição digital 02 da Revista Bicicleta (que você pode acessar em digital.revistabicicleta.com.br), conversamos com Cesar e Tiago antes da viagem. Confira, a seguir, algumas impressões deles com relação à experiência vivenciada.

© Andreia Fadanelli

Em termos gerais, como avaliaram a cicloviagem?

De maneira geral, acima da expectativa. Muita coisa do que planejamos e projetamos para a logística, na prática se mostrou bem diferente. Por exemplo: levávamos em torno de 2 h 30 min desde que acordávamos até iniciarmos o pedal (junta roupa, passa protetor, toma café, prepara os suplementos, prepara a alimentação, arruma o carro de apoio, calibra pneu etc). Não tínhamos noção de que levaríamos tanto tempo com questões além da pedalada. Tanto antes quanto principalmente depois do pedal. Cada destino que chegávamos, tínhamos que encontrar local para dormir, tomar banho, lavar as roupas, comer e ainda criar conteúdo para o livro e para o nosso documentário. Havia dias em que tudo que queríamos era tomar um banho e deitar em qualquer lugar para descansar, ou seja, queríamos apenas “horizontalizar”, mas os deveres do projeto nem sempre (quase nunca) permitiram que isso acontecesse.

Fora isso, a divisão prévia das etapas funcionou muito bem. Os dois primeiros trechos (Porto Alegre até Cristal e Cristal até Pelotas) exigiram muito de nós. Além da ansiedade dos primeiros dias, pegamos muito movimento, tempo ruim nos dois trechos, e soma-se a isso a alta quilometragem percorrida nesses dois dias (em torno de 267 km). A parte física, nutricional e emocional esteve em harmonia e equilíbrio durante toda a jornada. O Tiago, nos dois primeiros dias, sofreu com algumas dores no joelho e um leve resfriado, o que exigiu uma maior atenção e alguns cuidados, mas o corpo reagiu rapidamente a isso. Em termos gerais, a viagem superou a nossa expectativa. O grande ensinamento é que na prática a teoria é outra, e que se não houver equilíbrio entre a parte física, mental e espiritual, o projeto corre o risco de não acontecer.

© Andreia Fadanelli

Quais são as diferenças mais significativas entre pedalar no Brasil e no Uruguai?

Essa resposta dá um livro. É incrível a diferença de contexto que sentimos assim que cruzamos a divisa entre o Chuí brasileiro e o Chuy uruguaio. Estradas, paisagem, organização das rodovias, sinalização, respeito e receptividade para com os ciclistas, enfim… A atmosfera de pedalar no Uruguai é totalmente diferente de pedalar no Brasil. O nosso sentimento é que o povo uruguaio estava esperando por nós, de verdade. Fomos muito bem-recebidos pelo Ministério do Turismo do Uruguai, que nos conectou com todas as secretarias de turismo dos locais que visitamos. Esses, por sua vez, foram ainda mais solícitos e receptivos, e fizeram com que a nossa experiência em terras uruguaias se aproximasse da perfeição. Conectaram a gente com bodegas, restaurantes e pousadas, que nos receberam muito bem, ofereceram estadias, visitações em bodegas e refeições gratuitamente. Tudo de maneira espontânea e desburocratizada. Eles realmente sabem receber os turistas e explorar positivamente a imagem do Uruguai. Foi uma aula para nós!

E no que os dois povos mais se assemelham, de acordo com o que vivenciaram nesta experiência?

No momento que vivemos hoje no Brasil, poucas são as semelhanças com o povo, o país e a cultura uruguaia. Infelizmente.

Quais foram os maiores desafios que enfrentaram?

Nós estamos nos dando conta do que fizemos, apenas agora. Quando estávamos lá, não havia desafio algum. Haviam coisas a serem feitas – e elas foram. Umas mais facilmente, outras nem tanto, mas estávamos preparados e, principalmente, focados com o nosso objetivo. Agora, podemos pontuar momentos que exigiram uma disposição e uma entrega maior por nossa parte, como a alta temperatura que enfrentamos em 90% das pedaladas, as péssimas condições das estradas em território brasileiro, preocupações constantes com a nossa hidratação, essa talvez o nosso principal desafio, pois se algum de nós desidrata-se, comprometeria o projeto e o cuidado para que a recuperação fosse a melhor possível para o dia seguinte. A grande questão é que tínhamos um prazo específico que aliás se mostrou apertado, pois tivemos apenas um dia de descanso e isso quase comprometeu a data limite. Isso nos forçou a fazer maiores quilometragens por trecho.

Quais foram as maiores atrações no percurso?

O simples fato de ir para outro país de bicicleta, já é uma atração à parte. Agora, o Uruguai nos pareceu estar mais preparado para esse tipo de aventura do que o trecho que pedalamos no Brasil. É claro que foi uma experiência muito interessante cruzar a Reserva do Taim de bike, pois nos sentimos muito conectados com a natureza e a atmosfera do local. Mas conseguimos ter um olhar mais contemplativo assim que entramos no Uruguai. Lá, pedalamos nos mais diversos contextos, próximos ao mar, cruzando imensas faixas de campo, paisagens bucólicas (como em Cabo Polônio), paramos no Forte Santa Tereza, entramos no Pueblo Garzón, um povoado de apenas 160 habitantes, entre outras paisagens incríveis que cruzamos com as nossas bikes.

Um dos objetivos do Bike & Wine era ter contato com a cultura do vinho na região. Fale um pouco sobre a experiência da viagem neste contexto.

A maneira como o Uruguai está encarando a questão vinícola no país chamou a nossa atenção. Há uma preocupação  entre as bodegas em fazer o melhor, não apenas no quesito produto, mas de uma forma geral (meio ambiente, cultura, turismo etc). A nossa intenção quando criamos o projeto era curtir muito mais a parte wine da expedição. Porém, na prática, vimos que, por tudo aquilo que citamos nas respostas anteriores (prazo, logística, físico, mente, descanso) seria um descuido e estaríamos colocando todo o projeto em risco. É claro que a gente queria se esbaldar e provar muito mais vinhos do que provamos, mas sabíamos que essa seria uma escolha comprometedora. Tivemos que equilibrar ao máximo a parte bike com a parte wine do projeto, deixando para curtir mais e relaxar no final da expedição, quando chegamos em Montevideo. Vimos que, para uma próxima jornada, temos que ter mais tempo ou menos quilometragem, pois caso contrário a matemática não fecha.

© Andreia Fadanelli

Que tipo de uva é mais cultivada nesse terroir?

Há uma grande variedade de uvas, mas o forte continua sendo a uva Tannat.

Como funciona a visitação das vinícolas na região? Geralmente oferecem opções de visitas guiadas, com degustação?

Normalmente as visitações devem ser agendadas. Sempre são guiadas por pessoas muito bem treinadas, preparadas e geralmente bilíngues. Há muitas bodegas no Uruguai, e nas que visitamos é indicado fazer a reserva prévia para que a experiência seja mais interessante. Eles recebem muito bem os turistas por lá.

Neste roteiro, quais visitas indicam ao leitor que também é apaixonado por bicicleta e vinho?

Vale conhecer Rio Grande, pois é uma cidade com muita história. Antes de chegar no Taim, existe a Praia da Capilha, onde tem uma capela histórica, com um pôr do sol incrível na Lagoa Mirim. Curtir a travessia da Reserva do Taim, pois passar de bike por ali é outra parada. Já no Uruguai: Forte de Santa Tereza. Em Punta del Diablo, conhecer o restaurante Il Tano, uma experiência sensacional. Em La Paloma, ir até a Laguna de Rocha e pegar um pôr do sol lá, que não temos palavras para descrever. Nesse local tem um restaurante comandado apenas por mulheres, agregando toda a cultura de pesca em torno da Laguna. Em José Ignácio, conhecer o La Huella, parador na beira da praia, com um ambiente e uma recepção incrível, e também entrar em Pueblo de Garzón, um pequeno povoado de 160 habitantes, que abriga um restaurante hotel de Francis Mallman, um dos maiores chefs da atualidade, além da Bodega Garzón e as Colinas de Garzón, de azeite de oliva. Já em Punta del Este, vale conhecer a região do porto e também a Casa Pueblo, de Carlos Villaró. A cerca de 30 km de Punta del Este, em direção a Montevideo, está a praia de Piriápolis, parada obrigatória para quem quer conhecer uma prainha muito bacana. Já chegando em Montevideo, pedalar na rambla e depois matear no fim do dia para curtir o pôr do sol no Rio da Plata. Em Montevideo, também almoçar uma parrilla no mercado público da capital uruguaia, além de visitar a Bodega Bouza, que fica a cerca de 25 km do centro.

Das iguarias degustadas, destacam alguma em especial?

As carnes uruguaias, os vinhos, o pão, laticínios em geral, azeites de oliva, clericot, medialunas, e uma “cerveza” bem gelada no mercado público de Montevideo no balcão de uma parrilla.

Algo fugiu da programação que haviam traçado? Sentiram falta de algo na bagagem?

O tempo que levamos para cuidar da logística (pré e pós pedal) nós nem havíamos projetado. Nós estávamos muito bem organizados no quesito apetrechos, pois a nossa parceira Guenoa nos orientou muito bem sobre o que era preciso levar para uma expedição como essa. Da mesma forma com a nutrição, que tivemos todo o suporte da Bio Forte, loja de suplementos naturais parceira do projeto. Não faltou nem preparo físico, pois além do apoio da Inspire Run, academia especializada nesse tipo de desafio, nosso “campo de treino” nos condicionou para essa pedalada, pois moramos em uma região montanhosa, ou seja, a altimetria que encontramos em 40 km aqui na serra gaúcha, corresponde a quase todos os 972 km que percorremos no trajeto até Montevideo.

Quais foram suas impressões com relação ao cicloturismo na região? Cruzaram com muitos cicloturistas? Como é a infraestrutura para este público?

Cruzamos com alguns ciclistas durante o trajeto e com parte deles interagimos. Sentimos que existe muita gente que pedala e quando nos colocamos em condições de igualdade, nos sentimos conectados de alguma forma. Com aqueles que interagimos, trocamos dicas, cuidados, experiências e histórias de pedaladas. A parte uruguaia oferece uma ótima infraestrutura para esse tipo de aventura. Tanto que não era nenhuma surpresa para eles o fato de nós estarmos pedalando desde Porto Alegre. Há muitos campings, pousadas, hosteis e hotéis para esse tipo de turista.

Vocês já realizaram esta mesma rota (ou parte dela) de carro, certo? Quais as diferenças mais significativas em realizar a viagem de bicicleta, ao invés de carro, na sua opinião?

A diferença é a mesma coisa que tu ver um local pela televisão e depois estar ao vivo nesse local. É como ver um jogo de futebol do seu time pela televisão e estar no campo acompanhando o jogo. É como alguém te falar que tomou tal vinho e você tomar esse vinho. Nós já tínhamos feito esse trajeto algumas vezes, mas o sentimento era de que essa foi a primeira vez que chegamos lá. De carro tu não ouve os passarinhos ou o barulho das capivaras mergulhando no Taim. De bike tu não só ouve, como se sente parte disso. O sentimento de chegar em outro país pedalando é incrível. Difícil de explicar.

Para o leitor que ainda não conhece o Uruguai, quais são as dicas e sugestões que vocês indicariam no país vizinho?

O Uruguai é um país muito rico culturalmente falando. Possui opções para todos os gostos e estilos de vida. Da agitada e badalada Punta del Este, ao bucólico e pacato Pueblo Garzón. A sugestão é que, tanto de bike quanto de carro, entre no Uruguai pelo Chuí e siga pela Ruta 9. Ali encontrará o Forte de Santa Tereza a poucos quilômetros da divisa com o Brasil. Um forte de 1722, ou seja, parada obrigatória. Depois a nossa sugestão é que entre em direção a Cabo Polônio e La Paloma, e prossiga a viagem pela Ruta 10, mais próxima à praia. Ali, a cada momento fomos surpreendidos por paisagens incríveis. De todos os lugares que passamos, os que voltaríamos sem sombra de dúvidas são: Restaurante Il Tano, em Punta del Diablo; Laguna de Rocha, em La Paloma; Pueblo Garzón e Bodega Garzón, em Garzón; La Huella, em José Ignácio; Bodega Bouza, em Montevideo. E, não poderia faltar, aquela mateada na Rambla, em Montevideo, na beira do rio La Plata.

Algum acontecimento durante a viagem que gostariam de destacar como uma boa história?

Lá vai uma das boas histórias dessa jornada.

De Rio Grande até Curral Alto 

Era o quarto dia de pedalada, já havíamos feito mais de 300 km nos três trechos anteriores e estávamos prestes a sair de Rio Grande, rumo a Reserva do Taim. Esse era o trecho, ao menos no Brasil, mais esperado por nós. Estávamos ansiosos para cruzar a Reserva do Taim de bike e a previsão era de tempo bonito, sol e muito calor. Iríamos pedalar em torno de 120 km até onde havíamos programado a nossa parada, para, então, no outro dia seguirmos viagem rumo ao Chuí.

Logo nos primeiros quilômetros da pedalada, um imprevisto: o primeiro e único pneu furado da viagem. Para a nossa sorte, estávamos em um lugar de rara sombra. Levávamos com nós uma câmera reserva e os apetrechos para a troca da câmera furada. Perdemos uns 15 a 20 minutos na troca, enchemos o pneu e seguimos viagem, rumo a reserva.

A sensação de entrar na Reserva do Taim foi única. Diferente das outras vezes que passamos por ali de carro, cruzar aquele trecho de bike é outra coisa. Nos sentimos extremamente conectados com o todo, com o ecossistema da Reserva. Vimos de tudo um pouco: famílias de capivaras, muito gado, os mais diversos tipos de pássaros, raposas, e outros animais vivendo em extremo equilíbrio, ou melhor, convivendo.
Passada a empolgação da Reserva do Taim, o cansaço começou a pegar e a água a faltar. Já havíamos pedalado em torno de 95 km e restavam mais 25 km até chegar no nosso destino. Quando avistamos o paradouro, foi aquela sensação de alívio. Pensamos: “agora vamos tomar um bom banho, comer algo e nos acolhermos em algum lugar para descansarmos”. Mas na prática, a teoria foi outra. O paradouro que, no google earth se mostrava um bom lugar para ficarmos, se mostrou um lugar pouco preparado para isso. Na verdade, era um posto de gasolina com um restaurante. Logo de cara vimos que não havia condições de ficarmos ali e passamos a buscar alternativas. Depois de algumas conversas com frentistas do posto, nos indicaram uma tal de Granja Mangueira. Isso mesmo, uma granja. Ficava a cerca de 30 km de onde estávamos. Lá fomos nós buscar lugar para descansarmos aquela noite, porque nessa altura do campeonato já nem pensávamos mais no banho e na comida, apenas em um lugar seguro para dormirmos. Chegamos na granja e o porteiro (meio desconfiado quando viu as nossas roupas justas de ciclismo) confirmou a dica. Disse que haviam alguns quartos onde os trabalhadores da granja dormiam. Entramos, avaliamos o cenário e pensamos: “é aqui ou aqui, não temos outra opção.

Calor ou mosquito: eis a questão

Fomos recebidos muito bem pelas mulheres que trabalhavam no local. Fizeram um preço super camarada (R$ 50,00 por pessoa com café da manhã) e logo nos mostraram onde eram os quartos. Chão de terra batida, cachorros soltos, pássaros e galinhas pelo pátio e logo chegamos em nossos aposentos. Ao abrirmos a porta, não sei o que foi mais impactante: o bafo quente que saiu do quarto ou a quantidade de mosquitos que havia lá dentro. Não tinha como ficar dentro do quarto com a quantidade de mosquito que havia lá dentro. Por sorte, o César havia levado um inseticida de mosquitos. Gastamos quase todo o tubo no quarto, fechamos a porta e saímos para tirar algumas fotos do Taim. Voltamos algumas horas depois e logo ao abrir a porta do quarto, vimos que o inseticida havia funcionado, mas nos poucos segundos que a porta ficou aberta, uma nova leva de mosquitos entrou. Logo nos fechamos no quarto e pensamos “cara, não tem como deixar a porta nem a janela aberta. Vamos ligar esse ventilador velho aqui e ver o que vai dar”. Poucas vezes vi um ventilador ser tão inútil como nesse dia. Se por um lado exterminamos os mosquitos, por outros estávamos pagando um alto preço por mantermos as portas e janelas fechadas. Eu (Tiago) estava com um leve resfriado, fruto dos dois primeiros dias de pedalada na chuva. Mesmo com o calor infernal no quarto, tive que tomar um chá quente de gengibre antes de dormir. Eu nunca suei tanto em uma noite, mesmo com o ventilador virado direto para nós. Não confiando muito nos lençóis do quarto, tivemos que dormir em sacos de dormir, o que aumentou a temperatura em mais uns 10°. Foi uma das noites mais desafiadoras da minha vida. Estava cansado (já havíamos pedalado mais de 400 km), resfriado, com pouca alimentação, em um calor infernal e ainda por cima no outro dia iríamos pedalar mais 120 km até o Chuí.
Acabamos apagando, mais pelo cansaço do que pelas condições do contexto de dormirmos uma boa noite de sono. Acordamos cedo pela manhã, todos suados e logo começamos a preparar as nossas coisas para subirmos logo na bike. No final das contas, foi a melhor opção que encontramos naquele dia. Fomos bem recebidos e ainda serviram um café da manhã com café, leite, pão e ovos cozidos. Tudo que precisávamos para seguirmos viagem rumo ao Uruguai.

E o que vem agora? Quais os desdobramentos da viagem?

Além das entregas já previstas, como o livro e o documentário da expedição, temos a intenção de transformar o projeto Bike & Wine em marca, para promover experiências relacionadas ao seu espírito, que vai muito além da bike e do vinho. Fala sobre inspirar, motivar e contemplar o que há de melhor na vida, além de mostrar que somos sim capazes de realizar aquilo que sonhamos. Já estamos desenvolvendo os próximos desafios, para apresentarmos a nova marca e fazer com que mais pessoas experimentem os princípios e o espírito do BW.

© Andreia Fadanelli