Da capital francesa, Paris, até Dieppe, foram 246 km ao longo do Vale Epte, depois pelas margens arborizadas do Rio Sena, onde Monet pintou seus lírios, e em seguida o Vale Oise, onde a rica paisagem serviu de fonte de inspiração para muitos dos impressionistas, como Daumier, Pissarro, Cézanne e Van Gogh. Em Dieppe, um ferry – que para mim parecia um navio – me levou por quatro horas pelo Canal da Mancha até chegarmos à primeira cidade da Inglaterra, Newhaven. De lá, segui mais 160 km pelas rotas 2, 21 e 20 da National Cycle Network até chegar a Londres. O caminho passa por bosques e seguem os antigos trilhos ferroviários que existiam na região, além de várias cidades.

© Vera Lúcia Marques

Fiz a viagem sozinha, o que não seria um problema para mim. Cerquei-me de alguns cuidados e planejei metodicamente a viagem. Sou daquelas que ainda prefere os mapas impressos, então, a primeira coisa que fiz foi comprar os meus mapas guias disponíveis no site (www.sustrans.org.uk) com bastante antecedência, permitindo que eu os estudasse muito antes de iniciar o pedal. Com isso é possível prever situações e criar um Plano B, caso necessário. Um site bastante explorado por mim antes da viagem foi o avenuevertelondonparis.co.uk.

Outra decisão importante foi levar a minha bike equipada com um bagageiro e um par de alforjes. Hoje, é possível em qualquer companhia aérea levá-la sem grandes burocracias, e não tive nenhum custo para isso. Quanto à mecânica, aprendi o funcionamento básico de uma bicicleta: regular os freios, trocar pneus, montar as rodas na bicicleta e fazer ajustes simples. Com um pequeno kit de ferramentas, é possível fazer a maior parte dos consertos necessários numa viagem. Sei montar guidão, pedal, colocar as rodas e dar uma acertada nas marchas. Também tenho noção de primeiros socorros e organizei um pequeno kit para este fim.

© Vera Lúcia Marques

A viagem

Com tudo organizado e o roteiro definido, segui para Paris, onde iniciaria o percurso entre as duas capitais mais famosas da Europa.

Antes de seguir viagem, explorei um pouco Paris, mas não antes de ter conhecimento sobre o território e o trânsito da cidade: onde virar, quando seguir, onde parar, quais placas são para o ciclista, como os motoristas e motociclistas se comportam, quais as regras etc. Saber quais sinalizações são dedicadas aos ciclistas é um bom instrumento para se pedalar com mais segurança. Na França, carros e motos estão permitidos a fazerem cruzamentos que nós não vemos nas cidades do Brasil, então, ficar atento é importante.

Não tive problemas e consegui chegar a todos os pontos turísticos da cidade pedalando! Descobrir a cidade de bicicleta me fez ter uma perspectiva única e apaixonante por Paris.

Planejei minha viagem em sete etapas:

1 Paris a Conflans-Sainte-Honorine
2 Conflans-Sainte-Honorine a Giverny
3 Giverny a Gournay-en-Bray
4 Gournay-en-Bray a Forges-les-Eaux
5 Forges-les-Eaux a Dieppe
6 Newhaven a Crawley
7 Crawley a Londres

Minha viagem começou no coração histórico de Paris, em l’île de la Cité, em frente à Catedral de Notre-Dame. A catedral é impressionante, com sua nave de tirar o fôlego, seus vitrais magníficos e suas gárgulas fantásticas.

Sair de uma grande cidade pedalando não é tão fácil e exige muita concentração. A sinalização da Avenue Verte na França é uma seta verde com uma bicicleta dentro de um quadro verde. Ela é muito similar às placas de sinalização dos pontos turísticos, por isso é importante estar atento.

Logo que saí da catedral, segui em direção ao subúrbio, mais especificamente a Rue Saint-Denis, uma das ruas mais antigas de Paris. Foi um dos centros da Rebelião de Junho de 1832, imortalizada no romance Os Miseráveis, de Victor Hugo, e que é referido no livro como o “Épico da Rue Saint-Denis”. Dali, segui margeando o Canal Saint-Denis até chegar à cidade que leva o mesmo nome, “a cidade de reis mortos e pessoas vivas”, segundo o poeta Jean Marcenac. Famosa por sua Basílica, considerada uma das mais bonitas igrejas da França, ela impressiona pela sua arquitetura medieval e pela riqueza de criptas: o local foi usado como mausoléu dos reis da França. O lugar é famoso também pelo moderno Stade de France, estádio que nesse ano sediou os jogos da UEFA Euro.

© Vera Lúcia Marques

A viagem continuou ao longo do rio Sena, com uma atmosfera impressionista óbvia. Depois de atravessar o rio em Maisons-Laffitte e atravessar a parte norte da floresta de Saint-Germain, segui para o meu destino final programado para o dia: Conflans-Sainte-Honorine.

A partir de Conflans-Sainte-Honorine, segui pedalando às margens do rio Oise durante um trecho, depois por pequenas estradas através da região Vexin Français, uma grande área verde com vários vilarejos muito pequenos e lindos, que parecem ter saído de um conto de fadas ou dos séculos passados, até chegar a Giverny, região da Normandia. Foi nessa cidadezinha que o pintor Claude Monet, criador do impressionismo, viveu por 43 anos ao lado de sua esposa Alice Hoschedé e de seus oito filhos. O artista pintou compulsivamente as paisagens da vila e o lugar se transformou na representação viva de seus quadros.

No meio da região da Normandia, pedalei através do Pays de Bray, chamado de boutonnière (casa do botão), por se tratar de uma abertura de vales verdes e suaves em meio às planícies, casas de fazenda e florestas. 

Passei por Forges-les-Eaux e pedalei por uma ciclovia que leva direto ao mar, através do maravilhoso interior da Alta Normandia, pontilhado de fazendas que abastecem os mercados normandos e franceses com seus excelentes produtos, como por exemplo, a cidade de Neufchâtel, famosa pelos queijos e pela qualidade do leite. 

Pela ciclovia chega-se a Dieppe, o mais importante balneário francês e favorito de muitos pintores impressionistas. Foi emocionante chegar até ali pedalando. Fiquei um tempo sentada na praia de pedras olhando o mar, até que um senhor se aproximou e disse: “pois é, a Inglaterra está logo ali”.

Foi difícil não se lembrar de todos aqueles que se lançaram às águas do Canal da Mancha para atravessá-lo a nado. Pensei em Renata Agondi, primeira brasileira a morrer durante a travessia, em 1988, na época com 25 anos. E ali estava eu, uma quase sessentona sozinha que saiu de Paris com sua bicicleta carregada, tentando chegar a solo britânico.

Colocar a minha bike no ferry, ir para a proa e fazer toda a travessia – que durou 4 h – olhando o mar foi indescritível. Desembarquei do ferry em Newhaven, ainda não acreditando. Logo após segui pedalando ao longo do vale do Cuckoo e da antiga ferrovia, até chegar a Heathfield, onde fiz minha primeira parada. No dia seguinte pedalei até Crawley, e depois mais um dia de pedal até chegar ao meu destino final, a Catedral de Westminster.

Pedalar na Inglaterra é diferente, a começar pela direção do lado direito e as placas de sinalização. Na Inglaterra, são azuis e numeradas, chamadas de National Cycle Network. Para chegar a Londres foi preciso percorrer as rotas 2, 21 e 20.

Depois de Londres fui para Cambridge e de lá continuei explorando outras rotas da National Cycle Network, uma série de caminhos seguros, livres de trânsito e tranquilos para o ciclismo e caminhadas. As rotas conectam as cidades e foram criadas para incentivar o ciclismo em toda a Grã-Bretanha. Depois segui para a região de Cotswolds. As estradas, margeadas por paisagens sempre verdinhas, onde ovelhas e cavalos pastam despreocupadamente, já é uma atração. Longe da efervescência da capital, o país se revela bucólico, repleto de cidadezinhas de pedra, com casas e chalés que parecem abrigar personagens de conto de fadas.

Foram 1.026 km pedalados, muitas pessoas conhecidas e muito aprendizado.